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Altaci Corrêa Rubim: a primeira professora indígena da UnB

A coluna nossos mestres deste mês conta a história da primeira professora indígena da Universidade de Brasília, selecionada em 2018

Altaci Corrêa Rubim, 47 anos, é uma sobrevivente. Primeiro, venceu as estatísticas. Mulher, indígena, nascida no interior do Amazonas, a sua própria existência é uma vitória. Superou o preconceito, a pobreza, a violência e os problemas de saúde. Hoje, Santo Antônio do Içá pode se orgulhar de ter sido berço da primeira professora indígena da Universidade de Brasília (UnB).

Tudo começou num rio, chamado Içá, às margens do Solimões. A comunidade indígena Jacurapá, hoje tomada pelas águas, era o lar dos pais de Altaci. "Viviam em beira de rio, como se fala. Sempre estavam na canoa", conta a professora. Aos 10 anos, o pai dela, Francisco Pinto Rubim, do povo Kokama, perdeu a mãe. O avô de Altaci também já havia morrido. Foi quando um barco Salesiano que passava pela região levou o menino e os padres o obrigaram a trabalhar carregando roupa suja e água num internato em Manaus, de onde ele fugiu aos 18 anos.

"Ele aprendeu a ler e a escrever escondido", lembra Altaci. No período em que viveu no internato, passou até fome. Ao encontrar Glorinha Corrêa da Silva, do povo Kaixana, os dois começam a vida juntos e Francisco começa a ir em busca de escola para os primogênitos. "Até que chega a uma comunidade chamada Porto Américo e descobre que tem uma escolinha em Santo Antônio do Içá, muda-se pra uma ponta do rio onde hoje é o Bairro da Independência, e lá nascem o resto dos filhos." Dos 15, 12 estão vivos.

"Lá, fizemos nossa roça, vivíamos como dentro do Jacurapá. Os pais colocavam seus filhos na escola, mas a gente era muito discriminado. Pela língua, pela roupa. Naquela época, o governo não dava fardamento, e a gente não tinha condições de comprar", detalha a docente. "Muitos desistiram, e a gente só não desistiu porque meu pai não deixava. Ele nunca deixou a gente desistir da escola."

Havia apenas uma biblioteca em Santo Antônio. Era lá que Altaci, os irmãos e outras crianças se escondiam, carregando bacias cheias de frutas que vendiam na cidade. "A gente aproveitava, ficava lá com os livros até o horário que tínhamos de sair correndo para voltar a vender as coisas."

Foi quando o povo da professora recebeu a notícia de que a terra onde morava era do prefeito. "Ele disse que ia trazer gado e ia dar muito emprego para quem morasse lá. Para começar, ele contratou todo mundo, inclusive as crianças, para plantar capim. E todas as nossas roças viraram campo de boi", conta. "Quando terminamos de plantar, ele chamou todo mundo, até as crianças, para carregar areia e asfaltar a cidade", completa.

Depois, o prefeito fez o mesmo, dessa vez dando a todos a tarefa de varrer as ruas que haviam ajudado a pavimentar. Altaci sempre acompanhava a mãe nos serviços, para garantir uma renda extra. "Hoje eu sei que era gari, né? Na época eu nem sabia."

Lutando dia a dia pelo próprio território e pela sobrevivência, ela conseguiu terminar a educação básica e o magistério. Se mudou para perto da avó, do povo Ticuna, e foi trabalhar como professora pela primeira vez, na vila Betânia. Passou dois anos na função, até que o prefeito disse que não pagaria mais os docentes. Decidiu, então, se mudar do interior: era o momento de tentar a vida na capital. Convenceu os pais a deixá-la ir, e ainda levou junto uma irmã e quatro parentes Ticuna.

Arquivo pessoal -
Arquivo Pessoal -

Recomeço na capital amazonense

A chegada a Manaus representou um choque. O primeiro deles foi o barulho. Em seguida, a moradia. Com o dinheiro que levaram, o que deu para alugar foi um quarto em cima de um bueiro. Os parentes Ticuna logo foram embora. "Eu e minha irmã fomos trabalhar de empregadas domésticas. Na casa que minha irmã ficou deram a oportunidade e a matricularam na escola. Na casa onde eu fiquei, não deixavam nem que eu pegasse num livro."

Uma amiga a ajudou a escrever um currículo, emprestou boas roupas e Altaci seguiu para a entrevista de emprego. Não deu outra: foi contratada para dar aula de matemática numa escola e, com a nova renda, alugou um quarto para ela e a irmã.

"Gostavam muito do meu trabalho e me passaram, depois disso, para um contrato de convênio com a Secretaria Municipal de Educação. Meu salário aumentou e eu conseguia mandar dinheiro para a minha mãe e pagar um cursinho pré-vestibular", orgulha-se. Tentou por cinco anos a vaga. Chorava a cada reprovação. Na quinta vez, em 2001, foi aprovada para o curso normal superior (hoje pedagogia) da Universidade Estadual do Amazonas (UEA).

Daí em diante, a carreira no magistério decola, já como prelúdio da brilhante trajetória acadêmica. Antes, porém, viveu a perda precoce do pai, vítima de tétano. Francisco estava consertando uma canoa quando se feriu com um prego. "Foi ao posto (de saúde). Quando chegou lá, não tinha vacina, e quando tinha vacina, não tinha quem aplicasse", lamenta. Ele recebeu a notícia de que a filha havia sido aprovada na graduação e, uma semana depois, não resistiu às complicações da doença.

Arquivo Pessoal -
Arquivo Pessoal -

Defesa dos povos originários

Tataiya Kokama - seu nome indígena - conta a própria história como quem a lê de um livro, ou sentada em roda compartilhando anedotas. Lembra-se com detalhes de situações, de locais e de datas.

Aprovada no concurso da Secretaria Estadual de Educação de Manaus, fez duas especializações. Era hora, então, de começar o mestrado em antropologia. Sob a orientação de Alfredo Wagner Berno de Almeida, expandiu os horizontes.

"Cresci como pessoa, como pesquisadora indígena, e me tornei militante, porque viajei muito, conheci a realidade de outros povos que passaram situações como as que nós passamos. Acabei me tornando oficineira de mapeamento situacional de povos e comunidades tradicionais da Amazônia, levando formação em direitos indígenas, saúde, educação, elaboração de material didático", elenca.

Uma parceria entre as universidades estadual e federal do Amazonas permitiu que esse trabalho fosse desenvolvido no Alto Solimões e em uma parte do Alto Rio Negro, na Amazônia brasileira e peruana, próximo ao Vale do Javari, onde o indigenista Bruno Pereira e o jornalista britânico Dom Philips foram assassinados.

Altaci conta que já viu a própria vida ameaçada em situações de conflito semelhantes às que levaram às mortes dos dois. "Eu vivi isso como espectadora, no período em que eu era criança, e depois como pesquisadora", relata. Mostrar aos indígenas que eles têm direito a remédios, a melhor atendimento de saúde, e muni-los do conhecimento necessário para a demarcação de seus territórios colocou mais de uma vez a professora em risco.

"Por duas duas vezes tentaram nos matar quando estávamos na oficina. Uma vez foi em Santo Antônio, quando falamos de GPS para os indígenas demarcarem seus territórios", conta. "Fizeram uma emboscada quando estávamos dando essa formação, eu e meu amigo", relata a professora. "Não morremos porque um indígena nos desviou do caminho."

"Num outro momento, tínhamos ido ministrar uma oficina em São Paulo de Olivença e chegou um grupo de ribeirinhos muito agressivo com a gente, para falar que a terra era deles", relata. Colocados no centro de uma roda, ela e o amigo conseguiram convencer os habitantes de que existia um processo para que nenhum direito fosse usurpado, "nem de ribeirinho, nem de indígena". "Esse processo no Amazonas é sempre conflituoso, porque são muitas vozes para inibir os direitos de quem mais precisa."

Fotos: Arquivo Pessoal -
Carlos Vieira/CB -
Carlos Vieira/CB -
Carlos Vieira/CB -

A chegada ao Planalto Central

Terminado o mestrado, Altaci logo passa na seleção para o doutorado na UnB, em 2012. Nessa época, fazia cinco anos que a mãe estava morando com ela e, um pouco antes de a professora chegar a Brasília, Glorinha morre por complicações de um câncer no fígado. Como se não bastasse o sofrimento pela perda da matriarca, ela descobre um grave problema de saúde, e da maneira mais inesperada. "Cheguei dia 1º de abril aqui. Dia 8, começaram as aulas, e no dia 1º de maio entrei em coma."

O diagnóstico de púrpura veio acompanhado de tratamento para a vida toda. A doença autoimune caracteriza-se pelo acúmulo de sangue debaixo da pele, em razão de inflamação dos vasos sanguíneos. No fim do ano, ela estava pronta para retornar às aulas. A tese O reordenamento político e cultural do povo Kokama: a reconquista da língua e do território além das fronteiras entre o Brasil e o Peru foi apresentada em 2016.

De volta a Manaus, Altaci não para. Funda, ao lado do professor Ely Macuxi, morto em decorrência de complicações da covid-19 em 2021, a Gerência de Educação Escolar Indígena. Juntos, criaram as políticas de educação escolar indígena da capital amazonense.

Tsar+wapan: quando a felicidade transborda

O primeiro lugar para o cargo de professora adjunta do curso letras/português do Brasil como segunda língua na UnB, em 2018, selou o esforço de uma vida dedicada à busca de direitos para os povos tradicionais. "Depois disso, minha vida mudou completamente", avalia.

"Nossa, eu fiquei sem saber o que pensar. Ter conseguido chegar a estudar já era um sonho, e alcançar algo além do sonho, que é vir para Brasília como professora adjunta… Lembrei de toda a minha trajetória, do meu pai, da minha mãe, do meu povo, foi uma emoção que não tenho palavras", destaca. A palavra Tsar wapan, em Kokama, define o que ela sentiu. A posposição pan significa a plenitude, cheio, que transborda. "Atrelado à palavra tsar wa, que é alegre, significa a plenitude da alegria", explica. "É uma felicidade que você não consegue explicar. Foi com essa alegria que eu fiquei."

Quando está de férias da UnB, Altaci ainda dá formações em Tefé e em Benjamin Constant, ambos municípios do Amazonas. Durante a pandemia, viu a vida ameaçada mais uma vez pela precariedade dos equipamentos públicos no interior do estado. Depois de vacinada com três doses, contraiu covid-19 no Alto Solimões e ainda assim parou na UTI. "Só não morri porque cheguei a tempo em Manaus, antes da intubação", relata.

"Houve uma baixa muito grande de anciãos no meu povo. Setenta só na primeira onda. Na terceira, meu irmão faleceu", conta. A dor e o sofrimento se transformam em aprendizado na sala de aula. A formação de línguas indígenas continuou por meio do WhatsApp e das mídias sociais. "Com a nossa presença aqui na Universidade de Brasília, os alunos podem vivenciar situações e saberes que eles só veem em filme, no jornal."

Leia no próximo domingo a história de Gersem Baniwa, segundo professor indígena da UnB

 

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