Eu, Estudante

BRASILEIROS NO TOPO DO MUNDO

Batidas do Cerrado ecoam na Europa pelas mãos de DJ do DF

O DJ brasiliense Glauber Freitas, conhecido artisticamente como Jamie Coins, embala as pistas de dança do Velho Mundo. Para ele, é possível viver de música eletrônica, e o Brasil é um celeiro de novos talentos

Lisboa — Quem conhece a cena artística internacional sabe muito bem que o brasiliense Glauber Alves Freitas, 37 anos, é hoje um dos expoentes quando o estilo musical é o techno house. A mais recente composição do DJ, que agora assina sob a alcunha de Jamie Coins, é, há três meses, uma das mais tocadas em Ibiza, a paradisíaca ilha espanhola, movida a música 24 horas por dia. Still Flexin' está no cardápio de todos os grandes DJs da atualidade e de ícones como Fatboy Slim. Detalhe: a composição de Coins, que, no início da carreira foi DJ Glau Box, remete à adolescência do músico. Conta a história do menino de 14 anos que amava passar o tempo andando de skate no Setor Bancário Sul.

"Creio que muito do sucesso dessa canção resulta da verdade que procurei passar aos ouvintes. Esse é um dos segredos para ser um bom artista, produzir com sentimento e verdade", diz. Coins está radicado em Barcelona, na Espanha, desde 2017. Mas a ligação com a cidade vem de antes, de 2009, quando decidiu, com a ajuda dos pais, que são servidores públicos, estudar engenharia de áudio em uma universidade de lá. Não foi nada fácil para o rapaz fincar raízes no país europeu, recomeçar do zero. "Houve vários momentos que pensei em desistir. Tinha dificuldades com a língua, a cultura era muito diferente da nossa e sentia que nada do que eu fazia era bom o suficiente. Mas superei a depressão", conta.

Ikaro Fonseca/Divulgacao - O brasileiro nas ruas de Lisboa

A resiliência do brasiliense foi recompensada. Hoje, é quase impossível encontrar espaço vago na sua agenda. Além de toda a produção musical, que o leva a se apresentar em várias partes do planeta, tem contratos com as principais gravadoras do mundo para mixar e masterizar obras musicais e dar consultoria a astros de várias tendências. A lista inclui a Universal Music, a Warner, a Sony, a Hot Creations e a Revival NY.

Não é só: ele tem produzido trilhas sonoras para séries de tevê, uma delas, Lúcifer, grande sucesso da tevê por assinatura. Toda a quinta temporada da atração tem a marca dele. "Posso dizer que estou vivendo o melhor momento da minha carreira, o que só aumenta meus desafios", afirma. "Sou uma das referências no que faço", acrescenta, ciente, no entanto, que ainda há muito por aprender.

Ikaro Fonseca/Divulgação - Coins, em momento de reflexão

Coins acredita que, além do seu talento e do esforço que teve de empreender, muito do seu sucesso decorre das mudanças na forma como são vistos atualmente os DJs. "Num passado recente, o DJ era o cara que ficava no escurinho da festa botando músicas. Agora, é uma atração", ressalta. Assim, não tem dúvidas de que aqueles que querem seguir essa carreira não devem se intimidar. "Dá para ganhar dinheiro e viver dessa profissão", assegura. Isso, é claro, se os interessados forem criativos e tiverem perspicácia para produzirem com personalidade e verdade. "É importante ter referências musicais, mas deve sempre prevalecer um estilo próprio, honesto. É isso que cativa o público", receita.

Safra excepcional

O Brasil, ressalte-se, tem produzido uma safra excepcional de DJs, frisa o brasiliense. São jovens de 18 a 26 anos que têm ocupado espaços antes restritos a artistas internacionais. "A força desses DJs é tamanha, que, hoje, são capazes de lotar estádios sem a necessidade de terem ao lado gente vinda do exterior, ao contrário do que ocorria tempos atrás", enfatiza. Ele mesmo formou alguns desses novos ídolos da música eletrônica, como Samhara, Fonseca e Rafael. Antes de se mudar para Barcelona, Coins dava aulas sobre produção musical. "Formei mais de 70 pessoas, não só de Brasília. O pessoal estudava no estúdio que eu tinha na Asa Norte", relembra. "Isso é muito gratificante, sobretudo porque vejo essa moçada muito unida. No Brasil, essa união é comum, ao contrário do exterior, onde a competição é grande."

Arquivo Pessoal - Jamie Coins na paradisíaca Ibiza

A música entrou cedo na vida de Coins, personagem criado há quatro anos por Glauber para reunir todos os seus estilos, que vão do house ao hip hop, passando pela música inglesa e a rave antiga, e, claro, para dar uma cara mais internacional à carreira dele. "Queria uma persona para um estilo de música, uma identidade visual. Pensei: vou agregar um charme no nome, pegar minhas influências, meu tempo de skatista de Brasília, e juntar tudo num projeto. E deu certo", detalha. Ele destaca que, por conta da repercussão tão positiva de seu trabalho, conseguiu acesso a astros que marcaram sua vida. "Criei relações com pessoas que sempre admirei. Vou para Ibiza há 10 anos, e achava todas inacessíveis", frisa. Hoje, eles dividem os palcos no mesmo patamar.

O artista também não esquece as referências de casa. Os pais sempre tiveram ligações fortes com a música. "Minha mãe me apresentou canções de todos os estilos, sempre com muito bom gosto. Era quase uma DJ", lembra. O pai foi — e continua sendo — um forrozeiro de primeira. Os dois ainda têm presença importante na carreira de Coins, mas também têm falado muito alto o estilo de vida dele na cidade espanhola, as viagens que faz pelo mundo, os amigos e a cultura musical que acumulou ao longo de anos. "É importante deixar claro que sou um músico mais underground, com estilo muito particular", diz. "Vários DJs querem seguir o que está rolando, mas acabam sendo apenas mais um", emenda. Não é o caso dele.

Ajuda da informática

Ketley Nascimento/Divulgação - Ainda na capital federal do Brasil

Antes de a música se tornar o centro das atenções da vida do brasiliense, era a informática que dominava seu dia a dia. Ele se formou pela Upis e fez pós-graduação na Universidade de Brasília (UnB), cuja tese foi internet e sistema de distribuição. O bom conhecimento da tecnologia o levou a dar aulas de informática, por meio do Senai, no Tribunal Superior do Trabalho (TST). Também atuou como webdesigner no Conselho Regional de Contabilidade (CRC). Mas, quando chegava em casa, mergulhava no mundo da música. "Criava canções no meu computador", lembra. Produção que rendeu frutos.

Em 2004, o jovem Coins e melhor amigo, Marquinhos, lançaram um projeto MKM & GBX. Apesar da despretensão, as canções disseminadas via internet estouraram em Ibiza, a ponto de serem convidados para uma turnê no templo da música eletrônica. "Foi ali que percebi que dava para viver sendo DJ", ressalta. Se o ouvido era muito bom, precisava, porém, desenvolver a técnica. "Tudo o que eu produzia era de ouvido. Como na informática, naquele tempo, todo mundo era autodidata, os livros eram quase todos em inglês", conta. A saída era estudar engenharia de áudio, o que ocorreu anos depois.

"Foi nesse período que comecei a levar a função de DJ como profissão. A música é um grande business, movimenta muito dinheiro. Há o mercado das gravadoras, o Spotfy, os festivais, as festas", lista. Esse negócio, contudo, enfrentou um grande baque durante a pandemia do novo coronavírus, a partir de março de 2020. As festas, os shows, tudo parou. Coins, então, focou-se na mixagem e na masterização de obras em estúdio. "Ainda assim, foi muito complicado. Pensei, inclusive, em desenvolver projetos fora da vida artística, retomar a informática. Mas acabou que a música falou mais alto. E, depois que a vida voltou à normalidade, minha carreira deslanchou de vez", diz ele, que tem muitos planos para o futuro. "Primeiro, pretendo ser melhor a cada dia como pessoa e como artista. E, como complemento, melhorar as habilidades técnicas, lançar mais músicas e tocar para mais pessoas", enumera.

Raízes na capital

Ketley Nascimento/Divulgação - Em Brasilia, onde formou dezenas de profissionais em seu estúdio na Asa Norte

Brasília também está no roteiro dos desejos. "Sempre é bom tocar na minha cidade, que significa muito para mim, e rever meus amigos", destaca. Ele faz questão de deixar claro o papel relevante que teve na cena musical na capital do país. "Comecei tocando em festa em Taguatinga e no Gama. Participei de eventos importantes, como o Love Parade e o Cerrado Mix", relembra. No entender de Coins, Brasília não deixa nada a dever aos maiores centros do Brasil, pois tem uma vida cultural efervescente.

Essa forte ligação com o Planalto Central pesou quando o rapaz partiu para Barcelona. "Ao contrário de Brasília, não conhecia ninguém. Na Espanha, tinha dois amigos", diz. Sem referências, sem as brincadeiras, sem o jeito amoroso de falar das pessoas mais próximas, o jeito foi mergulhar nos estudos e no trabalho. A saudade aperta de vez em quando. E, para quem vive da música eletrônica, uma das terapias é recorrer a um bom churrasco no fim de semana, sempre regado a um samba raiz. "Eu adoro", sentencia.