Aos 19 anos, a estudante negra Keyla Sacramento foi aprovada em primeiro lugar no curso de medicina da Universidade Federal da Bahia (UFBA) — primeira faculdade de medicina do Brasil que, por décadas, não registrou o ingresso de negros e mulheres. A jovem também foi aprovada no mesmo curso na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), optando pela instituição paulista, por ser referência em cirurgia cardiovascular, área em que pretende se especializar, além de atuar em pesquisas sobre a saúde da população negra. Keyla revela que sempre sonhou em exercer uma profissão que confrontasse as desigualdades latentes de nossa sociedade.
No Sistema de Seleção Unificada (Sisu), a estudante alcançou a média de 827 pontos. Ela conta que se preparou para alcançar seu objetivo desde 2018. Formada no ensino médio em 2020, ingressou no pré-vestibular no ano seguinte, sempre focada em alcançar seu objetivo. "Pesou em minha opção pela Unicamp o fato de a instituição ser um dos principais polos de pesquisa do país", diz Keyla, que se transferiu para Campinas.
Oriunda de classe média, a baiana é a primeira dos dois lados da família a cursar medicina. Seus pais, também graduados, foram os primeiros nas respectivas famílias a ingressar em uma faculdade. O pai, Juarez Sacramento, 59 anos, é formado em ciências contábeis e a mãe, Célia, 55, em direito. O irmão mais velho, Cauan, 22, cursa engenharia elétrica. "Meus pais sempre retificaram a importância vital dos estudos e me ensinaram que é de suma importância aproveitar as oportunidades", diz.
Segundo ela, a opção pela medicina, em particular pela área pretendida, foi motivada "pelo fato de a população negra apresentar os maiores índices de doenças cardíacas e circulatórias" e também pelo amor à avó paterna Eudes, de 89 anos, que já foi submetida a seis cirurgias. "Por mais de 20 anos, ela enfrentou problemas circulatórios sérios em uma das pernas, que não foram diagnosticados corretamente. Isso me angustiava muito. Passei, então, a estudar sobre o assunto, e a questão cardíaca foi me seduzindo cada vez mais", conta.
Ela revela ainda que, além da especialização em cirurgia cardíaca, pretende aprimorar seus conhecimentos na Universidade Johns Hopkins, conhecida por ser o primeiro centro de pesquisa dos Estados Unidos e responsável por descobertas notáveis na ciência, como a identificação do gene causador do câncer de cólon. "Mas, antes, quero atuar na minha cidade, cuidar dos mais pobres, retribuir, compartilhar minha conquista com o meu povo. Honrar minha família, meus ancestrais", diz.
Keyla dispensa o rótulo de militante das causas negras, embora tenha sido vítima de preconceito velado durante a vida estudantil. "A consciência racial é imprescindível para todos os negros, embora minha história é de uma pessoa privilegiada. Sempre estudei em colégios particulares progressistas, e era a única aluna negra na sala de aula ou no colégio. No máximo, havia uma outra colega negra", lembra.
A estudante entende que o racismo no país ainda continua sendo um problema gritante, visceral. "Não há negro que possa afirmar o contrário. É nítida a disparidade nos tratamentos por causa do cabelo, da pele diferente", diz. "Até mesmo o modo de me vestir, com cores sempre vivas, adereços africanos, como turbantes, chamava a atenção e despertava comentários, rótulos como 'exótica demais'. Mas aprendi que, quanto mais as coisas doem, mais a gente tem forças para prosseguir".
Nesse ponto, prossegue, a educação doméstica foi crucial para superar as barreiras. "Sempre tive muito orgulho de meus pais, que garantiram a mim e ao meu irmão diversos privilégios, como boa alimentação, informação, acesso a tecnologias e, principalmente, a possibilidade de sempre me dedicar aos estudos. Por isso, não concordo quando atribuem as minhas conquistas à meritocracia".