DIREITO

Mãe garante na justiça afastamento do trabalho para cuidar de filha autista

Além da redução da carga horária, genitora obteve manutenção integral dos vencimentos

Mariana Andrade*
postado em 03/07/2022 06:00 / atualizado em 03/07/2022 06:00
Maria Fernanda ao lado da filha Helena -  (crédito: Arquivo Pessoal)
Maria Fernanda ao lado da filha Helena - (crédito: Arquivo Pessoal)

A escrivã da Polícia Civil Maria Fernanda Gonçalves de Oliveira, 38 anos, garantiu na 2ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de Goiás (TJGO) a redução da carga horária de trabalho, sem prejuízo no salário, para acompanhamento médico da filha autista. Antes de recorrer à justiça, ela solicitou à Secretaria da Administração o fastamento para cuidar da filha, porém o pedido foi negado por seu superior e, posteriormente, ratificado pela Secretaria da Administração.

O advogado Diêgo Vilela, que defendeu a recorrente, ressalta que a questão "envolve direito à vida e à saúde, além da própria dignidade da pessoa humana, garantidos constitucionalmente e pelas legislações infraconstitucionais em vigor". Ainda segundo ele, "o conceito de necessidades especiais, que exigem atenção permanente, são situações de deficiências físicas ou mentais nas quais a presença do responsável seja fundamental na complementação do tratamento terapêutico ou na promoção de uma melhor integração do paciente na sociedade".

O relator recorreu à lei estadual nº 20.756/2020: "Ao servidor que seja pessoa com deficiência, na forma da lei, e exija cuidados especiais ou tenha, sob seus cuidados, cônjuge, companheiro, filho ou dependente, nessa mesma condição, poderá ser concedida redução de jornada de trabalho para o equivalente a seis horas diárias, 30 semanais e 150 horas mensais".

A suspeita da filha, Helena, ser portadora do Transtorno do Espectro Autista (TEA) surgiu durante uma consulta de rotina em janeiro de 2020, quando os pais foram alertados da possível condição neurológica da pequena. Foi adicionada a agenda de atendimentos médicos mais profissionais da saúde, e as consultas passaram a ser mais frequentes e a necessidade da presença da mãe também.

Em 2020, Maria Fernanda ocupava o posto de escrivã da Polícia Civil do Estado de Goiás na central de flagrantes, cargo no qual impossibilitava a ausência para acompanhar a filha, Helena, à época com três anos e meio, as consultas para detectar o diagnóstico de TEA. Hoje ela integra a equipe do grupo especializado em crimes patrimoniais.

No início, os superiores permitiam as saídas antes do horário para Maria Fernanda acompanhar a filha nas terapias, fonoaudiólogo, entre outros. Ela conta que eram cinco consultas por semana e, esse número, já estava reduzido para conseguir conciliar o trabalho e os cuidados com a Helena.

Entre as idas e vindas, a escrivã começou a ser questionada por colegas de trabalho. Frases como: "Você está inventando desculpas para não trabalhar", "não esquenta a cabeça, a sua filha não tem nada", "você está criando doença para sua filha", "ela não tem cara de autista", eram ouvidas por Maria Fernanda.

Mesmo que existissem pessoas preocupadas e com vontade de ajudar, o desconhecimento sobre o TEA conseguiu erguer barreiras intransponíveis o que dificultou ainda mais o processo de compreensão da situação. "Um autista não é igual ao outro. Eles são singulares, não dá para generalizar. A minha filha pode interagir com as pessoas quando está passeando, mas ela tem suas peculiaridades", afirma.

Além de precisar se adaptar à nova condição da pequena Helena, o peso do lado profissional e questões familiares desgastaram profundamente a saúde mental quanto às relações interpessoais de Maria Fernanda. Essa carga emocional a afastou devido a indícios de depressão.

De acordo com a mãe, a filha está se desenvolvendo a passos largos. "Antes ela não falava, apenas apontava e chorava muito. Hoje, ela conta histórias com nexo, sabe diferenciar a realidade do desenho animado, porém, ainda existem alguns fonemas que não consegue pronunciar", relata.

"Ela tem cinco anos e vive na sociedade. A Helena tem um interesse restrito, sensibilidade sonora, mas é muito curiosa e as terapias estão ajudando ela a se desenvolver rapidamente. Meu papel como mãe é conseguir inserir um ser humano apto a conviver na sociedade, e ela está mostrando grandes evoluções", diz.

Para Maria Fernanda, o sentimento que prevalece é de alívio e felicidade. "Esse processo marca a vitória da Helena, agora eu consigo trabalhar e acompanhá-la durante as terapias e trabalhar sem problemas, sem causar danos, seguindo a lei", finaliza.


Transtorno afeta uma em cada 100 crianças

A psicóloga Simone chama a atenção para a prática do diagnóstico fechado -  (crédito: Arquivo Pessoal)
crédito: Arquivo Pessoal

No Brasil, pelo menos 2 milhões de crianças apresentam transtorno de espectro autista (TEA) ou algum tipo de distúrbio neuropsicológico. A escala mundial, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), é de que uma em cada 100 crianças tenham TEA, totalizando cerca de 70 milhões de indivíduos.

De acordo com estudo publicado pelo JAMA Psychiatry, a maioria dos casos de autismo (97% a 99%) tem causa genética, sendo 81% hereditários. Como Helena é o primeiro caso confirmado de TEA na família, houve uma investigação para detectar algum traço do espectro entre os familiares, o que não foi encontrado.

A psicóloga Simone Gordiano define a primeira infância como um período de constante construção. Ela defende a ideia de não adotar um diagnóstico "fechado", ou seja, definitivo para detectar o autismo - devido a permeabilidade e neuroplasticidade inseridas na fase de desenvolvimento da vida da criança.

Gordiano pontua a importância da chamada hipótese diagnóstica (hd), levantamento de sinais que indiquem a existência de falhas no desenvolvimento neurológico. De acordo com a psicóloga, a prática é comum entre os médicos e pediatras. "Do ponto de vista terapêutico, é muito mais interessante você localizar os sinais e intervir, ao contrário de apenas diagnosticar definitivamente um quadro nessa primeira infância", afirma.

Na opinião da psicóloga, ao levantar sinais de riscos e impasses na constituição psíquica do bebê ou da criança é possível confirmar o direito do responsável de se ausentar do trabalho para acompanhá-los nos tratamentos sem existir qualquer tipo de prejuízo. "A prática do diagnóstico fechado entra em conflito com o desenvolvimento humano. Cada sujeito, mesmo inserido dentro do espectro, vai funcionar de forma exclusiva", sinaliza.

Estagiária sob a supervisão de Ana Sá

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