BRASILEIROS NO TOPO DO MUNDO

Do marketing político para a enologia

Historiadora e especialista em marketing político, Fernanda Zuccaro abriu mão de tudo no Brasil para se tornar fabricante de vinhos em Portugal. Sua empresa já exporta para Canadá, Luxemburgo e Israel

VICENTE NUNESCorrespondente
postado em 02/10/2022 06:00 / atualizado em 02/10/2022 06:00
Depois de trocar o Brasil por Portugal, há mais de cinco anos, a historiadora e especialista em marketing político Fernanda Zuccaro deu uma grande guinada em sua vida e, hoje, se sente realizada com sua vinícola, que nesta temporada produzirá cerca de 40 mil garrafas. Além de abastecer o mercado interno, parte da produção será exportada para Canadá, Luxemburgo, Israel e Brasil.  -  (crédito: Pedro Dias/ Divulgação )
Depois de trocar o Brasil por Portugal, há mais de cinco anos, a historiadora e especialista em marketing político Fernanda Zuccaro deu uma grande guinada em sua vida e, hoje, se sente realizada com sua vinícola, que nesta temporada produzirá cerca de 40 mil garrafas. Além de abastecer o mercado interno, parte da produção será exportada para Canadá, Luxemburgo, Israel e Brasil. - (crédito: Pedro Dias/ Divulgação )

Lisboa — Fernanda Zuccaro, 44 anos, não gosta de olhar para trás. Acredita que, se fosse afeita a remoer o passado, não estaria vivendo um presente tão recompensador. Cinco anos e meio depois de desembarcar em Portugal com um sonho e a disposição para uma nova vida, ela se diz realizada. Começou do zero, como ressalta, e construiu uma vinícola que a enche de orgulho. Neste ano, mesmo com a forte onda de calor que varreu a Europa e provocou algumas perdas em seus vinhedos, terá a sua maior produção. Serão quase 40 mil garrafas de vinho que já têm destino certo. Parte abastecerá restaurantes e lojas de bebidas espalhados por terras lusitanas. Parte seguirá para Brasil, Canadá, Luxemburgo e Israel.

O projeto que resultou na Quinta Alta, a vinícola de Fernanda encravada na região do Douro, norte de Portugal, teve seu primeiro esboço em 2010, após as eleições presidenciais. Historiadora, ela havia pavimentado uma carreira brilhante em marketing político, mas já não se sentia realizada com o trabalho que vinha fazendo. Para se desligar da confusão da campanha que consumia seus dias, ela e o marido, o marqueteiro Chico Santa Rita, embarcaram para o Uruguai, onde o passeio principal seria fazer a rota do vinho.

Foi em frente a um vinhedo, que o marido lhe perguntou: "Fernandinha — ele sempre a chamou assim —, o que você quer fazer da vida? Ela, com um certo desânimo, respondeu: "Quero continuar fazendo o que eu faço". E ele ressaltou: "Estou falando de algo que não seja marketing político, que está desgastado no Brasil. O debate político está empobrecido". E perguntou de novo: "O que você gostaria de fazer de diferente?" Foi então que o desejo contido dela se escancarou. "Quero fazer vinhos, mas em Portugal".

Aquela conversa nunca mais saiu da cabeça de Fernanda. "Comecei uma via sacra. Estipulei o prazo que ainda continuaria trabalhando com marketing político e fui construindo coragem para a aventura que havia me proposto", conta ela. Foram longos seis anos até que o dia em que sua vida mudaria para sempre chegou. Era fim de 2016. "Foi muito difícil romper com tudo, até porque eu não fiquei com um pé no Brasil e outro em Portugal. Mas a decisão estava tomada. Contratei um contêiner para levar minhas coisas para o outro lado do Atlântico e uma nova etapa começava", relata. "Ou era naquele momento, ou não faria mais."

Doença do marido

Historiadora e especialista em marketing político, Fernanda Zuccaro abriu mão de tudo no Brasil para se tornar fabricante de vinhos em Portugal. Sua empresa exporta para Canadá, Luxemburgo e Israel
Historiadora e especialista em marketing político, Fernanda Zuccaro abriu mão de tudo no Brasil para se tornar fabricante de vinhos em Portugal. Sua empresa exporta para Canadá, Luxemburgo e Israel (foto: Fotos: Pedro Dias/ Divulgação )

Apesar da convicção com que partiu do Brasil, Fernanda, num primeiro momento, sentiu o peso da dúvida. Contudo, manteve-se firme. "Não podia perder a oportunidade. Não podia perder aquele momento em que eu estava com coragem, que tinha gás para recomeçar uma história, um novo ciclo da minha vida", diz. No roteiro que havia traçado, estabeleceu uma meta: quando entrasse no mercado de vinhos, não queria trabalhar com castas de uvas mundialmente conhecidas. "Queria, realmente, um desafio, uma coisa diferente. E Portugal, com uma vastidão de castas, me daria a possibilidade de seguir com esse objetivo", afirma.

As dificuldades não tardaram a aparecer. E a maior delas foi a doença degenerativa, o Alzheimer, que acometeu o marido dela. O porto seguro que tinha dado todo o suporte para que ela mudasse de vida e transformasse o sonho de ser produtora de vinho em realidade, começou a lhe faltar. Nada a desestabilizava mais do que a ausência de Santa Rita, sempre muito atuante. "Fui para Portugal e, de repente, me vi sozinha naquele projeto. Mesmo que tudo tenha sido, desde o começo, idealizado, materializado e identificado com a Fernanda produtora de vinhos, Chico sempre foi muito parceiro. Poxa vida, ficamos eu e ele, e, depois, eu sozinha", lamenta.

Os percalços sem o marido presente se agigantaram. E Fernanda se deu conta de que o que ela menos havia se preocupado tornou-se um fardo: o idioma. "Mesmo sendo brasileira e falando português, tive muitos problemas de comunicação. A língua falada em Portugal é bem diferente do que a que falamos no Brasil", enfatiza. "No mundo dos negócios, e na região do Douro, o conflito linguístico se tornou algo muito sensível. O significado das palavras, as entonações, o acento, tudo ficou difícil. Até hoje, quando me perguntam, não tenho vergonha de dizer que a língua foi e continua sendo um problema para mim", emenda.

A realidade no país europeu não economizou ao se impor no caminho Fernanda. "Quando me mudei para o outro lado do Atlântico, tinha quase 20 anos de carreira no Brasil, e era reconhecida pelo trabalho que realizava. Em Portugal, constatei que não era nada, me vi como um zero à esquerda. Não tinha conhecimento, não tinha reputação de empresária, não sabia quais eram as pessoas com quem deveria me relacionar", rememora. "E eu havia me proposto a ser uma produtora raiz, que estava em Portugal de fato, na vinha, na adega, nas vendas, em todo o projeto, de uma forma holística. Não era uma investidora, não era uma pessoa que foi para Portugal para passear, muito pelo contrário. Eu levei para lá a minha história, a minha vida, tudo o que tinha, tudo o que era preciso para criar um negócio do zero."

Peso de ser mulher

Fernanda Zuccaro mostra as uvas colhidas para a produção de vinhos em sua vinícola
Fernanda Zuccaro mostra as uvas colhidas para a produção de vinhos em sua vinícola (foto: Pedro Dias/ Divulgação )

O fato de ser mulher e brasileira agravou ainda mais a situação. "Já me senti acuada algumas vezes, pois existe a visão de que as brasileiras são putas, que mudam para Portugal para fugir de algo no Brasil, que precisam se esconder. Não é uma visão geral, mas está presente", diz a empresária. Ela ressalta que, por formação e determinação, procura ignorar situações como essas, que possam deixá-la vulnerável. "Procuro seguir em frente", frisa. A experiência acumulada no marketing político, de construção de imagens, acabou lhe ajudando bastante. "Sempre que confrontada, mostro que fui para Portugal para trabalhar, para tocar um negócio", assinala.

Dificuldades financeiras também surgiram, sobretudo por causa dos gastos com a doença do marido, que requer cuidados especiais. "Mas me reergui", entoa em alto e bom som, lembrando que a primeira vindima em sua quinta foi em 24 de agosto de 2017. A safra de vinhos que saiu dali continua sendo referência no catálogo da empresa dela. "Eu voltei para a universidade aos 39 anos para recomeçar uma carreira, para recomeçar um estudo de uma área completamente diferente daquilo que eu fazia. Não me arrependo", complementa.

Para Fernanda, que também tem nacionalidade italiana herdada do pai, todas as boas lições que teve nos últimos cinco anos e meio foram bem-vindas e lhe dão estofo para se posicionar. "Digo que é difícil produzir vinho em Portugal. No, Douro é ainda mais difícil, pois há, na região, empresas centenárias, que estão na sexta, sétima geração produzindo vinhos. Acho, inclusive, que é uma tremenda ousadia, para não falar prepotência, da minha parte em ir para a região e produzir. Mas o bom é que tem mercado para todos", afirma.

Ainda que alguns a vejam como forasteira num local onde a hereditariedade é algo fortíssimo, orgulha-se do que faz. "Sou uma forasteira bem-vinda, que chegou para fazer a diferença, para somar e, principalmente, para levar o Douro de uma forma tão positiva para vários lugares do mundo, especialmente, para o Brasil", descreve.

Em relação à estrutura de seu negócio, Fernanda conta que tudo é compartimentado, pois a empresa, sediada em Moura Morta, ainda é relativamente pequena. Há a parte da produção, outra de gestão e uma de comercialização. Tudo sob a supervisão dela. "Isso é muito importante para garantir a qualidade e a eficiência", destaca. Ela diz que os atropelos provocados pela pandemia estão sendo superados por meio de uma postura bastante agressiva no mercado. "Hoje, exportamos 30% da nossa produção. Queremos dobrar esse índice em breve", revela.

Ossos do ofício

Zuccaro: "Sou uma forasteira bem-vinda, que chegou para fazer a diferença"
Zuccaro: "Sou uma forasteira bem-vinda, que chegou para fazer a diferença" (foto: Arquivo Pessoal)

Planos a parte, a dona da Quinta Alta reconhece que a produção de vinhos é um processo muito lento. A safra de agora ficará três anos em barricas de carvalho. Depois, passará mais um ano em garrafas. Ou seja, a comercialização se dará daqui a quatro anos. "Então, organizar esse fluxo é muito difícil. Até chegar a um ritmo que equilibre a empresa leva tempo. Mas o nosso objetivo é realmente crescer em termos de produção com qualidade, mantendo a identidade da empresa, que é jovem, com muita vontade, muita ousadia para poder fazer coisas que representem o Douro e que extrapolem o Douro", ressalta.

Nem o excesso de burocracia que atormenta os empreendedores diminui a confiança de Fernanda. "Tenho coragem", reforça. Para ela, acima de tudo, o que importa é que está na direção do que escolheu. "O ofício de produtor de vinhos é muito bonito. Cuidar uma fruta durante o ano inteiro e transformá-la em vinho é prazeroso demais. Servir esse vinho em momentos tão importantes, seja num batizado de um filho, seja num casamento ou mesmo num divórcio, é uma honra para mim. Quando alguém chega para mim e diz que tomou meu vinho, fico honrada. É um sinal de que tenho de continuar em frente."

O prazer vai além da questão econômica. "A produção de vinho me libertou de muitas coisas. Tenho um amigo que me disse que eu havia me tornado rústica, perdido a minha elegância. Na verdade, o que mudou foi a minha percepção da vida, do que realmente é relevante. Eu moro no meio de um vinhedo. Vivo esse vinhedo 24 horas por dia", assinala. Para ela, o que faz é um luxo. "Não mudei de país para continuar trabalhando com a mesma coisa. Mudei de país, mudei de atividade, mudei minha vida. Dificuldades vão continuar aparecendo, mas, como num carro, boto a primeira marcha e dou a arrancada. Vai ter buraco, vai ter pedra, mas não desistirei no meio do caminho."

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