As palavras tecem a trama precisa de memórias que trouxeram Lydia Garcia até aqui. Aos 85 anos, ela celebra e coleciona conquistas, viagens, saberes e uma legião de pupilos que hoje, graças aos seus ensinamentos, seguem diferentes trilhas nas artes. Mesmo quem não a teve como professora em sala de aula é rapidamente contagiado pela inspiração que a pioneira exala na fala, no canto, no ritmo, na estampa das roupas, no cabelo trançado e nas paredes da casa, uma das primeiras da W3 Sul.
A história viva contada na habitação térrea ela compara a um museu. Prova disso é que, nos tempos pré-internet, muitos iam até lá fazer pesquisas nos livros do acervo pessoal da professora ou simplesmente ouvi-la, para conhecer um pouco mais sobre a cidade, a música, a cultura afrobrasileira e tantos outros temas que Lydia domina, como verdadeira guardiã.
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Tal feito não passa despercebido. Essas mesmas páginas de jornal foram testemunhas de alguns de suas gravações. Uma delas, reportagem de outubro de 2012, ela ganhou de presente de uma amiga, emoldurada em um quadro que dispõe na sala de estar. Mãe de cinco, vó de 11 e bisavó de dois, orgulha-se ao contar a trajetória de sucesso de cada um deles. O guitarrista; o rapper fundador da Batalha do Real; a modelo, capa das revistas Forbes e Marie Claire. O tempo foi pouco para falar de tantas conquistas.
Carioca, formou-se no Conservatório Brasileiro de Música, no Rio de Janeiro, aos 16 anos, após oito anos de estudos. O instrumento escolhido foi o piano clássico, e as aulas incluíam também disciplinas como teoria musical, harmonia, história da música, pedagogia musical, acústica e canto coral. Deixou o curso com um diploma equivalente ao de ensino superior, que mais tarde a permitiria lecionar em Brasília. "Meus pais sempre cuidaram muito da minha educação, tive a oportunidade de ver pessoas muito importantes no palco do Theatro Municipal (do Rio de Janeiro)", recorda-se.
A mãe, Isabel Garcia, era famosa costureira no Rio, conhecida como Madame Garcia. "Minha mãe era uma mulher simples, de Caxias, morava com uma tia-avó, e logo se revelou na costura. Ela foi trabalhar para a Casa Canadá, a primeira casa de modas do Rio", relembra Lydia. O pai, Guido Leandro Garcia, era funcionário administrativo da Prefeitura do Rio. Não houve, portanto, nenhuma herança familiar na escolha pela música, mas muita perseverança e dedicação do casal. "Era muito difícil 70 anos atrás nós, negros, direcionarmos um filho. É uma história de vencedores", exalta.
Aos 21 anos, casou-se com o artista plástico Willy Mello, que morreu em 2012. Alguns dos quadros da casa de Lydia emolduram desenhos do ex-companheiro, que foi aprovado no concurso para a Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap) e trabalhou com Oscar Niemeyer na construção de Brasília.
A jovem carioca desembarcou na cidade no ano da inauguração, em 1960, quando nasceu a primeira filha do casal, Kenya. Depois vieram Mali, Luena e os gêmeos Ialê e Kwame. Todos nasceram no Rio. A professora viajava para a cidade natal um mês antes do parto para ter os bebês com o médico de confiança. Depois, voltava a Brasília, onde fincou raízes que se estendem generosamente por onde se precisa de um respiro de criatividade e de energias positivas.
Pioneira da rede pública
A trajetória na educação começou na nova capital, e com pioneirismo. "Eu não fui normalista, mas tinha um curso de ensino superior e era habilitada para ensinar música em qualquer local. Fiz a prova para a Secretaria de Educação — que era Fundação Educacional — e, como eu era especialista, eles me mandaram para a Escola Parque da 308 Sul. Eu sou pioneira do ensino de música em Brasília", orgulha-se, lembrando ainda que o feito está devidamente registrado no Museu da Educação do Distrito Federal (Mude), localizado na Universidade de Brasília (UnB).
A primeira aula de música na Escola Parque ocorreu em 1964. Lydia conta que a ideia da iniciação musical era apresentar um universo de possibilidades às crianças, com cirandas, cantigas de roda, hinos nacionais, coral, banda rítmica, entre outras atividades.
"Logo em seguida, eu fui para a Escola Normal de Brasília. Lá também desenvolvi um trabalho muito bom de formação de professores. As professoras que estavam se formando eram normalistas, mas elas tinham que assistir às aulas de teatro, de música, porque a Escola Parque e a Escola Normal eram escolas especialistas", detalha a professora.
Um ano depois, em 1969, nasceram os gêmeos. As três filhas mais velhas já navegavam pelo universo da educação de Brasília. Estudaram na Praça 21 de Abril, na 308 e na 108 Sul. Paralelamente, Lydia foi convidada a dar aulas na Faculdade Dulcina. A disciplina se chamava Fundamentos da Educação e Comunicação Artística (Feca), e com ela veio outra geração de estudantes inspirados pela mestra.
Pérolas pelo caminho
Seria impossível citar todos os alunos e discípulos de Lydia — não porque lhe falha a memória, mas porque a entrevista se estenderia por horas e as páginas seriam insuficientes para contemplar a multiplicação de conhecimentos durante sete décadas dedicadas à arte. Pode-se arriscar, no entanto, alguns que ainda seguem em contato com a mentora ou que aguçam lembranças de momentos especiais.
"Nessa trajetória eu encontro — hoje, ontem, anteontem e há tempos atrás — pessoas que foram meus alunos e que se aproximaram da música, que fizeram música na universidade ou que foram para orquestras, para escolas de música, para a UnB." Há nomes também no jornalismo, como Gioconda Caputo; no teatro, como Zé Regino e os irmãos Guimarães; no cinema, como Sérgio Moriconi; e na televisão, como Deo Garcez.
A figura inspiradora de Lydia sempre contemplou na educação algo muito maior do que a sala de aula, e eram justamente as atividades ao ar livre o elemento-chave desse processo. "Daqui da Escola Parque ou da Escola Normal eu falava logo: 'Vocês vão andando por aí, descobrir alguma coisa que tenha um som diferente, que possam carregar'", ordenava a mestre. Eis que os alunos voltavam com latas de sorvete, pedaços de metal, as favas que caíam das árvores e saíam tirando sons e pensando em partituras.
Um dos encontros especiais ocorreu na Escola Normal. A cantora Cássia Eller passou pela sala de aula de Lydia por um curto período. "Eu acho que ela não terminou (o curso normal). O caminho dela era outro. Às vezes, depois das aulas, ela me pedia: 'Professora, eu queria tanto tocar esse piano'. Aí eu falava: 'Então, na hora do almoço, eu dou um jeitinho e você fica lá na sala'. E deixava a porta encostada…", relembra. "E depois nós nos encontramos, no Rio de Janeiro. Ela estava dando show com Francisco (filho de Cássia), ele era pequeno."
Cultura pujante
Em 1988, quando deixou as salas de aula, foi convidada para integrar a Assessoria de Cultura Negra da Secretaria de Educação e Cultura, sob o comando de Pompeu de Sousa. Ali ajudou a disseminar a cultura negra pelas escolas de todas as regiões do Distrito Federal. Em outro projeto, na UnB Ceilândia, preparou jovens para trabalhar atividades culturais com crianças em situação de vulnerabilidade. Alguns deles cursam hoje doutorado.
No fim da década de 1980, Lydia passsou a participar da organização do Festival Latino-Americano da UnB. Uma curadora de peso para trazer ao evento nomes que destacassem a cultura afrobrasileira. Capoeiristas famosos marcaram presença no festival, assim como os grupos Olodum e Ilê Aiyê. Não à toa, quando visita Salvador, a pioneira ganha reverências por onde passa.
As viagens pelo país, por sinal, se intensificaram na época em que Lydia participou de projeto do Ministério da Educação para formação de professores, nas áreas de música, teatro e artes plásticas. "Ficávamos uma semana pela Secretaria de Educação do Estado dando oficina aos professores. Fomos para vários lugares. Maceió, Manaus, São Paulo…", elenca a professora, que orgulha-se ainda de ter participado do júri de diversos festivais de música. A trajetória de sucesso foi premiada inúmeras vezes, com trofeús como os do 3º Prêmio Marielle de Direitos Humanos e do 1º Prêmio Cultura Afrobrasileira.
Ativismo presente
"Fizeram uma pergunta para mim outro dia e eu falei que eu não nasci ativista. O ativismo surge a partir do momento que você começa a reconhecer as diferenças, as diversidades. Aí você começa a ser ativista do movimento negro, da saúde, dos direitos humanos", pondera Lydia, lembrando que naquele mesmo dia da nossa entrevista morrera Harry Belafonte, cantor estadunidense ativista dos direitos civis.
O reconhecimento das diversidades passa também pela realidade cruel do racismo. Não foram raras as ocasiões em que foi confundida em eventos onde era a convidada. "É aquela coisa de o negro ser sempre o serviçal. Mas nós estamos vencendo, com toda essa luta dos movimentos sociais, do movimento negro, que é de muitos anos."
A arte é o embrulho perfeito para reivindicar espaços e lugares de fala. E Lydia sabe usá-la em suas mais diversas expressões. Além da música, é especialista em artes cênicas, escritora, bordadeira, estilista — criadora do Bazafro — gosta de dançar samba e aprecia o balé. "Eu sou criativa. Sou do palco", declara, erguendo a face e abrindo os braços, com postura de artista. No mesmo dia, havia se encontrado com o rapper Gog, na companhia de quem já estrelou saraus no Guará.
Na caixa de som de Dona Lydia atualmente a música brasileira domina o repertório: samba e MPB, ao lado da música regional, que vem acompanhada de uma lista extensa de favoritos — baião, embolada, coco. "Gosto muito de assistir lá no Paranoá à Martinha do Coco. Sou muito considerada pelo pessoal da capoeira, e, agora que estou ficando mais velha, é um tal de 'A bença! a bença!'", diz Lydia, aos risos, celebrando o respeito e a reverência.
Mesmo com a agenda cheia de compromissos, aceitou com generosidade o pedido para compartilhar um pedaço da própria história. Passamos ainda pelos desfiles no carnaval da Asa Norte, na Estação Primeira de Mangueira — escola do coração — e as coincidências que nos brindaram durante a conversa e a sessão de fotos. De coroa brilhante na cabeça, assumiu a majestade e o trono da sala de infinitas memórias.
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