número de mulheres que ocupam cargos de liderança no Brasil decresceu significativamente nos últimos três anos, atingindo a marca de 37,4% contra 39,1% dos postos de trabalho ocupados por elas em 2019, revela a mais recente pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). No quesito rendimento, as mulheres prosseguem recebendo bem menos em relação aos homens (77,7% do rendimento), mesmo com mais anos de estudo. Em contrapartida, estudo do Instituto Ipsos divulgado no final do ano passado coloca o Brasil no topo do ranking, entre 28 países, considerando a taxa de apostas em lideranças femininas, ou seja, 7 entre 10 brasileiros acham que o planeta seria mais bem gerido pela força delas.
Ainda que ocupem cargos de alto escalão, as profissionais se destacam de diferentes formas, mas ainda são desrespeitadas e subestimadas em diversas áreas de atuação com um ponto principal em comum: trabalhar em setores dominados majoritariamente por homens. A construção da igualdade, no entanto, ganha força a partir do exemplo das profissionais que estão no topo da decisão de empresas e estimulam outras mulheres a alcançarem promoções, mesmo trabalhando com homens. Para essas mulheres, machistas nenhum resiste a uma mulher que mostre as garras e entrega o seu melhor, a despeito dos preconceitos.
Diretora de gente e comunidade na empresa Neurotech de inteligência artificial no Brasil, Ketty Sanches, 41 anos, observa que ser mulher em um ambiente que lidera pessoas “é um eterno ‘equilibrar pratos’, porque a gente tem família, sonhos e se cuida como mulher”. Para a administrador, as dificuldades acerca da ascensão feminina ainsa são latentes. "O maior desafio é não conseguir enxergar inspirações em grandes cargos de poder, a escassez no mercado de mulheres que venceram lacunas sociais”, diz.
Ela entende que as mulheres enfrentam ainda grande dificuldade de enquadramento. “Podemos querer ter filhos ou não, viajar ou não, sem contar que a mulher leva bem mais tempo para conseguir subir de cargos, por horários que brigam com a vida pessoal”, pondera.
A líder de recursos humanos lembra o desafio enfrentado ao experimentar a maternidade aos 18 e aos 22 anos e, em seguida, ter alcançado o sonhado doutorado em Valência, na Espanha. “Família é um combustível pra mim. Mesmo eu sendo vista como uma pessoa diferente, não preciso escolher entre a vida profissional e pessoal. É preciso apenas conciliar”, afirma.
Ketty conta que já passou por situações desconfortáveis com colegas de trabalho, chegando a ser criticada apenas pelo fato de ser mulher “O preconceito com a mulher é velado, mas muitas vezes bem aberto. É comum escutarmos frases do tipo: 'esse comportamento é de mulherzinha', ao se sensibilizar com alguém ou alguma coisa, e até mesmo ser interrompida em uma reunião, não conseguindo ser ouvida em um ambiente majoritariamente masculino”, lamenta.
Fora da curva
A diretora de Vendas da TIM Centro-Oeste e Norte, Graciela Berlezi, por sua vez, alcançou um feito dificilmente vivido por outras mulheres em sua trajetória profissional. Mãe de duas meninas, foi promovida dentro da mesma empresa durante as duas gestações. "Quando recebi a proposta de direção, minha primeira reação foi de espanto, pois estava grávida. Isso me marcou muito, pois fomos educadas a ter preconceitos sobre nós mesmas. Na minha cabeça não fazia sentido, mesmo a gestação fazendo parte da vida de uma mulher”, recorda.
Greaciela se considera “um ponto fora da curva”, ou seja, que faz parte de uma minoria que foi apoiada por sua equipe e, mesmo não se achando a “mulher maravilha”, considera que era ela mesma que deveria ocupar o cargo, pois estava devidamente preparada pra assumir aquela posição.
Graduada em administração de empresas pela Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, com MBA em negócios do varejo pela Fundação Instituto de Administração (FIA), uma das instituições mais bem avaliadas em rankings nacionais e internacionais de educação, e em estratégias de negócios digitais pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), nos Estados Unidos, Graciela conta como é trabalhar em uma empresa de forte presença masculina, onde não se sentiu julgada. “Mesmo com tantos homens, fui muito bem acolhida”, diz a executiva de sucesso em um setor tradicionalmente masculino, ela afirma que se sente diferente da maioria das mulheres. “Me sinto uma em um milhão”, afirma, ponderando, em seguida: “Apesar de ter consciência de que as mulheres são tão ou mais preparadas quanto os homens, elas acabam reféns da insegurança que aprenderam culturalmente”.
Assédio e preconceito
Tenente-Coronel do Corpo de Bombeiros de Brasília e mãe de um filho de 16 anos, Cristiane Fernandes Simões, 46 anos, alcançou a façanha de ser a primeira oficial da turma de mulheres bombeiras militar no Brasil. Há 29 anos na função, ela revela que sempre conseguiu conciliar a rotina doméstica com a do serviço, porém com a devida retaguarda. “Isso só foi possível devido ao auxílio da minha mãe e de uma ‘ajudadora’. Sem essa rede de apoio fica muito mais difícil para qualquer mulher agregar as duas missões: ser mãe e profissional. Nesse sentido, vejo que as instituições possuem um papel fundamental na promoção de políticas que possibilitem às mulheres aliar suas rotinas com as tarefas da maternagem”, conta.
No Brasil, a cada 10 engenheiros cadastrados no Conselho Federal de Engenharia e Agronomia (Confea) apenas um é do sexo feminino. Além disso, entre os 1,2 milhão de engenheiros registrados no país, somente 13,7% são mulheres. Engenheira de incêndio e pânico formada pelo corpo de bombeiros militar do Distrito Federal, Cristiane conta como é atuar em uma corporação militar com maior poderio masculino. “A instituição é uma parcela da sociedade. Então, se na sociedade há machismo, na instituição também haverá. Ao longo desses 29 anos houve sim, situações constrangedoras, quando me vi obrigada a adotar algumas posturas para evitar o preconceito e o assédio”, diz, destacando a importância da implementação de projetos sociais que amparem a mulher em diferentes áreas. “Políticas de adequação são fundamentais para a inserção das mulheres em todos os ambientes de trabalho, inclusive os militares”, afirma.
Igualdade de direitos
Executiva da Meta, que controla o Facebook, Instagram e o WhatsApp, Yana Dumaresq, 37 anos, já passou pela Universidade de Brasília (UnB), onde fez graduação em relações internacionais, e pela Universidade de Cambridge, ela é responsável por gerenciar a holding no Brasil. Para ela, a discussão sobre gênero nas empresas deve ser vista por outra perspectiva. “Acho injusto reforçar essa oposição entre vida pessoal e profissional. A verdadeira questão que, como sociedade, precisamos discutir, é a sobrecarga imposta à maior parte das mulheres. Cuidar dos filhos, dos afazeres domésticos e de parentes que necessitem de assistência não é atribuição exclusiva da mulher, assim como cuidar da própria carreira e bem-estar não é direito apenas do homem”, analisa.
A brasiliense observa que a área em que atua é misógina, ainda que de forma disfarçado. “O ambiente para mulheres executivas ainda é hostil e bastante desafiador. Temos que comprovar a todo instante o que temos capacidade técnica, gerencial e emocional. Muitas vezes não há crítica direta, mas sim comentários travestidos de piadas machistas, um falar mais agressivo ou cético direcionado a nós, ou até mesmo uma postura mais ostensiva em nos ignorar, interromper ou corrigir”, relata.
Ainda segundo Yana, até mesmo em momentos descontraídos no ambiente de trabalho, a mulher pode sofrer tentativas de ser calada. “Isso já aconteceu no meu dia a dia. Nem sempre os comentários têm teor positivo. Já passei por várias situações difíceis pessoalmente, bem como já presenciei outras mulheres passando por situações hostis”, lembra, descrevendo uma situação vivida recentemente. “Ao terminar um discurso, em um evento internacional, um empresário que até então não me conhecia pessoalmente, foi até mim e me disse: quando você subiu ao palco eu pensei: nossa, o que essa menina tem pra falar? Mas depois você me impressionou muito. Além disso, já ouvi de um chefe em uma reunião de equipe dizendo que não poderia me promover por eu ser muito nova e meus subordinados homens e mais velhos não iriam me respeitar”.
A internacionalista, que já ouviu frases como “a senhora é a primeira mulher a se sentar nesta mesa. Estamos felizes e orgulhosas junto com você”, enfatiza ao dizer que compartilha esses casos para mostrar o longo caminho que as mulheres ainda têm pela frente.
Luz, câmera, ação
Diretora executiva da Kilomba Produções, a cineasta Erika Cândido, 38 anos, que assina a produção de obras célebres, como “A vida invisível”, de Karim Ainouz, filme premiado no Festiva de Cannes em 2019, e diretora do longa-metragem “Elza Infinita” disponível no catálogo da Globoplay, conta que passou por muitos percalços até se firmar na sétima arte. “Uma mulher negra ocupando cargos de liderança em projetos afronta muito qualquer estrutura. Esse lugar de mulher negra que lidera, que dirige, que desenvolve narrativas, precisa ser reforçado, pois existe sempre um lugar que é estrutural e que trabalha para apagar nossas realizações. Por exemplo, não nos dar os devidos créditos, mesmo a gente tendo realizado o trabalho”, diz.
Para ela, o racismo é um agravante ainda maior quando envolve as mulheres. “Em muitos projetos não me reconhecem, não apenas por ser mulher, mas muito por ser uma mulher negra. Eu preciso me apresentar, reforçar meu lugar de gestora de projetos mais vezes, pois o meu corpo não é reconhecido em lugares de liderança e potência”, diz. “É necessário estudo, esforço. Acredito que as mulheres negras devem viver para o futuro e não lamentar as dores. Nesse contexto, minha família foi um componente importante para que eu chegasse onde estou hoje”.