SEGUNDA CHANCE

Histórias de alunos que ingressaram no curso de medicina com mais idade

A diarista Janecleia Sueli Maia Martins, 49 anos, passou 12 anos se preparando para passar no vestibular da Unesb

Diogo Albuquerque*
postado em 19/03/2023 06:00 / atualizado em 19/03/2023 06:00
A baiana Jane: 12 anos para conquistar vaga no curso mais disputado do país
 -  (crédito: Arquivo pessoal)
A baiana Jane: 12 anos para conquistar vaga no curso mais disputado do país - (crédito: Arquivo pessoal)
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Natural de Piritiba (BA) e moradora da periferia de Petrolina (PE), a diarista Janecleia Sueli Maia Martins conseguiu, aos 49 anos, realizar o sonho de estudar medicina, na Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Jane, como é conhecida, tem estudado para o vestibular tradicional da universidade desde a primeira prova da instituição, há 12 anos, além de prestar o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e outros vestibulares.

A história de Jane, no entanto, não é isolada. Um em cada três universitários brasileiros tem 30 anos ou mais, segundo dados do Censo da Educação Superior. Dados do Mapa do Ensino Superior no Brasil 2022 mostram que, entre os 3,1 milhões de inscrições no Enem 2021, 28% possuíam mais de 30 anos.

Na última semana, um caso de etarismo em uma universidade de Bauru ganhou repercussão após três jovens ridicularizarem uma estudante de 44 anos em um vídeo nas redes sociais. Uma das estudantes inicia o vídeo com frases como "Gente, quiz do dia: como 'desmatricula' um colega de sala?", e em seguida sua colega ironiza a estudante de 44 anos: "Mano, ela tem 40 anos já. Era para estar aposentada", e a terceira participante complementa; "Gente, 40 anos não pode mais fazer faculdade. Eu tenho essa opinião".

O etarismo é considerado crime desde 2003. De acordo com o Estatuto de Idoso, a pena prevista é de seis meses a um ano de reclusão e multa. A norma prevê, ainda, que também responde pelo crime pessoa que, por qualquer motivo, humilhe, menospreze alguém por causa de sua idade. As histórias dos universitários a seguir mostram a coragem em mudar de carreira e enfrentar possíveis preconceitos pela idade.

Caloura aos 49 anos

Oriunda de uma família humilde, composta pelo pai, que era vendedor ambulante, a mãe, empregada doméstica, a avó e mais cinco irmãos, a diarista Janecleia Sueli Maia Martins afirma que sempre foi o desejo dos pais que os filhos se formassem. "Eles não chegaram a concluir os estudos e trabalhavam muito, mas diziam para estudarmos para termos um futuro bom. Minha Avó foi quem me ensinou a ler e a escrever e concluÍ os estudos em 1994", conta.

Jane diz que seu sonho, desde criança, era estudar medicina. O sonho ficou ainda mais evidente quando a avó da passadeira morreu, após um diagnóstico de câncer de intestino, quando ela tinha ainda 11 anos. "Depois disso, falei pra mim mesma 'quando crescer, vou ser médica para curar essa doença'. Coisa de criança, né? Mas a ideia foi amadurecendo", relata.

Aos 16 anos, Jane se casou e, aos 17, teve a primeira filha. "Foi aí que as coisas ficaram mais difíceis. Então, passei a trabalhar e o sonho foi ficando de lado", diz. A motivação para voltar a estudar surgiu quando Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf) abriu um câmpus em Petrolina, em 2009. A partir do ano seguinte, Jane começou a estudar e prestou todos os vestibulares e o Enem até 2022.

"No início, estudava por meio de cursinhos preparatórios com bolsa e isenção, para adquirir uma base. Enquanto estudava, também trabalhava para conseguir pagar minhas despesas. Já trabalhei como repositora, atendente, faxineira, lavadeira, revendedora de cosméticos, fazendo marmita e, agora, como passadeira." Há quatro anos, Jane começou a estudar por conta própria com material emprestado e doado e com auxílio da internet. "Trabalhava até as 18 horas, chegava em casa, ia estudar e ficava madrugada adentro. Às vezes, acordava com a testa nos livros de manhã", acrescenta.

Em 2022, quando estava em um ritmo de estudos avançado, o pai de Jane morreu em decorrência de uma parada cardíaca. "Fiquei sem chão, sem ânimo. Fiz as provas com a expectativa baixa e sem motivação, mas consegui ser aprovada."

Jane soube da aprovação por meio dos amigos, em 27 de fevereiro. "Quando eles vieram me contar que meu nome estava na lista de aprovados, foi um misto absurdo de felicidade e surpresa, aquele momento, finalmente, tinha chegado. Ao mesmo tempo, fiquei triste porque achei que não conseguiria me matricular, já que a universidade é um pouco longe de onde moro", explica.

A matrícula de Jane na Uneb também foi um desafio. Isso porque, depois do resultado, a estudante teve dois dias — 28 de fevereiro e 1º de março — para poder concluir o processo junto à instituição, que fica a 500 quilômetros onde reside atualmente. "Como não tinha dinheiro, meu irmão rapidamente me mandou e eu corri para comprar a passagem. Foi o último ônibus do dia, saindo às 22h de 28 de fevereiro. Pedi ajuda aos vizinhos, reuni toda a documentação e fui apenas com R$ 30 no bolso para fazer o percurso na Bahia", lembra.

Depois de entregar todos os documentos, em 1º de março, Jane foi para a rodoviária à tarde e esperou os familiares depositarem o dinheiro para a passagem de volta. "Ainda bem que eu tinha todos os documentos que a universidade pede, faltaram apenas algumas cópias. Fui chegar em casa, em PetrolinA, próximo de meia-noite", lembra.

Quase desistiu

Ao longo do caminho de preparação para o vestibular, Jane relata ter sofrido preconceito por conta da idade. A passadeira se recorda de olhares de discriminação e piadas. "Falavam que eu era muito velha e que seria impossível eu conseguir a aprovação, tanto porque eu vim da escola pública, quanto porque eu conciliava os estudos com o trabalho. Tentava ser forte, mas, em casa eu desabava. Minha família me apoiava, mas depois de um tempo, começaram a desacreditar do meu sonho", conta.

Mesmo com as críticas que recebeu, Jane não se deixou abalar e diz estar ansiosa para as aulas na Uneb, que tiveram início em 13 de março. "Quero muito pegar o meu primeiro jaleco e o estetoscópio", destaca. Como a universidade fica distante de onde mora, ela vai se mudar para Salvador, onde pretende se manter com o dinheiro arrecadado em vaquinha virtual pela filha.

"Sigo com a vaquinha aberta para conseguir arcar com o aluguel, alimentação e com os materiais nesses primeiros meses. Depois, minha família vai me ajudando e também vou tentar ingressar nos programas de assistência social da Uneb", conclui, esperançosa. A intenção em cursar medicina, segundo Jane, nunca foi pelo dinheiro, mas pela causa. "Se fosse para ganhar dinheiro, eu vendia marmita. Eu amo essa profissão e quero poder ajudar o máximo de pessoas possível", defende. Depois de se formar, ela espera seguir na área de cirurgia oncológica.

*Estagiário sob supervisão de Ana Sá

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