CONSCIÊNCIA NEGRA

Inclusão de jovens negros no mercado ainda é um desafio

Pesquisa mostra que inserção e permanência desse grupo constitui um processo desafiador a ser equacionado com a implementação de políticas públicas

Mariana Andrade*
postado em 20/11/2022 06:00 / atualizado em 20/11/2022 06:00
A inserção de negros no mercado de trabalho constitui, ainda, grande desafio no Brasil. Para a maioria desses jovens, tanto o ingresso como a permanência no emprego é um processo que pode ser equacionado com a implementação de políticas públicas. -  (crédito: Minervino Junior/CB/D.A. Press)
A inserção de negros no mercado de trabalho constitui, ainda, grande desafio no Brasil. Para a maioria desses jovens, tanto o ingresso como a permanência no emprego é um processo que pode ser equacionado com a implementação de políticas públicas. - (crédito: Minervino Junior/CB/D.A. Press)

Desde 2011, o 20 de novembro é a data oficial do Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra instituído pela lei 12.519. O objetivo é garantir espaço e visibilizar o diálogo a respeito das mazelas sociais vivenciadas por mais da metade da população do país (54%), de acordo com levantamento do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, o mês inteiro também é dedicado a debater questões ligadas à pauta racial.

Estudo intitulado Jovens Negros e o Mercado de Trabalho, realizado pelo Instituto de Referência Negra Peregum, em parceria com o Núcleo de Pesquisa e Formação em Raça, Gênero e Justiça Racial (Afro-Cebrap) e com apoio do Banco Mundial, apresenta recomendações para inserir esse grupo no mercado de trabalho. A pesquisa conclui que, para a maioria dos jovens negros brasileiros, a inserção e permanência no mercado são um processo desafiador que pode ser equacionado com a implementação de políticas públicas.

Entre as histórias de superação, figura a dos gêmeos João Guilherme e Júlio César Valentino, 19 anos. Em meio a um momento turbulento na vida, com a mãe desempregada e contas a pagar, os dois decidiram que o próximo passo após a formação no ensino médio seria ingressar no mercado de trabalho para ajudar com as contas da casa.

"Começar a trabalhar era o que a gente queria", diz Júlio César, lembrando que a mãe, Valeria Sérgio, nunca deixou de priorizar a educação dos filhos. "Sempre fomos dedicados na escola porque ela pegava no nosso pé. A gente é que não enxergava motivo para estudar as matérias", conta João Guilherme. Ainda assim, completa, nas horas vagas tentava cultivar o hábito da leitura.

Acatando os conselhos da mãe, no entanto, os gêmeos despertaram a vontade de aprender cada vez mais. "Entendemos que, com conhecimento e informação, poderíamos ir longe, mas nos deparamos com a falta de qualificação, que dificulta muito a entrada no mercado de trabalho", diz João.

Com o apoio de um amigo próximo, os irmãos retomaram os estudos. Foi o padrinho João Soares o responsável por financiar as despesas do curso preparatório para o vestibular da Escola Preparatória de Cadetes do Exército (EsPCEx).

Foram oito meses de uma rotina de 14 horas de estudos por dia. "O fato de compartilharmos praticamente os mesmo objetivos e o companheirismo nos ajudou a superar o cansaço e a realizar os sonhos", afirma Júlio César.

Os gêmeos Júlio César (E) e João Guilherme (D) conciliam trabalho e estudo, mas não abrem mão da decisão de ingressar em uma universidade
Os gêmeos Júlio César (E) e João Guilherme (D) conciliam trabalho e estudo, mas não abrem mão da decisão de ingressar em uma universidade (foto: Minervino Junior/CB/D.A. Press)

Conectados pelo mesmo objetivo, os irmãos dividem a mesa de estudos e a função no trabalho de meio período, três dias por semana, como atendentes de uma rede de fast-food de um shopping de Brasília, mas em lojas diferentes. De acordo com eles, a escolha por um emprego com carga horária flexível possibilitou que ambos prosseguissem nos estudos.

Para os gêmeos, além do apoio financeiro do padrinho, a figura materna foi e continua sendo a principal razão para vislumbrar um futuro melhor. "Minha mãe sempre esteve muito presente e participou do nosso crescimento. O sentimento que fica é de eterna gratidão por tudo", diz Júlio César.

"É só depois que a gente cresce que notamos que a insistência dela era fundamental", completa João Guilherme. Para o futuro, os dois almejam ingressar no Exército e também no ensino superior. Júlio César pretende cursar educação física, enquanto o irmão está dividido entre física, história e geografia.

No estudo Jovens Negros e o Mercado de Trabalho, foram analisados, além da falta de estímulos e condições sociais — como a dificuldade ao acesso à internet —, educação de qualidade e ausência de benefícios oferecidos pelas próprias empresas, fatores que podem afetar sobremaneira a inserção de jovens negros no mercado de trabalho. Na pesquisa foram colhidos 81 depoimentos em Belém, Recife, Brasília, Belo Horizonte e Porto Alegre.

Um dos obstáculos na vida profissional de jovens negros é escolher entre o trabalho e os estudos, ou mesmo não conseguir nenhum dos dois por "não cumprir" os requisitos exigidos para a ocupação da vaga. Nesse contexto, destacam-se os "nem-nem" — que não estudam nem trabalham.

Transcorridos quase 135 anos da abolição da escravatura no Brasil, a realidade discrepante entre brancos e negros no mercado de trabalho continua sendo um grande problema ainda longe de ser solucionado. Dados da Pnad Contínua 2019 mostram que mais de 60% dos profissionais de serviço braçal são negros e que, na mesma proporção, os empregadores são brancos.

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. (foto: grafico genero raca)

O estudo constata que, nas regiões metropolitanas, os salários são maiores, mas, ao mesmo tempo, imperam as desigualdades entre os trabalhadores negros. A remuneração recebida por homens brancos também é maior em relação a homens e mulheres negros, evidenciando a histórica desigualdade racial de renda. Ao contrário da média nacional, a renda média das mulheres brancas é maior do que a dos homens negros.

Entre as principais soluções apresentadas por especialistas, o fomento de políticas públicas, distribuição de renda e a valorização do salário mínimo são fatores fundamentais para estimular a conclusão escolar. Além disso, eles apontam como fator preponderante ações afirmativas do setor privado que garantam a entrada e permanência de jovens negros no mercado de trabalho.

Atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 2067/21, de autoria da deputada federal Benedita da Silva (PT), determina que empresas contratadas pela administração pública para realização de serviços reservem pelo menos 30% dos postos de trabalho a profissionais negros.

O PL altera a nova Lei de Licitações. Se aprovada, as empresas deverão adotar medidas de promoção da igualdade racial como capacitação e criação de ouvidorias ou equipes especializadas em diversidade

Preconceito ainda impera no país

Sônia Lesse: "No Brasil não há uma empresa de inclusão orgânica"
Sônia Lesse: "No Brasil não há uma empresa de inclusão orgânica" (foto: Arquivo Pessoal)

Para a especialista em diversidade e inclusão e diretora de experiências na Profissas, Sônia Lesse, ainda existe uma tendência entre as corporações de contratar profissionais negros e pardos como "estratégia de marketing". Ela critica essa postura, ponderando que um ambiente diverso e inclusivo deve ser, necessariamente, fomentado na própria empresa.

De acordo com ela, casos como os assassinatos do estadunidense George Floyd e do brasileiro João Alberto na rede Carrefour provocaram uma mobilização social que implicou na ação de empresas que, agora, "precisam correr atrás do prejuízo".

Essas movimentações, conhecidas como ações afirmativas — processos estruturantes pontuais no qual a cada vaga ofertada uma porcentagem é destinada para a inclusão de minorias sociais —, começam, na maioria das vezes, por etapas. Mesmo com essa demanda e preocupação social, ela analisa que, atualmente, os ambientes de trabalho ainda enfrentam muita resistência para a inclusão de funcionários negros e, consequentemente, implica na ausência dessas pessoas em cargos de liderança.

"No Brasil não há uma empresa sequer de inclusão orgânica. Temos casos muito positivos, como a Natura, mas ainda estamos distantes de conseguir alcançar um ponto ideal", diz Lesse, observando que o maior erro das empresas não letradas na pauta racial é replicar métodos e estratégias utilizadas por outras corporações. "É um passo que prioriza mais os resultados do que a estrutura", diz.

Lesse afirma, ainda, que investimentos na área de diversidade e inclusão não são comuns nas empresas brasileiras. De acordo com levantamento realizado por ela, a maioria destina menos de 10% do capital para ações afirmativas. "Trata-se de um orçamento irrisório, que limita a atuação do RH e áreas de diversidade e inclusão. Nada mais do que uma forma de garantir o racismo", afirma.

Para a especialista, os processos seletivos e programas de trainee exclusivos para jovens negros são ações válidas, porém não podem ser "soltas". Lesse defende que haja uma análise crítica e responsável do mercado por parte das empresas. "Elas não podem se isentar da discussão da isenção do racismo, precisam debater a responsabilidade branca", diz.

"Sem diversidade não tem mercado. Se as empresas olharem estrategicamente para o mercado como um todo, é possível pensar na continuidade do negócio no âmbito da inovação", afirma. "Não criar um produto ou oferecer um serviço que sirva para a maioria da população, que é negra, vai culminar em fracasso", critica."Temos que reverberar a questão o ano inteiro porque o racismo é um problema de toda a sociedade brasileira", finaliza.

Caminho até o mercado

Júlia Silva: "Barreiras contra os negros são nítidas em todas as camadas da sociedade"
Júlia Silva: "Barreiras contra os negros são nítidas em todas as camadas da sociedade" (foto: Luciano Marcos/Arquivo Pessoal)

A analista contábil Júlia Silva, 23, acredita que, se fosse branca, teria mais oportunidade no mercado de trabalho. "Apesar de nunca ter sofrido qualquer tipo de descriminação nos processos seletivos, as barreiras contra pessoas negras são nítidas e existem em todas as camadas da sociedade", afirma.

Formada em ciências contábeis pela Universidade de Brasília (UnB), Júlia é a primeira da família a ingressar em uma universidade pública. Ela atribui parte dessa conquista ao esforço dos pais. "Empenhei-me muito para entrar na UnB porque sabia, desde cedo, que isso daria um peso muito maior quando procurasse emprego", diz.

Antes de ocupar o cargo que exerce na Confederação Nacional da Indústria (CNI), a Júlia Silva participou de processos seletivos e programas de trainee exclusivos para pessoas negras em outras corporações. "São diversas etapas nesse processo, com entrevistas e dinâmicas de grupo que chegam a ser desgastantes. Muitas vezes, pessoas brancas assumem o papel de recrutadores. Para nós, enxergar um rosto de alguém preto dá uma sensação de conforto e conseguimos nos abrir com mais segurança", desabafa.

Júlia considera importante os processos seletivos exclusivos para funcionários negros, porém, analisa que apenas a garantia da porta de entrada não é suficiente solucionar o racismo. "Alguns treinamentos sobre como lidar com a diversidade devem ser incorporados à vivência empresarial. Em outras ocasiões, presenciei como eles geram debates e questionamentos necessários entre pessoas brancas", conta.

"Ainda vivemos em situação de muita vulnerabilidade. Então, na maioria das vezes, não conseguimos escolher trabalhar por prazer. Temos que levar em consideração o salário e benefícios oferecidos", diz.

Brenna Vilanova: "Ainda vivemos em situação de muita vulnerabilidade"
Brenna Vilanova: "Ainda vivemos em situação de muita vulnerabilidade" (foto: Arquivo Pessoal)

A estagiária de pesquisa tradicional no Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IBPAD), Brenna Araujo Vilanova, 23, reflete que a entrada de jovens no mercado deve ir além das cotas em processos seletivos. "A população negra descende de um histórico marginalizado, e esse é um dos motivos pelo qual existe uma forte baixa autoestima profissional entre nós", afirma.

Os pré-requisitos e características exigidos por empresas, segundo ela, são um dos fatores que fecham as portas do mercado de trabalho para jovens negros. "O modo como você é contratado também influencia. É necessário abolir esse pensamento elitista que cobra diversos conhecimentos técnicos, equipamentos e idiomas", conta. "Precisamos aumentar a preocupação na qualificação acessível para todos" completa.

Estagiária sob a supervisão
de Jáder Rezende

 

 

Estagiária sob a supervisão
de Jáder Rezende

 

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