Em 2 de junho de 2020, em plena pandemia, o menino Miguel, de apenas 5 anos, morreu após cair de um prédio luxuoso no Recife. A criança era filho de Mirtes Renata Souza e tinha sido deixada aos cuidados da patroa dela, Sari Corte-Real, para que a empregada doméstica pudesse passear com o cachorro dela. O caso emblemático que mobilizou o país serve de pano de fundo para o livro Ouçam Mirtes, Mãe de Miguel: trabalho doméstico remunerado e desigualdades no Brasil, lançado em Brasília este mês pela juíza do trabalho Maria José Rigotti.
Trabalhando na justiça do Trabalho, Maria José Rigotti sabe bem como a precariedade e as violências se refletem no cotidiano das 5,9 milhões de trabalhadoras domésticas do país. No aniversário de 10 anos da promulgação da PEC das Domésticas, os desafios para a categoria, formada majoritariamente por mulheres, ainda são enormes. De acordo com a Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), três em cada quatro trabalhadoras domésticas estão na informalidade. Este mês, a Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas (Fenatrad) está lançando a Campanha de Sindicalização da categoria. “O Sindicato, através dessa campanha, convida as Trabalhadoras Domésticas para se associar ao sindicato, para que juntas possamos fortalecer a luta por salário dignos, e respeitos aos direitos conquistados, além da necessidade desses direitos serem ampliados”, diz a instituição.
Para além da informalidade, Maria José Rigotti destaca o racismo estrutural e o sexismo como figuras de peso no cotidiano das mulheres domésticas. "O tratamento que é dado a elas é, em muitos casos, de desumanização, em um cotidiano marcado por racismo e sexismo. A gente teve uma abolição, mas ela continua com suas raízes na sociedade e onde isso aparece de forma muito clara é no trabalho doméstico", destaca. Para ela, é necessário que a sociedade mude estruturalmente para que realmente se tenha mudanças. "É uma questão estrutural também de representatividade, porque elas não estão sendo representadas na política. Afinal, quem legisla são os empregadores e tomadores de serviços domésticos, quem julga também", afirma.
Confira a entrevista completa
O livro acaba de ser lançado. A senhora pode falar um pouco sobre o que ele aborda?
O livro foi um trabalho de mestrado em que eu analisei como estudo de caso uma tragédia que foi muito repercutida, que foi a morte do menino Miguel. O contexto todo diz respeito ao trabalho doméstico no Brasil. A frase “Ouçam Mirtes, mãe de Miguel” veio da campanha que nasceu quando Mirtes começou a cobrar justiça, que ela está esperando até hoje. Se juntaram à voz potente de Mirtes nesta luta muitas pessoas, como artistas, ativistas, intelectuais, músicos.
Foi um acontecimento muito trágico e acaba por revelar o contexto de racismo, sexismo e classismo que atravessa essas trabalhadoras domésticas. Enquanto Mirtes estava trabalhando, em plena pandemia, a Sari estava fazendo as unhas, com outra trabalhadora que também não deveria estar ali. Miguel entrou no elevador e em vez de Sari o tirar dali, ela apertou para o andar da cobertura e ele acabou saindo no 9o andar e caindo, vindo a falecer.
Quando se olha para esse microcosmo, a gente consegue enxergar um Brasil com desigualdades profundas que reproduz todo o histórico escravocrata e de pós escravidão. O trabalho doméstico é extremamente complexo e ocorre dentro de um espaço privado, cujas relações também são de intimidades e afetos.
Por toda a circunstância que envolve o caso Miguel, o resultado da pesquisa mostrou que podemos sair da armadilha do pensamento hegemônico neoliberal de restringir as questões à esfera comportamental e individual nas relações de trabalho doméstico, para enfrentar o classismo, o sexismo e o racismo que estruturam a sociedade brasileira.
Como surgiu a ideia de escrever sobre o assunto?
O interesse pela temática vem muito antes porque trabalho é a minha área de atuação e o trabalho doméstico, para mim, permite analisar com profundidade essas desigualdades e entender as estruturas sociais do país.
O trabalho doméstico é a maior categoria feminina de trabalho no Brasil e a maioria composta por mulheres negras. Já os empregadores e tomadores desses serviços são de classe média e alta, a maioria de pessoas brancas. É um forte contraste e revela estruturas abissalmente desiguais na sociedade.
Além disso, é uma categoria altamente informal. Em torno de 70% não tem registro na carteira de trabalho e só 30% são formalizadas e têm os seus direitos trabalhistas e previdenciários reconhecidos. É uma categoria altamente precarizada. Na própria lei, há direitos desiguais como, por exemplo, questões de saúde e segurança do trabalho, apesar de serem trabalhadoras com uma alta exposição a condições insalubres e perigosas.
São trabalhadoras, cujos corpos são atravessados pelo racismo, pelo sexismo e pelo classismo. A gente teve uma abolição, mas ela continua com suas raízes na sociedade e nas relações de trabalho doméstico isso é bastante evidente. Assim, olhando o fato concreto do caso Miguel, tratamos destas questões no sentido macro da sociedade.
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O trabalho doméstico foi regulamentado há pouco tempo. Os direitos das domésticas estão sendo respeitados?
A morte de Miguel coincidentemente foi no dia que se comemorou cinco anos da Lei Complementar 150 de 2015, que regulamentou a PEC das Domésticas, que em tese teria igualado os direitos aos demais trabalhadores. Mas isso não é completamente verdade, porque o seguro-desemprego é menor, ainda persiste essa questão de ausências de normas de saúde, medicina e segurança do trabalho para essas trabalhadoras, a desproteção normativa às diaristas, tidas como autônomas. Além disso, há uma cultura de desrespeito à legislação trabalhista das domésticas. Ou seja, a gente ainda tem muito a percorrer.
A gente discute muito uberização, mas não se discute com a mesma veemência um trabalho extremamente precarizado, como é o doméstico. Há uma questão também de representatividade política. Afinal, quem está legislando são os empregadores e tomadores de serviços, quem julga também. Nesses postos maiores e de representatividade a gente precisa incluir as mulheres negras engajadas em mudar essa realidade. Está tendo uma campanha para que a vaga do STF [Supremo Tribunal Federal] seja preenchida por mulheres negras, algo histórico. Na Constituinte, por exemplo, o que as domésticas conquistaram foi graças, em grande parte, à atuação da deputada Benedita da Silva [única mulher a participar da mesa diretora da Assembleia Nacional Constituinte].
A gente teve recentemente o resgate de várias mulheres em situações análogas à escravidão no trabalho doméstico. Por que isso ainda acontece debaixo dos olhos de tanta gente?
Convivemos ainda com uma triste realidade de desumanização de pessoas negras. E o trabalho doméstico análogo à escravidão se insere neste contexto. Trata-se também de resquícios fortes de um passado escravocrata e de uma abolição ainda inconclusa no Brasil. Veja, sobre esta desumanização, o Miguel tinha apenas cinco anos e Sari, ao deixá-lo sozinho no elevador, não o enxergou criança, senão não o teria deixado sozinho. E isso por ser uma criança negra. Em um dos capítulos, em que analiso o trabalho doméstico e o racismo estrutural, há a frase de Mirtes que muito diz a este respeito: "Ela não trataria assim o filho de uma amiga".
O Brasil é um país com a cultura do trabalho doméstico e também é ele que muitas vezes possibilita que mulheres possam trabalhar fora e ter independência financeira. Falta uma sororidade entre essas mulheres de classe mais alta com as domésticas?
É categoria também marcada a aspectos ligados ao patriarcado e questões de cuidado, já que estas mulheres trabalhadoras também "resolvem" o reajando patriarcal da desigual distribuição de responsabilidade pelo cuidado da casa e pessoas, o que recai nas mulheres, ainda que trabalhem fora. É o trabalho da reprodução social fundamental à manutenção dos mecanismos do capitalismo.
É abordado isso em um capítulo. O estudo sobre os feminismos e sobre as chamadas ondas do feminismo, em relação à batalha de uma elite de mulheres brancas, que conquistou o direito ao voto e a trabalhar fora.
Contudo, as mulheres negras trabalhavam desde sempre e muito antes. O feminismo negro enfoca bastante essa questão de que, enquanto as mulheres brancas estavam procurando o direito ao voto, as negras estavam priorizando sobreviver. E, nesse arranjo do patriarcado, para mulheres conseguirem conciliar a desigual distribuição das tarefas de cuidado que lhes é imposta, se utilizam de trabalho de mulheres altamente precarizadas.
Nesse sentido, podemos falar que a sororidade, em muitos casos, não existe, ainda que se trate de uma relação envolvendo duas mulheres. Em um dos polos, há uma mulher atravessada por camadas de opressão, ligadas à raça e à classe. Dona Marta, avó do menino Miguel, e que também era empregada doméstica da casa de Sarí, fala "passei seis anos da minha vida cuidando da família de Sarí e ela não conseguiu olhar o meu neto por cinco minutos”.
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