Reflexos da covid

Quais são os impactos da pandemia para o mercado de trabalho?

Especialistas afirmam que o home office segue se consolidando como tendência, principalmente entre grandes empresas

Ester Cauany*
postado em 12/03/2023 06:00 / atualizado em 12/03/2023 06:00
Moradora do DF, Ana Clara Moroishi trabalha em Jundiaí (SP) -  (crédito: Speedio Academy)
Moradora do DF, Ana Clara Moroishi trabalha em Jundiaí (SP) - (crédito: Speedio Academy)

A analista de produto da Speedio, plataforma de big data para a geração de leads B2B, Ana Clara Moroishi, 23, trabalha em home office em Jundiaí (SP) desde que entrou na empresa, em agosto de 2021, e mora em Brasília. Para ela, a experiência do trabalho remoto é única e tem muitos pontos positivos. "Trabalhar em qualquer lugar do mundo, precisando apenas de um computador, é incrível. A possibilidade de mudar o ambiente de trabalho quando você quiser, inclusive em casa, sem precisar se locomover, gastando tempo pra ir e voltar do escritório, é sensacional", comemora.

Porém, também há pontos negativos, que ela afirma compreender bem. "Se a cultura da empresa não for forte o suficiente, as pessoas acabam não se engajando. Com isso, perdemos um pouco do calor humano, do presencial. É preciso ter uma cabeça boa para não confundir a hora de trabalhar com a hora de descansar, já que o ambiente acaba sendo o mesmo. Gosto muito mesmo do modelo de trabalho remoto. Encontrar com o time de vez em quando é fundamental, tanto pro engajamento da empresa, quanto pra gente ter mais motivação", afirma.

Para Moroishi, a flexibilidade do remoto é bem-vinda, embora ela se defina como uma pessoa que só consegue descansar quando, efetivamente, conclui suas tarefas. "A minha rotina é bem intensa, mas isso varia de pessoa para pessoa e também de empresa para empresa. Geralmente, fico em frente ao computador o dia inteiro, começando de manhã e terminando à noite. No meu caso na Speedio, não cumpro horas, mas demandas, conforme os diferentes projetos e prazos", relata.

Desde a explosão da Covid-19 no Brasil, em meados de março de 2020, o mercado de trabalho e toda a economia do país foram afetados, sobretudo os trabalhadores informais e assalariados que se viram forçados a recorrer ao minguado auxílio emergencial.

O que, até então, era simples e óbvio na hora de cumprir as demandas cotidianas se tornou complicado. As reuniões presenciais, que antes eram fundamentais para se planejar e alinhar expectativas, migraram para o mundo digital, por meio de plataformas de áudio e vídeo. E as mais diversas profissões precisaram se adequar a esta e tantas outras alterações na forma de trabalho.

Desafios e barreiras marcaram o mercado nos últimos anos. Demissões em massa, novas e urgentes demandas, profissões em declínio e falta de profissionais qualificados foram alguns dos maiores impactos observados no auge da pandemia.

O que diz os especialistas

Coordenadora de carreiras da Pontifícia Universidade Católica (PUC), Luciana Mariano Batista, responsável pelas demandas de estágio, emprego e carreira dos estudantes da instituição, lembra que, no momento em que a pandemia surpreendeu a todos, de forma avassaladora, o mercado de trabalho se recuperava de uma recessão de empregos ocorrida entre 2016 e 2017.

"Pessoas com baixo nível de formação e autônomas foram as mais afetadas. A desigualdade social também foi um grande problema. Mulheres que trabalhavam na área de estética ou que eram empregadas domésticas ficaram sem fonte de renda logo no início. Além disso, diversos outros serviços foram automatizados pela tecnologia, o que gerou ainda mais demissões em massa", diz.

A modalidade home office, que se consolidou como alternativa à quarentena durante o período crítico da pandemia, afetou drasticamente o funcionamento de vários setores, que, por necessidade, se adaptaram à internet para cumprir completamente suas funções diárias. Enquanto a telemedicina e serviços que puderam ser transformados em uma alternativa digital cresceram, por outro lado, serviços que dependiam de atendimento ao público foram significativamente afetados.

Luciana Batista observa que o mercado busca, agora, voltar à ativa, como em 2019. "Com expectativas para grandes índices de crescimento no pós-pandemia, as empresas estão ainda mais preocupadas com o bem-estar e condições de trabalho que coloquem o funcionário em ênfase, para engajar a volta ao presencial. Visto que, embora o trabalho remoto seja uma tendência, para alcançar as expectativas, é necessário ter profissionais comprometidos e o trabalho presencial facilita essa dinâmica", avalia.

"Quando migramos para o home office, a gente mudou muito. Muitos colaboradores dizem que trabalhavam demais em casa, justamente porque a execução das atividades trabalhistas eram em uma frequência diferente da rotina de um escritório ou da empresa", pontua. "É difícil conciliar louça, almoço e demandas do trabalho", completa a especialista.

Ainda segundo ela, com o passar do tempo, as pessoas se acostumaram com as novas possibilidades de trabalho e encontraram formas de lidar com o novo modelo. Hoje, afirma, para retornarem ao formato presencial, algumas empresas estão fazendo pesquisas de clima para entender as condições de retorno de seus profissionais.

O executivo César Heli, CEO da Magicel, consultoria de riscos empresariais para áreas de saúde, capital humano, benefícios e gestão de riscos, com sede em Curitiba (PR), conta que está com dificuldade para chamar as pessoas de volta para as atividades presenciais. "Antes elas não queriam ir embora. Agora, têm dificuldade para retornar. Muitas já se acostumaram com o novo modelo de trabalho", diz.

Para ele, há um problema que precisa ser solucionado: o engajamento das pessoas e o comprometimento com os valores da empresa, segundo ele, fatores essenciais para o crescimento da corporação. "A sensação que temos é a de que os funcionários, por estarem cada um em sua casa, realizando de forma muito individual suas demandas, acabam se descolando da cultura da empresa, que é a principal responsável por lembrá-los do compromisso com o crescimento profissional", diz. "Se a pessoa não está na empresa, ela não assimila por osmose a cultura", conclui.

Heli compreende que desenvolvedores e pessoas que trabalham com tecnologia estão acostumados com o home office e que, não necessariamente, precisam estar inteiramente alinhados com a corporação. "Os funcionários precisam sentir o coração da empresa bater", diz. "E esse movimento é garantido por gestores que levam a paixão pela firma até o funcionário, e facilita o processo de reintegração. Capacitar bons gestores para lidar com o pós-pandemia também é um dos problemas que o mercado está avidamente procurando solucionar", ressalta.

Para voltar a engajar seus funcionários, Heli remodelou algumas estruturas de sua empresa, incluindo uma grande reforma no escritório para atrair as pessoas. Ele conta que o novo espaço é voltado, também, para o conforto dos colaboradores, que estão, aos poucos, se desprendendo do ambiente doméstico para executarem suas funções. "A pandemia veio como um tsunami. Poucas empresas estão tão bem preparadas. Agora, grandes tendências estão surgindo. As pessoas não pensam só na remuneração. Elas querem trabalhos que tragam significado às suas vidas profissionais, estão priorizando a diversidade dentro das empresas e também a relação entre suas vidas profissionais e a saúde", afirma.

Visão dos funcionários

Raimer: expediente em casa na companhia da cachorra  Shioban
Raimer: expediente em casa na companhia da cachorra Shioban (foto: Arquivo pessoal )

Alguns profissionais consideram o home office uma alternativa importante e de grande retorno, e pensam em jamais voltar para um emprego com demandas apenas presenciais.

O engenheiro de software Gilberto Mattiello, 40 anos, trabalha em modelo híbrido no Meu Pet Club, empresa que oferta planos de saúde para cães e gatos. Ele lidera uma equipe com outros colaboradores da área de tecnologia que estão espalhados por todo o país. Na empresa, somente a equipe de Mattiello atua estritamente nesse formato. "Trabalho com tecnologia desde os 12 anos de idade. Então, já estou acostumado com o formato das demandas. Quando se trabalha com tecnologia, é preciso ser responsável pela entrega das demandas. Se não entregamos, então nosso chefe sabe que estamos em casa sem fazer nada", diz.

Mattiello conta que, em diversos momentos, já passou do horário de trabalho definido e que não se importa muito, mas compreende que a liberdade do home office é compensadora. Porém, ele, que precisa ir algumas vezes ao escritório da empresa, comenta que o ambiente é confortável e sente prazer nas vezes em que precisa resolver demandas presenciais. "Conversando com pessoas de outras empresas, percebi que até mesmo alguns profissionais de tecnologia têm dificuldade em lidar com essa forma de trabalho. O que vejo no meu time é completamente o oposto", afirma.

O analista técnico de políticas sociais da Controladoria-Geral da União (CGU), Raimer Rodrigues, 44, conta que, embora a pandemia tenha surpreendido a todos, o órgão já contava com pelo menos 20% de seus servidores em trabalho remoto ou híbrido, uma vez que estava sendo testado um escritório digital. Para ele, trabalhar presencialmente não é tão produtivo quanto trabalhar de casa, visto que já está no formato híbrido desde março de 2020, quando o vírus passou a circular em maior ênfase no Distrito Federal.

"A delimitação da carga horária menos rígida não me incomoda. Passar do horário acontece também no presencial", explica. De acordo com Rodrigues, a CGU chegou a emprestar cadeiras e outras ferramentas do escritório para que os colaboradores pudessem desempenhar melhor suas funções em casa. "Também tivemos uma fisioterapeuta que nos ensinou melhor posição para a ergonometria do nosso trabalho e até aulas remotas de Yoga", lembra.

O marido de Rodrigues é procurador do Banco Central e também está em trabalho remoto. Juntos, eles adotaram a cadela Shioban, ainda em 2020. A mascote é a responsável por lembrá-lo,s muitas vezes, que está na hora de sair das telas um pouco. Rodrigues está cursando, agora, um MBA em ciência de dados pela Universidade de São Paulo (USP), durante a noite. Por isso, decidiu não mais estender sua carga horária.

O diretor de operações da BNE, um dos maiores sites de empregos do Brasil, José Tortato, 42, tem 20 anos de experiência no setor de TI, com foco em recursos humanos. Ele conta que a BNE expandiu suas contratações internas durante a pandemia, permitindo que pessoas do país e também do exterior fizessem parte do quadro de funcionários. No entanto, voltando às operações presenciais, o escritório da empresa em Curitiba (PR) mostrou não ter capacidade para comportar o volume de colaboradores. A alternativa foi mantê-los em home office, híbrido, e promover escalas para utilização dos espaços físicos.

Segundo Tortato, todas as salas de reuniões da empresa passaram por mudanças para comportar funcionários que precisam participar de conferências e encontros de forma remota. A empresa também está preocupada com a integração de seus colaboradores, por isso, promove integrações presenciais em sua sede para colaboradores de outros estados e países. "Tivemos que colocar no meio digital tudo o que praticamos no presencial", revela.

Uma gestora global 

Isabela Bonfim
Isabela Bonfim (foto: Arquivo Pessoal)

Gestora de projetos na Ontex, empresa belga de protetores hospitalares, com presença em outros países, Isabela Bonfim, 31, explica que, antes da pandemia, a empresa já realizava reuniões on-line com funcionários de outros lugares do mundo. "Durante a pandemia, o que mudou foram as formas de reuniões com as pessoas na mesma região, que passaram a fazer esses encontros on-line", conta.

"A gente viu aqui que, no dia a dia, não foi tão complicado migrar para esse ambiente virtual. Nos primeiros meses, a própria empresa notou que a existência do escritório não era tão necessária. Tínhamos um prédio com cinco andares que, durante o auge da pandemia passou para três pavimentos. E eu recebi, recentemente, um e-mail informando que as instalações físicas serão reduzidas ainda mais, agora para dois andares e com mesas rotativas, com reservas. O objetivo do escritório, hoje, é mais voltado para o encontro com os outros colaboradores", diz Bonfim.

A gestora percebe que essa redução também está ligada à otimização de gastos da empresa. "Deixaram a gente levar materiais para casa. Eu, por exemplo, trouxe a minha mesa do escritório, embora em casa conte com a mesma estrutura. A empresa me deixou, ainda, levar para casa outros equipamentos. Dessa forma, consigo trabalhar com a mesma qualidade", conta Bonfim, considerando que trabalhar de casa é a melhor forma de garantir maior produtividade. "As idas ao escritório são destinadas apenas à interação com os colegas e o tempo em casa é voltado para as demanda", diz.

Estagiária sob a supervisão de Ana Sá

 

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