Lisboa — Aliás, que fique claro: apesar da origem humilde e das dificuldades que teve de superar ao longo de sua trajetória, o professor Alex de Carvalho, 36 anos, da Universidade de Sorbonne, na França, não quer — e não gosta — de ser visto como um coitado. Muito pelo contrário. O fato de, aos oitos meses de idade, ter sido dado pela mãe à avó paterna e de ter crescido numa das cidades mais violentas e pobres do país, São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em nada o impede de se considerar um felizardo, uma pessoa a quem a vida ofereceu tudo de bom. "Está claro que, vindo de onde vim, faz de mim uma exceção. Mas, ao mesmo tempo, acho que eu tive tantos privilégios depois, que não consigo me achar um coitadinho. Não visto essa bandeira, porque há pessoas que enfrentam barreiras muito piores", diz.
A infância de Alex na pobreza sempre foi compensada com muito amor pela avó, dona Anna, que, mesmo tendo estudado até o quarto ano do ensino fundamental, sempre viu a educação como a base de um futuro melhor. E isso o professor de psicologia de uma das mais renomadas universidades do mundo absorveu desde cedo. Tanto que, para ele, faltar à escola era uma tortura, ainda que estivesse doente. "Ficava triste. Gostava demais de ir às aulas", conta. A avó, por sinal, não queria qualquer escola para o neto, desejava as melhores, nem que isso significasse passar a noite numa fila para garantir uma vaga ou pedir ajudar a algum conhecido. "Ela sempre procurava pessoas que admirava para pedir conselhos sobre a minha educação. Não economizava nos esforços", lembra ele.
Aos 13 anos, antes de terminar o ensino fundamental, Alex tomou para si a missão de encontrar um colégio no qual não enfrentasse as constantes greves de professores das escolas públicas. Soube, por vizinhos, que o dono de um colégio particular muito conceituado na região onde morava estava se movimentando para entrar na política e havia anunciado que distribuiria algumas bolsas de estudo para alunos carentes. Sem avisar a avó e o pai, com o qual cresceu como se fosse um irmão mais velho, procurou o empresário e lhe pediu uma oportunidade. O então candidato a vereador se espantou com a petulância daquele garoto, mas não escondeu a sua admiração diante da convicção com que ele falava. Em vez de um desconto nas mensalidades, deu uma bolsa integral ao menino.
Antes, porém, de comunicar a boa notícia a Alex, o dono da escola lhe perguntou onde estavam os pais dele. O menino explicou que o pai trabalhava à noite e, naquele momento, estava dormindo. A mãe, ele pouco via. Assim que ela lhe entregou à avó dele, mudou de cidade, casou-se e construiu uma nova família. Portanto, cabia a ele lutar pelo que queria, sempre com o apoio de dona Anna. O ano em que o garoto passou no colégio particular foi vital do ponto de vista intelectual. Isso ficou claro quando se candidatou a uma vaga para o ensino médio em uma das escolas públicas mais disputadas do Rio. Passou para cursar propaganda e marketing. A avó, no entanto, não aprovou a iniciativa. Era demais para ela ver o neto, tão pequeno e sozinho, atravessar todos os dias a Ponte Rio-Niterói.
Vitórias e atropelos
O jeito, então, foi Alex se reinscrever num novo concurso, desta vez para fazer eletrotécnica, um curso que ele não queria, mas que o pai e a avó acreditavam que garantia ao menino um emprego certo quando se tornasse adulto. As aulas eram em tempo integral, com muita matemática, física e química. "Era complicado para mim, pois tinha mais tendência para a área de humanas", diz. Tempos depois, quando foi fazer vestibular, ele entendeu que todo o conhecimento adquirido naquela etapa seria relevante para lhe garantir uma vaga na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), uma das mais reconhecidas do país. Melhor ainda: aquela base de cálculos e fórmulas teria papel preponderante nas pesquisas que, mais à frente, ele desenvolveria, tornando-o referência em linguagem para crianças.
No primeiro vestibular, para direito, curso escolhido pelo pai, não passou. Na segunda tentativa, a opção de Alex na UFRJ foi por letras e francês, língua que ele desconhecia, mas o desafiava. Porém, a tão sonhada aprovação para a universidade veio acompanhada da informação de que o curso seria durante o dia. Portanto, o jovem não poderia trabalhar para pagar os custos de transporte, de alimentação e com material escolar. "Só de transporte eram R$ 20 por dia, quase um salário mínimo por mês. Minha avó não tinha como me ajudar", afirma. O jeito foi improvisar: ele se comprometeu a fazer as duas primeiras matérias pela manhã, para às 10h estar no serviço, e assim fechar o primeiro semestre. Em seguida, trancou a matrícula. Ele precisava se capitalizar para parar de trabalhar e levar o curso até o final.
Dois anos depois, Alex estava de volta às salas de aula, das quais não sairia mais. Nesse retorno à UFRJ, se deparou com um curso de linguística de uma professora que era especialista em neurociência da linguagem e neurofisiologia. Ele ficou encantado com a possibilidade de descobrir os mecanismos cerebrais que suportam o aprendizado da linguagem. "A professora nos disse que, com aquele curso, nós iríamos descobrir se realmente gostávamos ou não de linguística", conta. Não deu outra. Ele não só se apaixonou pelo tema, como decidiu que se dedicaria a estudar como as crianças aprendem a linguagem.
"A professora nos falou que uma criança de dois, três anos, que muda para outro país e que simplesmente escuta os falantes dessa localidade, vai aprender, sem nenhum esforço, a falar a nova língua sem sotaque. Questões como essa foram me instigando", relembra. A partir daí, mergulhou de vez nas pesquisas, primeiro, analisando estudos feitos por cientistas renomados, depois, conduzindo os próprios trabalhos. "Entrei na universidade achando que queria ser professor para ensinar crianças, mas quando vi toda a área da pesquisa, decidi descobrir como elas aprendem para poder melhorar o método de ensino que lhes é oferecido", diz.
Caminho sem volta
O problema era que toda a bagagem sobre funcionamento do cérebro, ciências cognitivas, aprendizado da linguagem e psicologia fugia do escopo do curso da Faculdade de Letras. Mas Alex queria mais e partiu para a iniciação científica no laboratório da universidade. E veio a primeira bolsa de estudo, de R$ 300 por mês. "Comecei a trabalhar com a minha professora. Fui me interessando cada vez mais sobre bebês, cérebro e linguagem. E o retorno das nossas pesquisas era sempre positivo", ressalta. "Mas as pessoas ficavam intrigadas e diziam: aqui é uma faculdade de letras, você está fora do seu habitat. E realmente eu estava forçando uma interdisciplinaridade que não existia ainda no Brasil", emenda.
O passo seguinte foi fazer uma pesquisa com um grupo de mais de 30 bebês de 4 a 6 meses, em parceria com uma aluna de mestrado, que tinha uma escola bilíngue de crianças. Com a ajuda de uma engenheira, adaptaram um sistema usado pelos franceses, o chupetógrafo, para entender a reação das crianças quando apresentadas às letras do alfabeto, consoantes e vogais. "Era um trabalho difícil, pois precisávamos que os bebês fossem ao laboratório por 10 dias seguidos. Tínhamos que ensinar várias coisas para essas crianças nesse período e ver se elas aprenderam. Conseguimos. Acho que, até hoje, foi o único trabalho com bebês tão pequenos no laboratório da universidade", assinala.
Foi nesta etapa da vida que a França entrou com tudo na vida de Alex. No final da graduação em letras, ele participou de uma seleção para ensinar português aos franceses durante um ano. Como ele precisava aprimorar o conhecimento da língua, não titubeou. "Não imaginava que isso mudaria minha vida, porque estava tão animado com a área da psicolinguística, na qual eu fazia a pesquisa, que tinha certeza de que entraria no mestrado e no doutorado, que faria carreira nessa área no Brasil", afirma. Já em Bordeaux, após contatos prévios ainda na faculdade, ele conseguiu conciliar as aulas com um estágio em um laboratório que estudava a linguagem de bebês.
Uma das professoras desse laboratório lhe perguntou por que voltaria para o Brasil se não havia estrutura para ele continuar com suas pesquisas. Ela sugeriu, então, que Alex concorresse a uma vaga de mestrado nas escolas superiores da França, comparadas às de Havard, nos Estados Unidos. Essas escolas, seletíssimas, foram fundadas por Napoleão Bonaparte para formar a elite pensante francesa. Ele encarou o desafio e passou para a de Lyon. Em setembro de 2011, adentrava um templo do conhecimento. A escola, contudo, não tinha pesquisas de linguagem com crianças. Ele teve de fazer seus estudos com adultos.
Hora de retribuir
Como sua meta era trabalhar com bebês, ele foi a Paris e conseguiu uma reunião com a diretora do mais importante laboratório do mundo especializado em aquisição de linguagem. A conversa, que deveria durar uma hora, estendeu-se por todo dia e resultou num convite para que Alex desenvolvesse projetos lá. Para isso, teria que transferir o mestrado de Lyon para a capital francesa. A burocracia pesou e o jeito foi ele abrir mão do curso que havia começado um ano antes e tentar uma bolsa em Paris. Fez a prova para outro mestrado e foi aprovado.
"O diretor de Lyon veio falar comigo e me disse: você me ensinou uma lição. Ele contou que poderia ter flexibilizado as regras para a minha transferência, mas achava que o seu veto seguraria um excelente aluno no laboratório dele. Entendeu que a gente só vive uma vida e que eu deveria seguir atrás dos meus objetivos. Me deu a benção dele. E eu bati asas", rememora o professor. A recepção na escola de Paris foi muito positiva. Os professores abriram mão das matérias que ele já tinha estudado e pode montar o próprio curso. "Foi uma oportunidade excelente. Continuei sendo pago para estudar. Estava em uma das melhores universidades do mundo, tendo tudo à minha disposição para atingir meu objetivo."
Veio o doutorado também na França, o pós-doutorado na Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, e a aprovação em concurso para ser professor em Sorbonne, no Departamento de Psicologia. "Por isso, falo que, quem teve essas oportunidades todas, com todo o investimento que foi feito em mim, não pode se achar um coitadinho", reforça. Hoje, Alex retribui parte do que recebeu por meio de parcerias com universidades brasileiras e auxiliando estudantes do seu país de origem, que, como ele, se aventuram pela França. "Tenho um compromisso pessoal da minha parte, que é o de tentar oferecer para o Brasil um pouquinho de tudo de bom que eu consegui", enfatiza.
Além da parceria com professores e de atuar no programa de pós-graduação em Linguística da UFRJ, Alex participa da Rede de Ciência para a Educação, que recebe incentivo da fundação Ayrton Senna. "Faço isso de forma completamente voluntária, para poder oferecer alguns cursos nesse programa e também receber alunos no meu laboratório em Paris", conta. Para o professor, é triste saber que o Brasil tem destinado cada vez menos verbas para pesquisa e ciência. "Tenho medo de que o país continue perdendo seus cérebros. Os alunos de universidades públicas brasileiras são extremamente inteligentes, capacitados, podem mudar o mundo. Só temos de lapidar esses diamantes, e isso requer investimento", conclui.