Com a imagem associada à rica indústria do tabaco, lavouras de fumo costumam ser mostradas como propriedades prósperas e bem organizadas. A generalização, porém, é uma falsidade. Em alguns casos, as condições de trabalho são tão precárias que levaram fumicultores a integrar o cadastro de empregadores que submeteram pessoas a condições análogas à escravidão. Atualmente, três produtores de fumo do Rio Grande do Sul estão na chamada "lista suja" do trabalho escravo.
Em janeiro de 2021, uma fiscalização do Ministério do Trabalho resgatou três trabalhadores de condições análogas à escravidão na propriedade Torcato Junior Tatim, dono de uma lavoura de fumo em Fontoura Xavier, a 137 km de Santa Cruz do Sul (RS). Os resgatados moravam em barracos de madeira com chão batido construídos nos fundos da propriedade da família Tatim. Dois deles, mãe e filho, tinham deficiência intelectual e não sabiam ao certo há quantos anos moravam ali nem quanto recebiam de salário.
Segundo relatório produzido por auditores fiscais, a qual a Repórter Brasil teve acesso, Tatim possuía contrato de venda de fumo com a Universal Leaf Tabacos Ltda, subsidiária brasileira da multinacional americana Universal Leaf. O produtor entrou na "lista suja" do trabalho escravo em maio de 2022.
De janeiro de 2021 a janeiro de 2023, a filial brasileira da Universal Leaf mandou o fumo adquirido pela empresa a produtoras de cigarros em 52 países, segundo dados alfandegários acessados pela Repórter Brasil. O principal destino foi a Bélgica, maior consumidor do tabaco brasileiro, seguido pela Indonésia e Estados Unidos.
A reportagem entrou em contato com o produtor Torcato Tatim e com a Universal Leaf, que não responderam até o fechamento deste texto. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Os outros dois fumicultores citados na "lista suja" do trabalho escravo são de propriedades localizadas no município gaúcho de Venâncio Aires, o quarto maior produtor de fumo do país. O primeiro caso foi de um trabalhador resgatado em 2019. A segunda ocorrência, também com um trabalhador libertado, é do ano seguinte.
Durante dez anos, entre 2011 e 2021, foram realizadas apenas seis fiscalizações em propriedades de fumo – quatro no Rio Grande do Sul e duas em Santa Catarina. Nessas operações, 41 trabalhadores foram resgatados, de acordo com dados do Ministério do Trabalho sistematizados pela Repórter Brasil e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Difícil equilíbrio econômico
No Brasil, as indústrias do tabaco encontraram um vantajoso modo de aquisição de matéria-prima por meio de contratos de integração. Nesse esquema, a tabageira fornece os insumos necessários no início de cada safra, como sementes e agrotóxicos, e estima a quantidade necessária de fumo a ser entregue ao final para pagar esse adiantamento. O que sobra é lucro para as famílias. O problema é que nem sempre há sobras e o fantasma da dívida perturba o sono das famílias fumicultoras.
"Sempre deu pra se escapar. Meio apertado, mas sempre deu e sobrou um pouco para passar o ano", explica João, fumicultor dono de 87 mil pés de tabaco em Santa Cruz do Sul (RS). Na última safra, ele e os dois filhos, de 23 a 26 anos, venderam a produção para a China Brasil Tabacos, que pagou quase R$ 300 pela arroba de fumo seco, o equivalente a 15 quilos do produto. O valor pago foi alto – e atípico. Por conta das chuvas em Santa Catarina, a oferta do produto diminuiu e os produtores gaúchos e paranaenses receberam mais que o esperado. Na safra anterior, o preço mínimo pago pelo fumo de melhor qualidade foi de R$ 188 a arroba.
João é um nome fictício. O verdadeiro nome do fumicultor e de todos os demais trabalhadores e produtores entrevistados pela reportagem foram ocultados neste texto para evitar represálias, como o cancelamento do contrato de venda de fumo.
Para Joaquim, produtor com contrato com a Philip Morris no município de Vale do Sol (RS), a última safra "deu esperança" para muitos fumicultores. "Ano passado a compra do fumo não dava pra reformar um galpão, não sobrava pra manter as outras coisas. Com o valor pago pela arroba esse ano muita gente conseguiu ao menos sair das dívidas, conseguiu dar uma estabilizada. Tinha muito colono endividado".
A esperança de que "ano que vem vai ser melhor" tem mantido as famílias na atividade, avalia Luiza Damigo, orientadora da Associação Agricultura Familiar e Agroecologia (AS-PTA) em Palmeira (PR). "A gente sempre escuta: ‘ah, mas ano que vem vai ser melhor assim, mas ano que vem vai recuperar’. Às vezes, vem um ano que dá muito bom, e a família decide continuar, porque sente que equilibrou."
Emerson Rech, 30 anos, é filho de fumicultores e vive em Rio Pardo (RS), onde produz hortaliças e frutas orgânicas na praça central do município. A facilidade de escoamento da produção em áreas distantes dos centros urbanos e a garantia de compra – ainda que a classificação da qualidade do fumo seja definida apenas pela indústria – são fatores que fixam os produtores no setor, avalia. "No sistema integrado, a empresa fornece os insumos, garante a compra e o caminhão vem buscar na propriedade. Acaba acomodando o produtor nesse sistema".
Sem fazer contas
É comum ouvir fumicultores e ex-fumicultores dizendo que "não fazem as contas" do lucro exato obtido com a produção de fumo. Saber quanto vale a sua hora trabalhada, então, é dado que nenhum deles tem na cabeça. "Eles acham que se pegou o dinheiro no final da safra, é lucro. Mas e todos os dias que você trabalhou, não conta?", questiona a ex-fumicultora Sandra Mara Ponijaleki Lopes, de 33 anos. "Acho que essa conta ninguém parou pra fazer. Porque, se fizesse, desanimaria."
Sandra e o esposo deixaram de plantar tabaco em Palmeira (PR) depois de "quase perderem tudo" para honrar as dívidas contraídas com a multinacional Universal Leaf. Em 2017, cerca de 60 mil pés não produziram o esperado e a família Ponijaleki ficou devendo para a tabageira. A dívida precisou ser parcelada durante três anos: R$ 14 mil era a dívida do casal, R$ 21 mil era o total devido pelo pai da ex-produtora e R$ 17 mil era a dívida do irmão de Sandra. "Eu disse que iríamos perder tudo se continuássemos nessa loucura. Por isso decidimos arriscar e começamos a plantar verdura", explica Sandra.
A família toda chegou a plantar 250 mil pés de tabaco em 13 hectares. Nos últimos cinco anos, passaram a se dedicar ao cultivo de batata doce, abobrinha, beterraba, couve, repolho, arroz, amendoim, chuchu, pepino, alho poró e criação de porcos. Vendem a produção para vizinhos, escolas e mercados na região. "Nós não tínhamos nem um pé de cebolinha. Comprávamos tudo de fora. Hoje, os vizinhos saem da propriedade deles para comprar verduras aqui na minha".
"Se você analisar, R$ 300 numa arroba de fumo é bastante dinheiro, mas quanto você gastou para produzir aquela arroba de fumo?", questiona José, fumicultor em Santa Cruz do Sul. "[Ao final da safra] Vai dar R$ 100 mil, mas R$ 80 mil eles não sabem que já gastaram." O produtor decidiu reduzir a área plantada e ficar com apenas 26 mil pés de fumo, vendido para a multinacional Alliance One. No restante da propriedade cultiva tomate, verduras, uva e cria abelhas. "O fumo gera três meses de lucro e nos outros oito, nove meses você só gasta. Se não diversificar a propriedade, se ficar só com o fumo, você não consegue viver. Era a minha família inteira trabalhando o dia inteiro. É uma cultura que envolve muita mão de obra, e se tornou cara", completa.
Trabalho 24 horas por dia
A necessidade de mão de obra no setor é intensiva, especialmente no verão, período de colheita. Nesse período, nem as noites de sono são respeitadas. É preciso colocar as folhas do tabaco para murchar e secar em estufas, que são alimentadas pela chama de fornos a lenha.
"Tem trabalho 24 horas por dia", explica Bruno, fumicultor com contrato com a British American Tobacco (BAT) em Palmeira (PR). "Eu ligo a estufa e preciso ficar atento para quando ela soar o alarme, então preciso abrir a porta e ver como está. Se eu deixo ela muito quente, pode queimar." A estufa elétrica espalha o calor, mas o fogo é alimentado com a lenha. "Esses meses eu coloco um colchão do lado da estufa e durmo ali mesmo. Não pode ser confortável. Tem que ser meio sentado, que é para acordar quando a estufa apitar. Se eu deitar confortável na cama, não escuto o barulho e não levanto".
O trabalho desgastante e mais intenso durante a época da colheita tem criado dificuldades para os fumicultores, que precisam pagar um valor que consideram alto pela mão de obra. É o caso de Cristiano, que planta 12 mil pés de tabaco em José Boiteux (RS) e possui contrato com a Philip Morris.
Na região, indígenas da Terra Indígena Ibirama-Laklãnõ são contratados para diárias. O fumicultor atualmente paga R$ 200 por dia, mas tem dificuldade para encontrar mão de obra. "Eles não querem trabalhar muito. Muitos preferem ficar recebendo ajuda, em casa. Uns dizem que passam fome, mas trabalhar que é bom, ninguém quer", diz o fumicultor, pai de um rapaz de 22 anos que cursava educação física, trancou o curso na pandemia e prefere trabalhar na zona urbana do município.
Flagrante de trabalho infantil
Com o alto valor da diária para contratar trabalhadores avulsos, algumas famílias incluem os filhos adolescentes na colheita do tabaco. É o caso do produtor Daniel, que planta 20 mil pés de fumo em Palmeira, no Paraná.
Num sábado ensolarado, ele, a esposa e o filho de 16 anos colhiam a baixada do fumo, folhas mais largas que crescem na base da planta. "É um trabalho difícil. A gente planta, limpa (os matos que crescem), depois colhe quatro, cinco vezes. Mas é a única alternativa aqui pra gente", diz o produtor.
Seu filho está no primeiro ano do ensino médio. Naquele mês de novembro, quando a Repórter Brasil conversou com a família no campo, ele não tinha certeza se atingiria as notas exigidas para ser aprovado na escola. Junto da família também estava a pequena Sofia, de 6 anos, que brincava entre os tambores usados para armazenar a água que será misturada com o agrotóxico.
Daniel sabe que o trabalho de adolescentes e a presença de crianças na lavoura é um problema. "Minha sogra não pode ficar com a Sofia hoje, então trouxemos ela. Se a empresa passa aqui e vê, dá problema, cancelam o contrato. Por isso é melhor vender para um picareta. Não tem problema com isso", explica. "Picaretas" é como são chamados os compradores de fumo que atuam como intermediários entre os fumicultores e as indústrias. "O picareta não quer saber de nada. Ele só vem, compra o produto e vai embora", completa.
Em um estudo publicado em 2021, pesquisadores das faculdades de medicina da Universidade Federal de Pelotas e da Universidade Federal do Rio Grande entrevistaram 99 crianças e adolescentes que trabalhavam em lavouras de fumo de São Lourenço do Sul (RS) em 2011. Do total de entrevistados, ao menos 25% já tiveram intoxicação de nicotina, conhecida como Doença da Folha Verde do Tabaco, quase 30% sentiam dores nas costas e 3% já sofreram intoxicações por agrotóxicos usados nas lavouras de fumo. Os pesquisadores identificaram a substância cotinina – encontrada na nicotina – na urina de 12 crianças e adolescentes, todos não fumantes.
Questionadas sobre a compra de fumo de "picaretas", as empresas JTI e a Alliance One afirmaram que adquirem tabaco exclusivamente de produtores integrados. Já a Philip Morris afirmou que, além dos fumicultores com contrato com a empresa, também compra de "parceiros comerciais que possuem boas práticas e políticas de governança implementadas".
A BAT respondeu que 75% do fumo adquirido pela empresa vêm de produtores integrados e que monitora os agricultores contratados por fornecedores terceirizados. Em relação à dívidas, JTI, Alliance One e Philip Morris informaram que o índice de quitação entre os fumicultores integrados é maior que 99%, já a BAT não respondeu a esse questionamento. Leia as respostas, na íntegra, aqui.
A Universal Leaf não respondeu os questionamentos até o fechamento desta reportagem. O espaço segue aberto para manifestações futuras.
Esta reportagem foi realizada com o apoio do Journalismfund.eu