A memória não deixa morrer aquilo que de mais fundamental permeia uma cultura, uma vivência, a história de uma nação. Esse aprendizado a professora Deborah Silva Santos carrega desde as origens e durante toda a trajetória acadêmica. Mulher, negra, formada em história e doutora em museologia, ela sabe que o passado diz muito sobre a sociedade hoje e abre janelas importantes para a construção do futuro. Hoje, além de professora, assume a tarefa de coordenar a recém-criada Secretaria de Direitos Humanos da Universidade de Brasília (UnB).
O que ela descreve como o início da militância no movimento negro ocorreu logo na entrada na graduação, na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). "Tínhamos um grupo de alunos negros. Eu fui convidada para uma reunião em que todo mundo estava discutindo sobre a ausência de estudantes negros. Éramos muitos, mas cada um num curso diferente. Então, todo mundo era único nos seus cursos", relembra.
O ensinamento sobre a importância de compartilhar ideias e desafios é repassado até hoje aos alunos. "Eu falo muito com meus alunos que a gente só sobrevive na universidade se tiver um grupo, uma comunidade. Sozinho, a gente não faz", diz. "Foi nesse sentido que criamos um grupo dentro da universidade (PUC-SP), buscando o aumento de vagas, e não só isso. Na nossa universidade a gente pedia mais bolsas de estudo, já que era uma universidade particular, mas a gente buscava na verdade na época de vestibular, que não tinha vagas para todo mundo, um ensino público e gratuito. Foi essa a minha entrada no movimento negro enquanto militante", relata.
Nascida no bairro de Santana, Zona Norte de São Paulo, ainda criança mudou-se para São Bernardo do Campo. O pai, jornalista, era exceção entre uma maioria de trabalhadores do setor metalúrgico. "Eu vim de uma família que sempre colocou e entendeu a questão do racismo. A questão de como éramos vistos diferente e a história de como você tem que sobreviver nesse espaço e entender como funciona o racismo. Vim de uma família que sempre teve essa preocupação", destaca a professora.
Filha "do meio", Deborah reúne memórias que dão conta da raiz do racismo que invadia o cotidiano da família. "Meu pai sempre com muitos livros e a minha mãe colocando como é que a gente sobreviveria. Não era uma questão de militância, mas pontos individuais: 'Saia sempre com documento, porque você pode ser preso pela polícia', principalmente meu irmão. 'Você tem que estar sempre bem vestido para não ser confundido'", elenca, referindo-se ao caçula, Silas Silva Santos.
Diante da origem, ela se considera também uma exceção. O pai, Waldemar Silva Santos, conseguiu concluir o ensino superior em publicidade e propaganda depois que a profissão original e que sempre seguiu, a de jornalista, foi oficialmente criada, já com os filhos nascidos. Bem vestido, jornal, caderneta de anotações e uma caneta na mão, ele se apresentava ao mundo e aos filhos como referência da importância da leitura e da educação. A mãe, Antonia Silva Santos, também. Tinha apenas o equivalente ao ensino médio. Anos depois, já na terceira idade, concluiu a graduação em sociologia e completou o ciclo de integrantes da família com um diploma na mão.
"A leitura em casa foi uma coisa que a gente sempre teve. E a educação sempre foi entendida como a possibilidade que tínhamos de melhoria de vida. E é a que eu tenho até hoje", observa Deborah, com olhar generoso. A chegada à graduação, portanto, ocorre nesse contexto de esclarecimento. "Estávamos em meio à ditadura militar. Então, a universidade era aquele local de movimentação e de discussões o tempo todo, de renascimento, e ao mesmo tempo de reorganização do movimento negro."
Hoje, a militância não se dá mais dentro de um grupo organizado, como à época da graduação e do mestrado na PUC. "A gente sai para as nossas lutas individuais. Quando eu passei a dar aula, eu não fazia parte de nenhum grupo, mas a minha militância era (é) a formação de estudantes: trazer discussões para dentro da universidade", pontua, indicando que a maioria dos alunos que a procuram buscando orientação de trabalhos de conclusão de curso ou de pós-graduação querem discutir a questão racial.
Hoje, Deborah percebe um choque geracional quando se trata de escolhas profissionais. O filho, Bernardo Ferreira, 32 anos, não viveu a dúvida sobre se chegaria ou não ao ensino superior. Pelo contrário. Foi livre para escolher o curso que queria e até mudar de escolha mais tarde. A trajetória na faculdade começou com o direito e, agora, continua na gastronomia. "O importante de abrir as portas é isso: quem estudou, chegou à universidade, porque sabia que tinha que ir para a faculdade, não tinha nem discussão de que isso passava longe, já via como normal."
Lembranças e construções
Na pós-graduação, Deborah descobriu a museologia, curso do qual é professora na Faculdade de Ciência da Informação da UnB. Mesmo depois de assumir a SDH, continua a dar aulas. Mais uma vez, revisitando o passado, ela encontra uma lembrança que a faz questionar se está ali a raiz dessa escolha na carreira. "Meu pai trabalhava nos Diários Associados, que era na (Rua) Sete de Abril. E no térreo ali foi o começo do Masp (Museu de Arte de São Paulo). Eu lembro que ficava esperando o elevador e olhando os quadros. Fiquei pensando: 'Será que indiretamente isso me levou a escolher o curso?."
Ao mesmo tempo que dava aulas de museologia — atuou em várias faculdades de São Paulo — trabalhava no museu e na biblioteca do Banespa. Mais de 15 anos depois, em 2001, a instituição foi privatizada, e Deborah precisou procurar um novo emprego. "Eu vim parar em Brasília porque estava procurando trabalho", relata. A irmã mais velha, Magali Naves, morava na capital, e esta pareceu ser a melhor opção no momento.
O primeiro emprego no Planalto Central foi justamente no Ministério da Educação, na Secretaria de Educação Superior (Sesu). À época, por volta de 2004, começava a ganhar força a discussão sobre a implantação de cotas raciais nas universidades. Deborah trabalhava diretamente com o secretário, Nelson Maculan, no cargo de assessora de Gênero e Raça, como consultora da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). "Meu contato com a Universidade de Brasília começa nesse período", reforça.
A UnB foi pioneira entre as federais na adoção do sistema de cotas. Em 2007, já no fim do trabalho no ministério, foi selecionada para lecionar a disciplina Pensamento Negro Contemporâneo, como substituta. "Eu estava nesse processo de ser contratada. Foi quando aconteceu aquele incidente na Casa do Estudante (CEU), e aí eu fui convidada também para montar, no Núcleo de Formação da Igualdade Social, o Programa de Combate ao Racismo e à Xenofobia", explica. Ela se refere ao incêndio criminoso que tomou conta do quarto de estudantes africanos na CEU, em 2007. Após prestar concurso para fazer parte do quadro de efetivos em 2009, foi aprovada, e continua a carreira acadêmica na UnB, agora em nova função, em 2010.
Pioneirismo
Neste ano, em 6 de junho, Deborah assumiu um novo desafio na universidade. Está à frente da Secretaria de Direitos Humanos da UnB. Instalada em uma sala provisória, no térreo da Ala Sul do Instituto Central de Ciências (ICC), onde antes funcionava a antiga Diretoria da Diversidade, a área tem como desafio encaminhar ações que permitam a implantação da política de direitos humanos da federal.
"A universidade está vendo os direitos humanos de uma forma mais ampliada, que é essa possibilidade, por exemplo, de incluir não só a questão das mulheres como também a própria questão racial nesse espaço de direitos humanos", resume Deborah. A discussão sobre essa política começou ainda em 2017. No ano passado, ela foi aprovada, junto à criação da Câmara de Direitos Humanos. A secretaria é uma assessoria da Reitoria que tem a função de propor, implementar e zelar pela Política de Direitos Humanos de forma ampliada, no atendimento às questões negra e das mulheres, além da coordenação indígena e LGBTQIA+.
No momento, quatro coordenadorias compõem a secretaria, mas essa estrutura está em processo de ampliação para atender todas as demandas e atender de forma mais efetiva os outros câmpus.
"Vivemos num país no qual as violências são dadas, não é? E às vezes as pessoas não conseguem compreender o tanto que elas estão ultrapassando (o limite). Fora isso, como também somos um espaço formador, precisamos formar cidadãos que saiam daqui pelo menos prontos para a mudança desses espaços."
Consciência
A pesquisa do doutorado veio coroar um caminho coerente de trazer luz a questões frequentemente invisibilizadas. Na pós-graduação pela Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologia, em Lisboa, Deborah discutiu africanidades por meio de museus "não normativos" e apresentou a tese Museologia e Africanidades: experiências museológicas de mulheres negras em museus afro-brasileiros. Ela selecionou para o trabalho três museus sociais, criados pelas próprias comunidades e que tiveram mulheres negras como protagonistas: Verônica da Paz, no Museu Capixaba; Giane Vargas, no Museu Treze de Maio, em Santa Maria (RS); e Célia Pereira Braga, no Museu do Quilombo Mesquita, na Cidade Ocidental (GO).
Sobre o Mês da Consciência Negra, Deborah celebra, mas com ressalvas. Lembrar o racismo e exaltar a cultura negra apenas durante um mês no ano é pouco, reforça a professora. Ela cita como exemplo a Lei nº 10.639, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas, e institucionaliza uma política que deveria permear a educação como um todo.
"Essa proposta, quando surge, fazia parte de a gente estar reconstruindo um pouco o movimento negro. E isso foi assumido e virou bandeira de todos os grupos. Primeiro foi um dia e hoje a gente fala que é o mês, e a gente vai continuar. Porque continuamos com esse racismo que é estruturante e estrutural dentro da nossa sociedade", afirma.
Ao lançar olhar crítico sobre o tema, ela destaca a necessidade de um combate mais efetivo ao racismo. "É importante relembrar e fazer discutir, mas eu gostaria que isso fosse mais ações, no sentido de combate, de enfrentamento ao racismo. Como eu falei, somos ainda poucos professores, e menos ainda em cargos de liderança. As mulheres negras, então, menos ainda", observa, e continua: "E é uma coisa que as pessoas não percebem. Quando foi trazida a discussão sobre as cotas era muito estranho. Eu, mulher negra, me percebia como única dentro da sala de aula. Como é que o professor não conseguia perceber que ele só tinha um estudante negro? Se a gente tem estatísticas de que a população negra é mais de 50%, então alguma coisa está errada."