Superação

Aos 60 anos, ex-flanelinha realiza o sonho da conquista do diploma

José Mário Silva dos Santos sobrevive hoje como entregador de comida por aplicativo, mas alimenta a expectativa de dias melhores. "O mais relevante foi lapidar o meu social", diz

Jáder Rezende
postado em 21/08/2022 00:01 / atualizado em 23/08/2022 16:10
Aos 60 anos, o ex-flanelinha José Mário Silva dos Santos se forma em gestão ambiental na UnB, comprovando que a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil pode e deve ser um mecanismo de emancipação. -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Aos 60 anos, o ex-flanelinha José Mário Silva dos Santos se forma em gestão ambiental na UnB, comprovando que a democratização do acesso ao ensino superior no Brasil pode e deve ser um mecanismo de emancipação. - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Aos 60 anos, o ex-flanelinha José Mário Silva dos Santos se formou em gestão ambiental pela Universidade de Brasília (UnB). Desempregado durante todo o curso, ele sobrevive hoje como entregador de comida por aplicativo, mas alimenta a expectativa de dias melhores com o diploma de curso superior.

Natural de São Luiz do Maranhão, José Mário se mudou para Brasília há 20 anos, em busca de melhores oportunidades de trabalho, mas suas expectativas não foram atingidas. Depois de quase 30 anos sem estudar, se matriculou em um curso pré-vestibular e ingressou na UnB por meio do Centro Brasileiro de Pesquisa em Avaliação e Seleção e de Promoção de Eventos (Cepraspe).

"Me classifiquei para geografia, mas não me interessava. Como na época não podia escolher outra área, fiz mais uns meses de cursinho e consegui pontuação que me garantiu cursar gestão ambiental no câmpus de Planaltina", conta.

José Mário se gaba de, durante o curso, ter "arrebentado" em química, física e matemática e, ainda, ter sido aprovado no trabalho de conclusão de curso (TCC) sobre "conflitos da legislação com a realidade local do Parque do Retirinho", com nota máxima. Para prosseguir no curso, ele contou com auxílios importantes, como bolsa moradia, de permanência e de alimentação.

Mas nem tudo foi tranquilo, confessa ele. "Não tirei o curso de letra, muito pelo contrário. Reprovei muito, teve disciplinas que fiz mais de uma vez, como cálculo 1, geologia, fundamentos da ciência e da natureza, coisas difíceis pra caramba", relata. "Mais na frente, quando tive que encarar estatística, foi que o bicho pegou, sem contar ecologia de populações e ganho empresarial, normas da ABNT, além de princípio do paralelismo, coisas mais a ver com o curso de direito. Foi duro, 'véi', me deparei com coisas muito complexas, que nem imaginava", completa.

O ex-lavador de carros, durante a formatura na UnB: sonho realizado
O ex-lavador de carros, durante a formatura na UnB: sonho realizado (foto: Arquivo Pessoal)

Contudo, José Mário admite que esses grandes desafios foram devidamente superados. "Vivi um grande drama até o término do TCC. Até agora estou com a mente um pouco pesada, pedindo por descanso". Ele confessa, ainda, que por várias vezes, pensou em desistir, mas o apoio dos colegas o encorajou a seguir em frente. "Pensei que já tinha dado tudo de mim, mas tive que me adaptar da maneira que eles queriam", diz.

"Se cheguei até aqui foi porque me apoiei no ombro dos gigantes", parafraseia ele as palavras do físico, astrônomo e matemático inglês Isaac Newton, ao justificar sua conquista, assegurando que a meta é seguir na nova profissão. "Quero fazer concursos, ser aprovado e ter um salário decente", afirma, revelando estar atento ao edital do concurso de agente de vigilância e saúde ambiental do GDF. "Quero fiscalizar o descarte e a destinação de resíduos hospitalares. O salário é bom, chega a até R$ 6 mil", sonha.

José Mário diz sentir vergonha do trabalho que exerce. Como entregador de aplicativo, trabalhando apenas para uma pizzaria vizinha, afirma ganhar, no máximo, R$ 1.800 por mês, quantia que mal dá para sustentar ele e a cadela Creolina e pagar as contas. "Estou devendo crediário das Casas Bahia e ainda gasto R$ 399 por mês com a prestação da minha moto. Está cada vez mais difícil. Se não morasse de favor com minha tia, não sei como seria", lamenta.

Na faculdade, afirma, aprendeu de tudo, até um pouco de inglês. "Mas o mais relevante foi lapidar o meu social, não desistir das batalhas, seguir em frente. Não queria parecer um incapaz, um impotente", diz o ex-flanelinha, que atuou na função por uma década e mal conseguia se expressar.

"Meu sonho sempre foi agregar um pouco mais de conhecimento à minha existência. Sou muito grato à minha universidade, que me transformou", diz, lançando mão de mais uma citação que sempre o inspirou, desta vez de Paulo Freire, Patrono da Educação Brasileira e autor da Pedagogia do Oprimido: "Se a educação sozinha não transforma a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda". "Foi o que a UnB fez comigo", afirma.

Professores destacam dedicação e garra

José Mário Silva recebe diploma de graduação em gestão ambiental na UnB: "A educação sozinha não transforma a sociedade"
José Mário Silva recebe diploma de graduação em gestão ambiental na UnB: "A educação sozinha não transforma a sociedade" (foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Para os professores que acompanharam sua trajetória na UnB, José Mário foi, mais do que exemplar, um aluno vitorioso, que demonstrou, a todo instante, vontade de aprender coisas novas e se qualificar para o mundo do trabalho.

Para o professor Luis Antonio Pasquetti, foi gratificante ver o esforço pessoal de alguém que teve o direito à educação atrasado, reprimido e negado muitas vezes pelo sistema em que vivemos, onde muitos jovens e adultos não conseguem adentrar no ensino superior, seja por questões sociais, familiares ou de sobrevivência. "É um grande orgulho para nós, um exemplo, um vitorioso nesse sentido", afirma o professor de gestão de pessoas e ex-diretor da UnB Planltina, no período de 2012 a 2016.

Pasquetti destaca, ainda, a importância de políticas públicas de inclusão. "José Mário é exemplo a ser multiplicado mas, para que isso ocorra, é importante que haja políticas públicas, recursos para a educação superior e também o acolhimento, ou seja, que as universidades acolham os estudantes e lhes dê o apoio necessário, como tivemos em período recente na história da educação pública brasileira", diz.

"O terceiro aspecto é um orgulho muito grande da pessoa de José Mário, que sempre continuou trabalhando, mesmo em funções mais simples, como no estacionamento, onde o visitei no dia em que saiu a notícia de que ele havia passado. Havia uma enorme aposta, também por parte da sociedade, em relação a esse perfil de jovens e adultos que adentram a universidade pública."

José Mario: "Se cheguei até aqui foi porque me apoiei no ombro dos gigantes. A universidade me transformou"
José Mario: "Se cheguei até aqui foi porque me apoiei no ombro dos gigantes. A universidade me transformou" (foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Pasquetti destaca, ainda, a importância das instituições de ensino garantirem uma trajetória de sucesso, de dedicação e de qualidade. "É isso que fazemos com os filhos dos trabalhadores que adentram na universidade a partir de novas políticas públicas, como as cotas sociais, tão importantes para a sociedade brasileira", diz.

A professora Mônica Nogueira é mais uma a destacar a vontade e garra de José Mário durante sua passagem pela UnB. "Ele esteve comigo em diferentes disciplinas do curso de gestão ambiental. Foi sempre assíduo e participativo, inspirando outros estudantes com a sua vontade de aprender e tornar-se um profissional bem preparado para atuar no mundo do trabalho", afirma.

Nogueira lembra que a última disciplina que José Mário cursou com ela foi política e gestão ambiental em terras indígenas. "Foi muito interessante, porque ele fez conexões com sua origem, negra e indígena, e o contexto no seu estado, o Maranhão, onde há povos indígenas envolvidos em intensos conflitos. Suas terras e bens naturais estão ameaçados por grandes obras e o avanço da fronteira agropecuária", afirma, recordando que os relatos e vivência de José Mário enriqueceram muito os debates em sala de aula.

"José Mário encarna os resultados dos esforços de democratização do acesso ao ensino superior no Brasil e nos enche de esperança. A educação pode e deve ser um mecanismo de emancipação das pessoas e dos povos e esse é o testemunho que ele nos dá", conclui.

 

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