Depois de 10 anos, será que a principal política pública brasileira para redução da desigualdade de acesso ao ensino superior foi eficiente? O que precisa ser aperfeiçoado? Qual foi a transformação na vida dos beneficiários da lei de cotas? Será que algumas daquelas alegações polêmicas que questionavam as cotas estavam certas? Por que a polêmica apenas com a lei de cotas e não com o ProUni? Essas são algumas das perguntas que precisam ser respondidas para avançarmos no debate.
A Lei de Cotas prevê que 50% das vagas em universidades e institutos federais sejam direcionadas para pessoas que estudaram em escolas públicas. Desse total, metade é destinada à população com renda familiar de até 1,5 salário mínimo per capita. A distribuição das vagas da cota racial e deficiência é feita segundo a proporção de indígenas, negros, pardos e pessoas com deficiência da unidade da Federação onde está situada a universidade ou instituto federal, segundo o IBGE.
Como previsto em lei, após dez anos de vigência, o Congresso Nacional precisa agora revisar esta política para decidir sobre continuidade, aperfeiçoamentos e ampliação. Com isto reacende o debate sobre a questão racial, o ponto de maior controvérsia é a reserva de vagas para negros e indígenas em universidades.
No Congresso, tramitam vários projetos de lei sobre o tema. De um lado, matérias propõem a ampliação do prazo para a revisão nacional ou a transformação da Lei de Cotas em política permanente no país. Por outro lado, há projetos que defendem a exclusão do critério étnico-racial para o acesso ao ensino.
Entretanto, em função das eleições a coisa deve esquentar mesmo no próximo ano, mesmo sem a revisão em 2022, a política de cotas continuará valendo e só pode ser alterada ou revogada por lei. É importante relembrar o panorama sócio histórico das ações afirmativas no ensino superior brasileiro.
Na primeira década dos anos 2000, houve intensa polêmica em relação às ações afirmativas no ensino superior, quando o sistema de cotas foi pauta frequente da mídia, e uma série de controvérsias inundou o debate público, especialmente sobre a legitimidade da reserva de vagas para pessoas negras.
Os ataques foram numerosos. Alguns alegavam que, no Brasil, o que importa é classe e que as cotas produziriam conflitos raciais. Muito se questionou a constitucionalidade da lei; foram lançados temores sobre uma eventual quedana qualidade do ensino e duvidavam de sua eficiência.
Em 2003, surgiram as primeiras cotas raciais naUERJ, no ano seguinte a UnB foi a primeira universidade federal a instituir um programa de ação afirmativa. No mesmo ano de 2004 foi criado o ProUni, para conceder bolsas integrais e parciais no ensino superior privado.
O Supremo Tribunal Federal reconhece a constitucionalidade das políticas de reserva de vagas de recorte racial em abril de 2012. A Lei de Cotas (12.711) foi aprovada em 29 de agosto de 2012 e, em 2016, foi alterada, passando a incluir pessoas com deficiência. Já em 2017, a USP e a Unicamp foram as últimas a aprovar cotas para estudantes de escola pública e negros (pretos e pardos). Atualmente, todas as 38 universidades estaduais e as 67 federais oferecem ações afirmativas.
Já existe uma ampla gama de pesquisas (sobretudo acadêmicas) que vêm mapeando os efeitos da Lei de Cotas no ensino superior brasileiro. A Empodera e a Box1824 somam esforços com essas iniciativas.
Lançamos no início de novembro uma pesquisa inédita, Efeito Cotas — A potência multiplicadora da inclusão,sobre quais são os impactos que essas ações afirmativas ocasionaram na vida de seus beneficiários em diferentes campos (pessoal, familiar, profissional, financeiro, educacional, etc.).
A pesquisa foi feita com elegíveis e beneficiários da lei de cotas, professores universitários, juristas, psicólogos, membros de coletivos negros e de coletivos de educação. O objetivo maior é trazer reflexões sobre o futuro da política e sobre formas de engajar mais setores da sociedade brasileira para ampliar seus impactos.
Os estudos acadêmicos sobre a lei de cotas demonstram, de maneira consistente, que houve muitos avanços a partir dela. A Lei de Cotas expande numericamente o acesso ao ensino superior para pessoas oriundas de escolas públicas, de baixa renda e negras.
O número de matrículas de estudantes pretos e pardos nas universidades e faculdades públicas no Brasil ultrapassou, pela primeira vez, o de brancos em 2018, totalizando 50,3%. Em 2020, alcançamos dentre os universitários da rede pública 53% de alunos negros, resultando num aumento de 400% em relação a 2010.
Além disso, em 2020, 64% de alunos tinham renda familiar de até 4 salários mínimos. Também cresceu a proporção de estudantes negros e de baixa renda nos cursos de maior prestígio social e instituições de elite, algo que não mudava antes das cotas.
Na UFRJ, as cotas não mudaram as taxas de evasão; mas são cruciais as políticas de permanência para ingressantes de baixa renda. Na UFMG e USP, uma análise do rendimento dos estudantes demonstrou que não existem diferenças significativas nas notas de cotistas e não cotistas.
Por meio da nossa pesquisa, descobrimos que as ações afirmativas transformam a realidade dos estudantes não só de forma individual, como também coletiva, antes mesmo da chegada à universidade.
Saber que as cotas existem motiva os elegíveis a se dedicarem mais aos processos seletivos; dentro de uma instituição federal, os cotistas acessam novos conhecimentos, atividades extracurriculares e uma rede qualificada de contatos que fazem diferença na transição para o mercado de trabalho.
Essa primeira geração de cotistas da lei federal está conquistando trabalhos e rendimentos inéditos dentro de suas famílias, tornando-se referências dentro dos seus círculos próximos e motivando outras pessoas a tentarem seguir caminhos semelhantes.
As cotas se tornaram polêmicas à medida que propuseram uma redistribuição de oportunidades de vagas de alta concorrência (e prestigiosas) do sistema público, estamos falando aqui sobretudo dos cursos de medicina, engenharia, direito, administração, economia que, historicamente, sempre foram ocupadas por pessoas brancas oriundas de classe média.
Evidência disso é que o ProUni, ação afirmativa que distribui muito mais vagas para as pessoas de baixa renda e negras, nunca foi alvo de polêmica em capas de jornais. Isso porque opera no sistema privado de ensino, e não nas vagas prestigiosas do público.
Infelizmente, apesar de avanços nas últimas décadas, é preciso relembrar que ainda existe um forte gargalo, pois para cada três alunos egressos do ensino médio anualmente, existe apenas uma vaga no sistema de ensino superior público brasileiro. Contudo, com a lei de cotas, os alunos brilhantes do ensino médio público estão conseguindo acessar cursos e instituições ditos de elite.
O Brasil é o segundo país mais desigual do mundo, não é à toa que nossa sociedade naturaliza as desigualdades: 34% dos brasileiros são contra as cotas, e para muitas destas pessoas as ações afirmativas para promoção de equidade, são classificadas com assistencialismo, baixar a régua, um verdadeiro atentado à meritocracia.
Como avançar com as ações afirmativas e aperfeiçoar a lei de cotas?
Apesar dos inegáveis avanços da Lei de Cotas,é necessário aperfeiçoamento como a criação de cotas na pós-graduação e para o corpo docente, a necessidade de o MEC colocar em prática o monitoramento anual do programa e mecanismos para combater fraudes na auto declaração como as comissões de heteroidentificação.
É necessário, também, mais comunicação pública sobre as cotas em linguagem objetiva e convidativa, não apenas para informar, mas também para motivar pessoas elegíveis. Existe demanda para mais políticas públicas ou programas e auxílios de outros setores da sociedade que garantam a permanência qualificada na universidade.
Criar espaços de circulação de oportunidades e de troca sobre outras realidades pode ajudar a fortalecer a expansão das perspectivas pessoais dos alunos. Além de ampliar o leque de oportunidades disponíveis
através de cursos livres, idiomas, tecnologia, habilidades técnicas para sua área, preparação para processos seletivos e estágios.
O custo de estar em um espaço de prestígio é alto e coloca os cotistas em uma constante pressão. Para contornar isso, é importante mais oferta de atendimento psicoemocional dentro e fora das universidades.
A formação universitária permite o acesso a trabalhos menos precarizados e a uma estabilidade financeira muitas vezes inédita para suas famílias.
As experiências na área de trabalho são fortes alavancas para isso, então é crucial abrir mais oportunidades para perfis diversos em posições que viabilizem o contato antecipado com a prática profissional, como estágio, iniciação científica, empresas júniores, etc.
A onda de diversidade e inclusão, que bateu há 20 anos na praia do ensino superior, bateu fortemente nos últimos cinco anos na praia das empresas. Desta forma, é imprescindível que o mercado de trabalho passe a enxergar toda a potência dos cotistas, adequando processos de seleção para não perder pessoas que não se encaixam em pré-requisitos excludentes, e que as empresas também invistam mais na construção de negócios mais inclusivos.
*Leizer Pereira é palestrante, empreendedor e consultor especialista em estratégias para promoção de diversidade e inclusão nas empresas. É fundador e diretor executivo da Empodera, uma plataforma pioneira na construção de negócios inclusivos e preparação de carreira e conexão de jovens com organizações que valorizam a Diversidade.