Pretos no Topo

O que espero do governo Lula

A coordenadora do Movimento Negro Unificado no Distrito Federal considera um grande desafio para o próximo governo promover políticas públicas voltadas à população negra de forma não central.

Carmem Souza
postado em 20/11/2022 06:00 / atualizado em 20/11/2022 06:00
Não é possível fazer uma boa gestão sem que você toque na questão racial e na de gênero.Elas precisam estar em todos os debates
Não é possível fazer uma boa gestão sem que você toque na questão racial e na de gênero.Elas precisam estar em todos os debates" - (crédito: Arquivo Pessoal)

A promessa de Lula de que seu novo governo dará prioridade a questões sociais deve implicar em uma prática em que gênero e raça sejam considerados em discussões e políticas diversas, defende Cristiana Luiz (foto), coordenadora do Movimento Negro Unificado (MNU) no Distrito Federal. "É um desafio para o governo trazer essas questões para dentro das políticas públicas de uma forma não transversal, mas central", enfatiza.

A também doutoranda em política social pela Universidade de Brasília (UnB) avalia que questões como a composição do Congresso e os recorrentes desrespeito à laicidade do Estado podem dificultar a implementação de mudanças mais estruturais. "Precisa-se de avanço em algumas pautas que não sei se esse governo vai ter disponibilidade para fazer neste mandato, visto que a gente ainda está sob efeito de uma sociedade extremamente conservadora", justifica. À coluna, Cristiana também pontuou o que acredita que deva ser prioridade no novo Executivo temas considerados mais espinhosos. Confira a entrevista.

Em se tratando das pautas raciais, o que deve ser prioridade no novo governo Lula?

Uma das prioridades é arrumar a casa. A gente vê, nos últimos anos, um desmonte das políticas públicas, especialmente das políticas sociais, o que acaba reverberando e impactando na população negra. O caos da política de assistência, as filas nos Cras (Centros de Referência de Assistência Social), com poucos servidores, são exemplos disso. Se você for na fila do CRAS, verá muitas mulheres negras, a maioria mães solteiras. Acho que a prioridade, neste momento, é colocar ordem na casa, olhando para o social. O discurso de Lula nos passa a confiança de que ele vai priorizar o social também. Não só o financeiro, a área econômica, os banqueiros, mas também as pessoas pobres e as ditas minorias. Entendo que não é possível fazer uma boa gestão sem que você toque na questão racial e na de gênero. Elas precisam estar em todos os debates. Então, é um desafio para o governo trazer essas questões para dentro das políticas públicas de uma forma não transversal, mas central. A maioria das pessoas que estão na pobreza é mulher, e mulher negra. Não é possível pensar somente em uma economia branca, é preciso enegrecer a economia e ter recursos para isso. Tem sido sinalizado o retorno de um Ministério da Igualdade Racial, o que eu acho ser importante. Entretanto, é importante ele existir, mas com um orçamento, que não seja só um puxadinho. É preciso que a temática racial e de gênero adentre todas as temáticas e todas as pastas, que seja dialogada dentro de todas as políticas. Não pode ser um ministério isolado, sem recursos. É bem verdade que, no governo anterior do PT, avançamos bastante na política de igualdade racial. Tivemos a aprovação das cotas tanto nas universidades quanto no serviço público e a política de igualdade racial. Mas é preciso que a gente avance mais, muito mais. Não é possível ter um Brasil desenvolvido sem que você mexa nessas demandas.

E os desafios para a adoção dessa postura?

Temos a questão da revisão das cotas e a titulação das terras quilombolas, que são, de certa forma, pautas espinhosas para a branquitude. Temos também um Congresso Nacional não tão favorável. Mas foram eleitos alguns companheiros e companheiras negros que, tenho certeza, vão apoiar esse debate, o que deixa um cenário um pouco mais favorável, considerando o contexto do Legislativo atual. Não que a situação do próximo período será ideal, mas terá uns pontos de interlocuções dentro da Câmara com a eleição desses companheiros e dessas companheiras que entendem a importância de uma política de ação afirmativa em um país como o nosso, que entendem a aprovação de pautas que, de fato, fazem diferença para os lares das mulheres e homens pretos deste país. A gente sabe que a pobreza no Brasil tem cor, e não é por acaso. Inclusive, não é por acaso que essa cor se mantenha. Há um interesse que a pobreza seja preta, o racismo faz isso. Para a gente pensar em vencer a pobreza, é preciso pensar em uma política séria de enfrentamento ao racismo.

Como avalia a equipe de transição?

O que tenho conversado, sobretudo dentro da questão racial, sinaliza essa ideia de arrumar a casa, tentar reduzir os prejuízos e avançar na construção de uma política de enfrentamento ao racismo, de pensar em estratégias efetivas de inclusão. Parece-me que, e aí é uma percepção muito minha, nesse próximo mandato, ele (Lula) vem com mais sangue nos olhos para a questão social. Ele tem sinalizado isso, esse olhar mais atento para isso. É importante também ressaltar que há pontos sensíveis a serem considerados. Por exemplo, a questão da descriminalização das drogas. Não se trata de uma perspectiva de legalizar ou não as drogas, mas de uma perspectiva de que essa política antidrogas que aí está é uma política que mata, que favorece o genocídio da juventude negra. Então, é uma política construída para matar jovens negros, pessoas pobres, homens negros. Precisa-se de avanço em algumas pautas que não sei se esse governo vai ter disponibilidade para fazer, visto que a gente ainda está sob efeito de uma sociedade extremamente conservadora, em que o debate da descriminalização de drogas, por exemplo, é feito, muitas vezes, de uma forma equivocada. Então, não sei se será possível fazer em um próximo período.

Indica outros pontos mais espinhosos?

Outra questão é recuperar a laicidade do Estado. Acho que isso também está na agenda do dia: o Brasil voltar a ser um Estado laico, um Estado onde tenha uma liberdade religiosa, onde todos, todas e todes tenham o direito de manifestar seu credo. Enfim, de entrar na intimidade com o seu sagrado, e que isso não seja um motivo de violência.

Não é possível fazer uma boa gestão sem que você toque na questão racial e na de gênero. Elas precisam estar em todos os debates"

"A pobreza no Brasil tem cor, e não é por acaso. Inclusive, não é por acaso que essa cor se mantenha. Há um interesse que a pobreza seja preta, o racismo faz isso"

 

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