Mais que um dom, o professor Valdir Sodré, 54 anos, considera ter talento para a matemática. O segredo para o bom desempenho na disciplina, que vem desde a infância e se refletiu na carreira escolhida para a vida adulta, está não só no esforço e na dedicação, mas na forma de encarar o processo de ensino e aprendizagem. A criatividade é, na visão dele, elemento essencial nessa equação, com o perdão do trocadilho. “Falta na sala de aula de matemática trabalhar com a arte. E eles (alunos) gostam disso. Matemática não é só técnica, não é só fórmula”, atesta.
“O problema dos professores de matemática é que eles se prendem muito à técnica, a fórmulas, a jeitos de fazer o cálculo. Como é que fica o processo criativo?”, questiona. É dessa interrogação e inquietação permanentes que Valdir alimenta o ofício, que se transformou e se ressignificou ao longo dos anos.
O projeto mais recente surgiu do trabalho desenvolvido durante a pós-graduação, que pareceu fazer o casamento perfeito com uma necessidade urgente da escola em que lecionava, o Centro de Ensino Fundamental 8 do Guará. Os índices reprovação em matemática eram altos e o desempenho dos estudantes na Prova Brasil e no Ideb distante do ideal. Foi então que Valdir moldou um programa de reforço para recuperar aprendizagens.
O mestrado na Universidade de Brasília (UnB), entre 2013 e 2015, foi o primeiro passo. “Pesquisei avaliação da aprendizagem. Estudei isso na perspectiva da percepção que os docentes tinham. Como é que o professor está entendendo esse processo avaliativo dentro da rede”, descreve o docente. A pesquisa teve continuidade no doutorado, que começou em 2020 e para o qual está afastado das atividades. “Eu estou pesquisando a questão do feedback. Como o professor trabalha esse feedback em sala de aula, se dá uma prova, por exemplo.”
O sucesso foi tamanho que o reforço em matemática entrou no projeto político pedagógico da escola em 2010 e outras disciplinas também passaram a adotar a estratégia, a partir do trabalho de professores readaptados, como é o caso de Valdir, que passou pelo processo de readaptação após diagnóstico e tratamento de transtorno bipolar.
“A sala de aula estava virando, para mim, um fator estressante. Eu precisava achar um outro lugar, precisava sair dessa sala de aula. Estou com uma experiência de 34 anos de magistério. Quando chegou em torno dos meus 25 anos de carreira, eu já não estava fluindo mais do jeito que fluía. Mas eu não queria deixar de dar aula, isso não conseguiria. Foi aí que nasceu o projeto de reforço”, revela.
“Eu fazia questão de não largar a docência. Se eu não posso trabalhar com 30, 40 alunos, eu posso trabalhar com um, dois, três, quatro, cinco. No projeto, são até três ao mesmo tempo”, detalha Valdir. Para concretizar a tarefa, a parceria com a professora Maria Cristina Araújo Barros foi fundamental. É ela quem está à frente das atividades na escola durante a licença do professor.
Valdir é, hoje, uma espécie de conselheiro da direção e, mesmo distante para concluir a pesquisa, não deixa de visitar a escola. Com orgulho, relata que muitos colegas elogiam sua inteligência, mas confessa que prefere o adjetivo “inteligível”, e explica o motivo: “Quando eu comecei, lá na Ceilândia, a dar minhas aulas de matemática, passei a me questionar: ‘Como é que eu posso ser um professor de matemática melhor, mais competente?’ Aí eu percebi que eu tinha que ter uma habilidade fundamental: eu preciso de uma melhor oratória, preciso me comunicar melhor”.
E assim o fez. Preparou-se como sugere que outros professores se preparem. “Nós, como professores, quando acabamos a faculdade apenas começamos o processo. Precisamos dar asas, cuidar da nossa formação continuada”, diz Valdir, para em seguida elencar o número de opções que um docente, especialmente na rede pública pode ter.
E ele não deixou uma oportunidade escapar. Deu palestras; foi consultor no Inep para Saeb e Prova do Brasil; diretor do Centro de Ensino Fundamental 1 do Núcleo Bandeirante; coordenador local no Centro Educacional 1 do Riacho Fundo; coordenador intermediário da Regional do Núcleo Bandeirante; professor no projeto Gestar da Eape; atuou na Faculdade de Educação da UnB no Professor Nota 10; e integrou a equipe de formadores do Ceform quando da mudança do ensino fundamental de 9 anos.
Onde tudo começou
Valdir é carioca e se mudou para Brasília na adolescência. “Lá no Rio de Janeiro, eu sempre fui o aluno destaque em matemática, na sala e na escola”, conta ele, que morava à época em Irajá, Zona Norte do Rio. “Eu era um aluno muito bom em matemática. Fora da média.”
A história de como alcançou esse feito ele sempre conta aos estudantes. “Os olhos deles não piscam os olhos quando você conta da tua vida, o que você fazia na idade deles”, descreve. “Eu estudava de manhã e, à tarde, estava em casa. Se eu tivesse aula de matemática segunda, quarta e sexta, na segunda, quarta, e sexta à tarde, eu refazia todos os exercícios. É assim que eu estudava. Sempre aos poucos”, resume.
A vinda para Brasília aconteceu quando os pais se separaram. A mãe, Joana D'Arc Sodré, veio com os três filhos morar com o pai dela, militar. A família inicialmente morou na Asa Norte, mas logo se mudou para o Guará. O irmão mais velho se tornou bancário, funcionário da Caixa Econômica, e a caçula é professora também no CEF 8, especializada em ensino especial.
Aos 14 anos, na nova cidade e no novo bairro, ele encontra a segunda vocação, dessa vez para lecionar. “Quando nós chegamos ao Guará, uma vizinha soube que eu era muito bom em matemática. Mineira, uma pessoa maravilhosa – Dona Maria José – perguntou assim para mim: ‘Valdir você não quer dar umas aulas para o meu filho, não?’” A proposta foi aceita imediatamente pelo adolescente.
“E não é que deu certo? O menino foi aprovado com notas boas. Eu só tinha 14 anos, e a fama se espalhou”, relembra. Quando menos esperava, já eram mais de uma dúzia de alunos no reforço de matemática. “O negócio começou a ficar sério, e falei: ‘meu Deus, é isso que eu vou fazer da minha vida? Eu vou dar aula de matemática?’ Foi aí que me veio uma coisa que eu não gosto de chamar de dom, mas eu tinha um talento para dar aula de matemática.”
Uma nova vida
O professor descreve a chegada a Brasília como uma virada, um despertar para novos horizontes. Entrou para o ensino superior, primeiro no Ceub e depois na UnB, na transição dos 16 para os 17 anos. “Participei do movimento estudantil e do processo de redemocratização do país. Estou falando da década de 1980. Eu, com 18 anos, votei para presidente. Participei do movimento cultural do DF, do movimento comunitário”, elenca.
A entrada na rede pública ocorreu logo no primeiro concurso prestado, aos 20 anos. E o currículo não parou de crescer. Teve uma passagem como conselheiro no Sindicato dos Professores (Sinpro-DF), deu aulas por seis anos no Centro de Ensino Fundamental 13 de Ceilândia e por 17 no Núcleo Bandeirante. O Guará, sua casa, é agora também a região de trabalho, e onde estuda o caçula, Pedro Augusto, 11 anos. A mais velha, Ana Carolina, 21, cursa medicina veterinária na UnB.
O ciclo de realizações se completa no momento em que o professor é instado a fazer uma retrospectiva da carreira e avaliar se fez a melhor escolha 34 anos atrás, quando entrou para a graduação em matemática. “O resumo da ópera é que eu tenho 34 anos de magistério, com pesares ou não, com muita felicidade, porque eu amo o que eu faço. E eu acertei o que eu fiz”, orgulha-se.
Como exemplo, ele conta apenas um caso, apesar de garantir existirem inúmeros outros. Certa vez, após uma palestra na Universidade Católica de Brasília, uma ex-aluna, que estudou com Valdir aos 10 anos de idade, esperou que ele atendesse a todos os que ficaram para conversar ou pedir alguma referência só para encontrá-lo pessoalmente e dizer: “Professor Valdir, eu vim aqui para te agradecer e para te dizer uma coisa: o senhor é responsável por eu ter feito o curso de matemática na Universidade Federal de Goiás e por eu estar fazendo mestrado em matemática”. “Eu preciso de mais alguma coisa?”, questiona o docente, emocionado.
Tabus para longe da sala de aula
Músico e cronista, Valdir levou também a arte no sentido mais puro até a sala de aula para ensinar – por que não? – matemática. O violão acompanha a música escolhida para instigar a plateia de estudantes. Tempos modernos, de Lulu Santos, é uma das preferidas. “Eu vejo a vida melhor no futuro. Eu vejo isso por cima de um muro de hipocrisia que insiste em nos rodear”, cantarola, e emenda: “Olha que letra. Eu quero levar isso para a gente pensar na educação. Quem não acredita na juventude, não acredita no que está fazendo, está no lugar errado”.
“Nossos alunos são difíceis? São. Mas a gente não pode desistir. A nossa política é uma política de insistência. Temos que continuar acreditando, porque eles que vão assumir nossos postos. O nosso tempo é curto. A vida é curta. Vivemos de 70 a 80 anos e não damos conta de nos alfabetizarmos por completo”, professa Valdir. “Vamos viver até o último dia de vida suspirando e aprendendo ainda no último suspiro. Como disse Paulo Freire: aprender é aprender sempre.”