Eu, Estudante

Inclusão

Aos 88 anos, finalmente frequentando a escola

Piauiense, que veio para Brasília no início da década de 1960, vai estudar na mesma escola onde trabalhou como faxineira e porteira há 50 anos

Costureira, artesã e bordadeira de mão cheia, a mais velha estudante do ensino fundamental do Distrito Federal sonha em fazer faculdade de moda. Aos 88 anos, a aposentada Luíza Maria dos Santos sempre sonhou em frequentar a escola e também lecionar, mas a pressão do marido — falecido há seis anos e com o qual teve 10 filhos — sempre atrapalhou seus planos. Recém-matriculada no programa Educação para Jovens e Adultos (EJA) no Centro Educacional de Ensino 04 (CED 04), no Guará, onde trabalhou como faxineira e porteira entre os anos 1960 e 1970, ela passou a ser a sensação da escola logo no primeiro dia de aula, na segunda-feira (13).

Avó de cinco, bisavó de três e com três stents implantados no coração, Luíza conta que chegou a se matricular pelo menos quatro vezes em diferentes escolas para tentar dar vazão ao seu maior desejo. Ia escondida às aulas, mas o ciúme do companheiro sempre falou mais alto. "Ele não queria que eu aprendesse a ler nem escrever para não mandar cartas e nem receber correspondências de outros homens. Descobria onde eu queria estudar, ia lá e me levava pra casa, na marra. Como sou da época em que mulher foi educada para respeitar o esposo, acabava cedendo", recorda, completando que, além da pressão do marido, o fato de ter engravidado sucessivas vezes a impedia de tentar outras atividades, principalmente esrtudar. "Hoje em dia é diferente, a mulher tem que estudar onde ela gosta e fazer o que quiser, na hora que lhe der na telha", afirma.

Atrás da porta

Ed Alves/CB/DA.Press - Aos 88 anos, dona Luíza Maria realiza um sonho que acalentava desde criança: ir à escola e aprender a ler e escrever corretamente. Aposentada vai estudar no mesmo local onde trabalhou como faxineira

Nascida em Alto Longá e criada em Campo Maior, no Piauí, em uma família também numerosa, de 13 irmãos, Luíza passou a infância e parte da adolescência acompanhando o pai na roça, capinando e plantando mandioca. Depois da colheita, era encarregada de descascar e moer o tubérculo para fazer farinha e alimentar a todos. Além disso, cabia a ela ir todos os dias no riachinho pegar água e encher os potes de barro para a mãe cozinhar.

"Foi uma infância pobre, mas muito boa. A gente não ia pra escola, mas brincava, cantava e dançava no terreiro. Tudo pra gente era festa", lembra Luíza, que veio com o marido e dois filhos para Brasília em 1962, logo depois da inauguração da nova capital, se estabelecendo no Guará, onde vive até hoje.

"Trabalhei muito desde então, sempre em escolas, fazendo limpeza, até que, depois de dez anos naquela função, fui promovida e passei a ficar nas portarias, tocando o sinal e levando recados para os professores e diretores. Foi assim em quatro escolas diferentes", diz, confessando que o fato de viver em um ambiente que sempre lhe despertou fascínio, mas não podia sequer pensar em aprender a ler e escrever corretamente, sempre foi motivo de angústia, embora velada.

"Tinha vontade de crescer, de aprender as coisas, ver o mundo de forma diferente. Agora, qualquer coisa pra mim vai ser novidade, até uma palavra que não conheço", diz, recordando que, no Piauí, via os filhos de fazendeiros estudando com professores particulares e tentava aprender alguma coisa ouvindo atrás da porta, mas não adiantou muito. "Tudo o que sei hoje aprendi por conta própria", diz.

Descobrindo o EJA

Ed Alves/CB/DA.Press - A nova aluna posa em frente a escola onde trabalhou como faxineira

Depois de perder o marido, Luíza passou a estudar em casa. Contratou uma professora particular, mas não demorou muito para dispensá-la, por ser muito caro. "As aulas estavam pesando no meu orçamento. Pagava R$ 50 por hora e ficava muito caro no final", lamenta. Em seguida, prossegue ela, assistindo à tv, viu uma matéria sobre a abertura de inscrições para o EJA e ficou sabendo que o processo de matrícula poderia ser feito por meio de um simples telefonema. "Foi no dia 10 de janeiro. Liguei para o número 156 imediatamente e resolvi meu problema. Ninguém lá em casa ficou sabendo, fiz tudo sozinha. Finalmente estou pronta para aprender. Era tudo o que eu queria. Hoje leio um pouco gaguejando, mas vou me esforçar para melhorar. O pouco que eu souber já vai me valer muito. Me sentirei formada", comemora.

Carinho e muita selfie na primeira aula  

Arquivo pessoal - Acolhida pelo diretor e a vice do CED 04, Rogério e Ana Patrícia, no primeiro dia de aula

O primeiro dia de aula de dona Luíza Maria dos Santos foi marcado pelo carinho dos colegas, professores e funcionários do Centro Educacional de Ensino 04 (CED 04) do Guará. Todos queriam se aproximar, tirar fotos, saber quem era aquela extrovertida senhora de cabelos cor de rosa, que esbanjava alegria e simpatia. Para ela, tudo foi novidade e encantamento, desde o material escolar que recebeu da escola até a suculenta galinhada com salada servida no recreio.

"Fui logo fazendo amigos, querendo saber de tudo. Todo mundo queria tirar foto comigo, perguntava o motivo de eu estar estudando nessa idade, o que eu faço da minha vida e tudo mais. Me senti muito acolhida. Não tenho palavras para descrever a emoção que vivi naquele momento. Foi maravilhosamente incrível", afirma a nova estudante, que aproveitou todo o assédio para tentar vender a rifa de uma colcha de retalho feita por ela mesma, "para comprar um telefone celular bom, que preste mesmo". "Meus filhos me dão um de vez em quando, mas tudo velho, que não presta", brinca.

"Agora que cheguei onde sempre quis, vou conhecer melhor o mundo. Espero ter sempre saúde e boa memória para guardar todo o ensinamento que vier pela frente", comemora dona Luíza, afirmando que, tirando o torresmo de cada dia, leva uma vida saudável, faz exercícios, dança todos os dias ouvindo o rádio e ama carne de bode — até mesmo cérebro cozido —, "como todo bom piauiense", e foge de bebida alcoólica "como o diabo foge da cruz". "Agora quero me formar, fazer uma faculdade, ser estilista reconhecida e reformar minha casinha pra deixar de herança pros meus netos e bisnetos", revela.

Sonho realizado

Ed Alves/CB/DA.Press - Com a filha mais velha, Ingracia Maria, e o neto Lucas: apoio e ensinamentos mútuos

Filha mais velha de dona Luíza, a corretora de imóveis Ingracia Maria Campelo, 58, lembra que desde o último Natal a mãe já avisava que iria finalmente estudar e jurava que sua antiga meta seria cumprida neste ano. "Todos disseram a ela que já sabiam dessa vontade, mas argumentávamos que isso não era preciso nessa altura do campeonato, que ela deveria fazer outras coisas. Mas ela teimou e correu atrás do tempo perdido, e isso nos encheu de orgulho. É um grande incentivo, um exemplo de vida para todos", diz, pontuando que, apesar de os pais serem semialfabetizados, todos os filhos fizeram faculdade. A filha caçula, Conceição de Maria, chegou a realizar o sonho que a mãe sempre acalentou para si, graduando-se em pedagogia, mas morreu prematuramente, aos 42 anos, em um trágico acidente de carro.

O analista de sistemas Lucas Alves Campelo, 26, neto xodó de dona Luíza, conta que aprendeu o real sentido da palavra perseverança com a avó. "Ensinei a ela a lidar com computadores e telefone celular. Vovó sempre teve vontade de aprender coisas novas e sua memória é excelente. Para nós, sempre foi o maior exemplo. E agora, mais do que nunca. Já estamos nos preparando para a formatura", diz.

Na modalidade EJA, dona Luíza deverá concluir o ensino fundamental em dois anos. Depois, levará mais um ano e meio para fazer o ensino médio. Na primeira fase, segundo a vice-diretora do CED 04, Ana Patrícia dos Santos, ela será assistida por oito professores, que dividirão sua atenção com uma turma de cerca de 30 alunos na faixa etária de 17 a 35 anos. "É a aluna mais velha que já recebemos na escola. Tivemos um nessa faixa etária, mas ele se formou aos 86. Para todos nós é uma grande emoção. Certamente teremos muito que aprender com ela, pois a educação é uma via de mão dupla. Dona Luíza já fala até em ensinar costura e tricô pra os colegas e quer promover um grande bazar na escola. Com certeza, vamos cuidar muito bem dela. Nosso lema sempre foi acolher com o coração aberto", assegura.

Matrículas em queda

Ed Alves/CB/DA.Press - Observando o painel instalado no corredor do colégio: encantamento

O diretor do CED 04, Rogério  Nunes Passos, disse que ficou surpreso ao verificar as salas de aula na última segunda-feira e se deparar com dona Luíza entre tantos novos alunos mais jovens. "Quando vi aquela senhora de cabelo rosa, muito extrovertida, comunicativa, com um pique de dar inveja, fiquei intrigado. Ao saber que era uma nova aluna, quase caí pra trás. Fiquei pasmo, embasbacado", disse.

Passos lembra que no fim de semana anterior ao início das aulas, ele e um grupo de professores fizeram uma panfletagem na feira do Guará, convocando pessoas a se integrarem ao EJA e chegou a pensar que dona Luíza fosse algum dos abordados na ocasião, mas ao saber de toda a sua história ficou comovido. "Ela é a cara desse chamamento, um símbolo para o EJA. Certamente vai encorajar muitos jovens e também idosos a terem a mesma iniciativa", acredita.

Segundo ele, a procura pelo EJA vem caindo a cada ano. Em 2021, lembra, o Guará e a Estrutural contavam com cinco escolas que ofereciam essa modalidade. Hoje, restam apenas duas. Além disso, o número de matrículas somente no CED 04 vem caindo drasticamente. Passos afirma que em 2022 foram registradas 346 e, neste ano, a redução foi da ordem de 30%.

Censo 2022

Recém-divulgada pelo Ministério da Educação e Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), a primeira etapa do Censo Escolar 2022 revela entre 2019 e 2020 migraram para o programa Educação de Jovens e Adultos (EJA) cerca 230 mil alunos dos anos finais do fundamental e 160 mil do ensino médio. São estudantes com histórico de retenção, que ainda não concluíram o ensino regular, buscando meios para concluir os estudos. Aplicado pelo Inep, o Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos (Encceja), segundo o MEC, tem se firmado como uma alternativa para a obtenção do certificado dessas etapas de ensino da educação básica. Em 2019, o Encceja teve um número recorde de inscritos: 3 milhões. Nas edições de 2020 e 2022, foram 1,7 e 1,6 milhão de pessoas inscritas, respectivamente — não houve aplicação em 2021, em função da pandemia.