Lisboa — O ano era 1989. A jovem Sandra Utsumi cursava o ensino médio. O diretor da escola na qual ela estudava foi obrigado a substituir um professor que havia passado mal. Na sala de aula, ele decidiu fazer um desafio aos alunos: 'Quero ver quem de vocês realmente tem capacidade de passar no vestibular da Universidade de São Paulo (USP)'. O teste consistia em explicar o que se passava na Bolsa de Valores do Rio de Janeiro naquele momento. O silêncio foi sepulcral. Mas a menina que amava tudo o que se relacionava à economia levantou a mão e disparou a falar. "A Bolsa foi vítima de um especulador, Naji Nahas, que não conseguiu honrar seus compromissos e deu prejuízo a milhares de investidores." A surpresa foi geral.
Ali, se ainda havia alguma dúvida por parte de Sandra de que seu destino estava atrelado ao estudo da economia, tudo ficou claro. "Tive a certeza sobre meu interesse em relação aos temas econômicos", conta. Mas ela tinha planos mais ambiciosos: queria trabalhar no mercado financeiro, um reduto extremamente machista. Comunicou isso ao pai, um economista que via a filha como uma futura oceanógrafa. Foi ele, por sinal, quem despertou em Sandra, desde cedo, a curiosidade de saber o que se passava no país e no mundo e porque a economia influenciava tanto a vida das pessoas.
A menina tinha 12 anos e o Brasil estava no auge da hiperinflação. O pai de Sandra lhe deu de presente a assinatura de um jornal, cuja leitura diária se tornou obrigatória. Em vez de fofocas da tevê, dos galãs da vez, de assuntos que despertavam a atenção da garotada, ela mergulhava nas reportagens sobre questões geopolíticas, os preços do petróleo, as cotações do dólar. "O câmbio, para mim, era uma obrigação. Como tudo naquela época era importado, fazia a conversão das moedas para ver quanto custavam os produtos que queria comprar", lembra. "Poupava o que podia para ter os livros e discos que me despertavam a atenção. Mas nada vinha com facilidade. Meus pais só me davam dinheiro se fizesse algo de útil em troca."
Aquecimento global
Aos 50 anos, hoje diretora executiva do Haitong Bank, que integra um conglomerado chinês, em Portugal, Sandra lembra que a paixão por temas econômicos tinha muito a ver com o desejo de conhecer o mundo e, claro, de ter sua independência financeira. Assim, antes mesmo de entrar na universidade, pesquisou onde estavam os melhores cursos de economia do país. E todos os rankings apontavam para a Universidade de Campinas (Unicamp) e para a USP. Ficou com a primeira, apesar dos alertas do pai de que a linha daquela instituição talvez não combinasse com o sonho dela de mergulhar no mercado financeiro. Os primeiros meses de aula mostraram que o pensamento desenvolvimentista da Unicamp não era muito a sua praia. O jeito foi abrir mão do curso.
Como havia feito outro vestibular no mesmo período, para direito, foi ver se tinha alguma chance de se tornar advogada, algo que agradava a família. Também não rolou. De qualquer forma, o curso ocupou parte do seu tempo até que pudesse fazer o vestibular para a USP. "Todo aprendizado faz a diferença. E eu não gostava de ficar parada à espera de algo", frisa. Meses depois, Sandra não só passou nos testes para uma vaga na sonhada universidade, como, logo no início das aulas, conseguiu um estágio na Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe). Ela foi contratada para participar de um projeto que havia sido pedido pelo Congresso Nacional para uma possível reforma da Previdência Social. "Houve muita discussão sobre o tema, mas nada avançou", afirma.
A vida de pesquisadora foi se desenrolando por meio de outros projetos, contudo, no terceiro ano de faculdade, a futura economista se sentiu esgotada. Decidiu, então, tirar umas férias um pouco mais prolongadas e foi para o Japão, terra dos pais. "Estava muito absorvida pela vida acadêmica e me afastando daquilo que era meu objetivo, trabalhar no mercado financeiro", ressalta. Naquele período, a economia mundial passava por fortes turbulências. O México havia quebrado e tinha explodido a bolha imobiliária japonesa. No Brasil, porém, o clima era outro. O Plano Real, recém-lançado, havia reduzido a inflação no país de mais de 80% ao mês para quase zero. A economia brasileira e a argentina cresciam.
"Fiquei atiçada. Voltei para o Brasil disposta a buscar uma vaga no mercado financeiro", relembra. Mal ela retornou à universidade, seu orientador na Fipe, professor Denisard Alves, lhe ofereceu um projeto que ela não podia recusar. O Banco Mundial tinha contratado a fundação para medir o impacto do aquecimento global na agricultura brasileira. Tudo sob a coordenação do professor Robert Evenson, da universidade norte-americana de Yale, um dos templos do conhecimento no mundo. Numa segunda etapa da pesquisa, o objetivo era medir como as questões climáticas afetavam as políticas públicas de saúde do Brasil. O melhor: esses estudos estavam na base do projeto sobre aquecimento global que deu o Nobel de Economia ao professor William Nordhaus.
Prêmio Nobel
O sucesso da pesquisa foi tamanho, que Sandra, já formada, recebeu um convite para continuar estudando nos Estados Unidos, mais precisamente em Yale. "Foi uma época deslumbrante", destaca. "Simplesmente, no período em que passei na universidade fui apresentada a vários vencedores do prêmio Nobel de Economia", diz. E lista: além de Nordhaus, conheceu Merton Miller, Douglas North, James Tobin, Amartya Sem e Robert Schiller. Para uma jovem de pouco mais de 20 anos, era um sonho o que estava acontecendo. "A proximidade com esses gênios era tão normal, que, todas as quintas-feiras, um dos ganhadores do Nobel bancava o café e o lanche para professores e alunos que se reuniam para discutir artigos científicos que tinham preparado", complementa.
O encanto de Sandra tinha razão de sobra: muitos dos professores laureados que ela conheceu e com os quais conviveu faziam a cabeça dos homens mais poderosos do mundo. Robert Schiller, por exemplo, foi o responsável pelos estudos que tratavam da "exuberância irracional" dos mercados financeiros do mundo e cuja expressão ganhou notoriedade ao sair da boca de Alan Greenspan, então presidente do Federal Reserve (Fed), o banco Central dos Estados Unidos. Ainda em Yale, a futura economista conheceu o professor Koichi Hamada, que foi consultor do governo japonês e idealizador do Abenomics, um conjunto de políticas econômicas que terá como meta tirar o Japão de uma profunda recessão.
"O que vivi nesse período foi uma explosão de conhecimento, um privilégio para pouquíssimas pessoas", enfatiza Sandra, que retornou ao Brasil "quebrada financeiramente". Ela tinha na cabeça fazer seu mestrado, mas também precisava trabalhar — e no mercado financeiro. Não demorou para que o primeiro emprego em um banco aparecesse. E, com ele, coincidentemente, vieram as crises na Ásia, na Rússia e no Brasil, onde o Banco Central, em janeiro de 1999, foi obrigado a mudar a política cambial, adotando o regime de taxas flutuantes. "Essas experiências reafirmaram a minha convicção sobre com o que eu queria trabalhar", frisa. A satisfação de fazer o que sonhava não a impediu de, mais à frente, pedir um afastamento para retornar aos EUA e fazer seu mestrado na Universidade de Yale.
As melhores oportunidades de conhecimento estavam à disposição da economista. "Não posso reclamar. Minha formação foi espetacular. E o mais interessante foi perceber que, nas universidades norte-americanas, não há um abismo entre professores e alunos, muito pelo contrário", constata. Um ano e meio depois, Sandra retornou ao Brasil e o banco para o qual ela trabalhava já não existia mais, havia sido incorporado por outro, que, logo depois, foi comprado por um gigante do sistema financeiro nacional. "Pensei: estou desempregada. Mas os novos donos me convidaram para ficar", conta. Passado um tempinho, foi para uma consultoria norte-americana, mas a relação não durou muito tempo.
Exageros do mercado
Quando se sentem confiantes demais, os investidores empurram os preços das ações para níveis insustentáveis, sem nenhuma base técnica. Esse movimento irracional começou a ganhar força na metade dos anos de 1990, o que resultou num alerta do então presidente do Banco Central dos Estados Unidos, Alan Greenspan. Mas de pouco adiantou. O resultado foi o estouro da bolha da internet no início dos anos 2000, deixando um rastro de prejuízos.
Plano de resgate
O programa econômico que tinha como meta tirar o Japão de um longo período de recessão se baseava em três pilares: despejar dinheiro público na economia por meio do Banco Central, dar estímulos fiscais aos consumidores e às empresas e fazer reformas estruturais. Essas políticas foram adotadas a partir de 2012 pelo então primeiro-ministro Shinzo Abe, que foi assassinado em junho de 2022 quando participava de um comício político.
Vida pessoal
Em 2001, Portugal entrou no seu caminho. Sandra foi convidada para ser economista-chefe da unidade de um banco português no Brasil. Detalhe: aos 27 anos, era uma das três mulheres que exerciam essa função entre 100 instituições financeiras cadastradas no Banco Central brasileiro que tinham o cargo de economista-chefe. Seis anos depois, numa viagem ao país europeu, decidiu visitar a sede de seu empregador. E relatou o desejo de ampliar os horizontes profissionais. Pois o destino não lhe falhou. Não só conseguiu a transferência para Portugal, como ganhou nova função, a de estrategista-chefe, cujo desafio era desenvolver produtos que faziam sentido sob a ótica econômica. O sólido conhecimento que ela havia acumulado faria a diferença.
O banco português, porém, acabou sucumbindo a uma série de problemas, o que obrigou o governo de Portugal a assumir sua administração e a dividir os negócios. A parte em que a economista trabalhava foi arrematada pelo Haitong Bank. Olhando sua trajetória, Sandra se diz realizada. "Foram muitos os desafios. Mas a vida fica sem graça se não houver dificuldades no meio do caminho. São os percalços que nos fazem seguir em frente", afirma. O fato de ser mulher e ter crescido tanto em um ambiente tão machista, como o sistema financeiro, a enche de orgulho. "O preconceito é latente. Eu particularmente, não tive problemas, mas sei de colegas que sofreram no mercado por questão de gênero", assinala.
Para Sandra, boa parte da discriminação que as mulheres sofrem no mercado de trabalho poderia ser superada se o Brasil investisse mais em educação de qualidade. "Nos cursos de economia, por exemplo, menos de um terço é de mulheres, por isso, elas são minoria em cargos que exigem tal formação", pontua. A agora executiva, que conviveu com tantos ganhadores do prêmio Nobel, lembra que, desde 1969, quando economistas passaram a ser laureados por suas pesquisas, somente duas mulheres foram condecoradas. É muito pouco. E levará tempo para mudar esse quadro.
Apesar das muitas barreiras, Sandra acredita que todo o esforço para se tornar um profissional de primeira, independentemente da carreira escolhida, vale a pena. Desde, é claro, que se possa equilibrar o trabalho com a vida pessoal. "Precisei amadurecer para entender isso."