Eu, Estudante

Desafio

Visibilidade e luta por um lugar ao sol

Primeira gestora de políticas LGBTQIA do Distrito Federal, a assistente social Paula Benett, 41 anos, sofreu na pele todos os tipos de discriminação, até conquistar o respeito da sociedade. Foi a primeira trans servidora da Secretaria da Mulher do GDF e também a pioneira na formulação da pauta de Direitos Humanos a conquistar um assento no Conselho da Mulher.


Mineira de Miraí, mas candanga de coração, Paula se estabeleceu em Brasília há 20 anos. É coautora do decreto que instituiu o nome social para pessoas trans e também da portaria que estabeleceu o banheiro por gênero. Ainda assim, considera que há muito a ser feito e conquistado para que haja, de fato, representatividade e ocupação de espaços.

Ela aponta a empregabilidade como um "grande gargalo". "Isso ocorre justamente por conta do preconceito e da violência no ambiente familiar, fatores que vêm sendo passado de geração a geração", analisa, observando que, a partir do momento em que os filhos vivenciam violência doméstica, piadas racistas, inferiorização de gêneros e raças, a tendência é a de que os filhos reproduzam esses comportamentos ao longo da vida. "Esse comportamento é fruto de uma sociedade binária. Tudo que foge do padrão, que é imposto, acaba sendo perseguido. Há uma pirâmide social montada, onde quem está no topo são os héteros. Os demais caem vertiginosamente. E o pior ocorre quando essas nuances de vulnerabilidade se fundem num só corpo, como por exemplo, uma mulher trans e negra", diz.

Paula conta ter vivenciado inúmeras situações de preconceito e constrangimento no mercado de trabalho em função de sua opção sexual, mas resistiu bravamente a todas as investidas. "Eu pus o pé na porta. Passei por grandes corporações onde era a única trans. Sofri pressões psicológicas e opressão. Evitava até olhar para os colegas de trabalho para não ser mal interpretada. Perdi a conta de entrevistas em que fui bem avaliada, mas me rejeitaram porque sou trans", lembra, ponderando ser imprescindível que as empresas promovam capacitação e treinamento amplos para todos os funcionários, como forma de erradicar preconceitos e promover o acolhimento devido.

Ela avalia que a grande maioria da população trans expulsa do mercado de trabalho acaba partindo para a prostituição e a informalidade, como forma de sobrevivência. "Uma coisa é a decisão, outra a necessidade. Enfrentar o preconceito, o frio e a violência não é fácil. Sem contar que o Brasil é o país onde mais se mata pessoas trans no planeta. Não tem como falar do mercado de trabalho para esse público sem olhar todo o contexto. O preconceito da sociedade impacta, e muito, no mercado de trabalho", analisa Paula, que em suas palestras de capacitação e formação já atingiu mais de 40 mil pessoas.

Afinal, um porto seguro

O consultor de vendas Miguel Rodrigues, 25, que há sete anos decidiu fazer a transição de gênero, também passou por situações nada agradáveis em empresas de Brasília. Ele conta que chegou até mesmo a ser impedido de utilizar banheiros em shoppings onde trabalhou. Maranhense de Imperatriz, veio para Brasília aos 14 anos, por não encontrar apoio nem mesmo da própria família em sua terra natal. "Aqui conclui meu ensino médio e fui aprovado para o curso de letras na Universidade de Brasília, mas tive que trancar a matrícula para buscar trabalho e sobreviver", diz.

Essa decisão, segundo ele, foi crucial para encarar o mundo com outros olhos. "Foi um processo que me machucou bastante. Em entrevistas, mesmo sendo muito comunicativo, confiante e aberto a possibilidades, me sentia desconfortável por certas exigências, como uso de maquiagem e roupas femininas. Passei por situações muito desconfortáveis, constrangedoras. Sofri muito abuso psicológico", diz.

Há um mês, Miguel foi convocado para trabalhar como vendedor em uma loja da TIM em Brasília, por meio do programa de diversidade e inclusão. Agora considera ter encontrado, enfim, um porto seguro. Casado há sete anos, ele pretende levar adiante a ideia de constituir família e ter, pelo menos, quatro filhos, proporcionando a eles uma educação livre de preconceitos. Além do emprego, ele foi beneficiado pelo programa de apoio da empresa, que garantirá a graduação em uma faculdade, no curso de relações internacionais.

Miguel é mais um a considerar que o mercado não está preparado para abrigar pessoas trans. "Com raras exceções, não observamos o cuidado necessário entre as empresas, a aceitação devida. Motivos não faltam para que muitos trans tenham receio de tentar uma vaga, sobretudo por medo do preconceito e da resistência", afirma.


Negra, trans e candomblecista

Arquivo pessoal - Îagûara Flor, trans, negra e seguidora do Candomblé: "Enfrentamos perrengues"

A arte-educadora brasiliense Îagûara Flor, 29, iniciou seu processo de transição em 2016, ao participar dos movimentos de ocupação no Ministério da Educação (MEC) e na Universidade de Brasília (UnB). Recorreu a auxílio psicológico e todas as possibilidades de tratamento para atingir seu propósito.

Negra, filha de militar pastor evangélico e candomblecista, Îagûara passou por percalços jamais imaginados. Após tentativas malsucedidas para se colocar no mercado de trabalho, decidiu investir na gestão da própria carreira. "Chegaram a exigir que eu mudasse a forma de me vestir, de arrumar meu cabelo e até mesmo usar maquiagem mais clara, que escondesse a minha cor e não revelasse a minha religião. Sem contar os episódios de racismo estrutural, velado, silencioso", conta, revelando que somente há pouco tempo obteve o apoio total da família, exceto do pai, que sempre foi distante.

Primeira entre quatro irmãos a cursar uma universidade, se graduando em música pela UnB, ela revela que a conquista do diploma foi fator decisivo para sua aceitação no seio familiar. "As pessoas costumam dar mais valor para títulos, status. Tive que consquistar minha independência financeira para, enfim, me impor", diz a artista independente, que já tentou lecionar em escolas, mas encontrou como única saída as aulas particulares. "Tentaram, de toda forma, invisibilizar a minha existência, a minha forma de ser. Infelizmente, o mercado de trabalho para pessoas trans se torna oportunista, nada acessível", lamenta.

Para ela, a implementação de políticas públicas voltadas à população LGBTQIA foi um grande avanço, mas ainda há muito o que conquistar. "Não dá para parar por aqui. É imprescindível que haja formulação de políticas públicas mais abrangentes e efetivas, que humanizem a nossa existência", afirma. Sobre o tratamento dispensado à população trans no mercado de trabalho, resume: "Quem perde não é a gente, mas quem nos despreza. Afinal, também somos família, enfrentamos perrengues, temos contas a pagar e, acima de tudo, somos mão de obra qualificada."