Africanas vistas de um lugar de poder e não de subserviência

(crédito: Ilustração Amanda Cintra)

A historiadora Mariana Bracks Fonseca (foto) ginga com uma rainha africana há pelo menos 14 anos. Foi quando ela iniciou um mestrado para contar a história de Njinga (ilustração), uma poderosa governante dos reinos de Ndongo e de Matamba, situados na região atual de Angola. "Essa história da Njinga é inspiradora porque destrói vários esteriótipos: de que o africano é inferior, perdeu todas a guerras, se comprometeu porque era interesseiro, era só um fantoche, não tinha capacidade de pensar estratégias", diz a professora da Universidade Federal de Sergipe.

Mais recentemente, Bracks se dedicou a contar a força do matriarcado em outros reinos do continente, o que resultou no livro-arte Poderosas rainhas africanas (Ancestre Editora), lançado em junho de 2021, e em um curso ministrado para mães de santos, quilombolas e líderes comunitárias brasileiras. "Eu sentia que eram as filhas daquelas rainhas que estavam ali", conta. Elas também. Confira esse roteiro inspirador detalhado à Pretos no topo.

Como as pessoas reagem ao ouvir histórias de rainhas africanas tão poderosas?

Desde 2008, estudo a história de uma dessas rainhas, a Njinga. Fiz mestrado e doutorado e um trabalho mais recente com outras rainhas. Sempre que falo delas, as pessoas se surpreendem. Dizem: "Nossa, uma mulher africana governando?". E é isso. Quanto mais eu estudo, mais vejo que elas não são exceção. Esse é um traço das sociedades africanas pré-coloniais, caracterizadas pelo matriarcado, que é uma forma de organização social que se contrapõe ao patriarcado ocidental europeu. Agora, estamos estudando essas histórias e entendendo o quanto as mulheres foram protagonistas dos processos históricos africanos. No livro, eu trouxe 30 delas, mas poderiam ser mais de 300.

O que fez com que essa configuração fosse mudando ao longo do tempo?

Alguns estudiosos entendem que o colonialismo virou essa chave. A imposição de um sistema colonial, já no século 19, tirou a mulher das posições de poder. O Cristianismo e o Islamismo também foram fatores que reverteram o legado da mulher. As narrativas cristãs não trazem o conceito de equilíbrio entre o masculino e o feminino, que era a base filosófica dos estados pré-coloniais africanos. A Sharia, a lei Islâmica, é patriarcal. Meus estudos indicam que, bem antes disso, a adoção do monoteísmo "do Deus de Israel", em contraposição aos sistemas espirituais africanos repletos de divindades femininas, alterou o poder feminino na região da Etiópia. A história de Makeda, a famosa rainha de Sabá, no século 10 a.C., é um exemplo da transição para o comando masculino. Por outro lado, as mulheres nunca perderam de fato todo o poder. Na África do Sul, por exemplo, hoje, as pessoas pagam tributos para a rainha Modjadji mandar chuvas. Há vários povos que acreditam nesse poder. É um poder espiritual, mas exerce influência em todos os campos da vida social. Importante pensar como poderes políticos, espirituais e econômicos são entrelaçados na África. Essa divisão de poder político, econômico, espiritual e econômico é muito mais das sociedades europeias. As africanas são holísticas. Está tudo junto, tudo é história, música, religiosidade, política. Todo chefe político é coroado pela ancestralidade. Não dá para trazer as caixinhas ocidentais e projetar nas sociedades africanas.

Isso também surpreende..

A surpresa vem da nossa base da educação. Não aprendemos essas histórias, elas foram silenciadas. A gente já associa o poder aos homens brancos quando pensamos em grandes reis e agentes políticos. Não reconhecemos uma mulher negra em posições de poder. Ao contrário, a escrita oficial da história as apresenta como triplamente desmerecidas: por raça, classe e gênero. Isso faz com que a sociedade, de forma geral, associe a mulher preta ao sofrimento, à opressão, à violência, como se fosse "natural", "sempre foi assim". Mas quando olhamos com profundidade para a história da África, percebemos outras realidades. As mulheres não são naturalmente inferiores, como faz crer o pensamento europeu. As mulheres, desde os primórdios, governaram sociedades, eram ouvidas em decisões públicas e privadas, eram honradas e veneradas como força criadora. Conhecer as histórias de mulheres pretas poderosas nos ajuda a reverter séculos de preconceitos e estereótipos projetados pela educação racista eurocêntrica.

Há rainhas africanas que
tiveram ligação com o Brasil?

A Na Agontimé, uma rainha do reino do Daomé, onde é hoje o Benim, diz a lenda, veio para o Maranhão, onde construiu a Casa das Minas, que é um dos terreiros mais importante do Brasil. É uma casa muito forte na tradição da história brasileira. Mas podemos pensar nas influências de várias dessas culturas africanas na nossa história. Em cada terreiro, em cada quilombo que se chega no Brasil, você percebe o poder das mulheres, das fundadoras do candomblé na Bahia e em Sergipe, das matriarcas de Minas Gerais. Isso é muito presente na cultura afro-brasileira. Esse poder feminino africano está bem fincado aqui.

A sua tese de doutorado aprofunda essas ligações Brasil/África ao relacionar a rainha Njinga à ginga da capoeira.
Como isso se deu?

Há uma relação dos nomes, não é uma coincidência. A partir dos depoimentos dos mestres de capoeira, das tradições orais, da musicalidade e da corporeidade, constatei que a sabedoria de uma mulher lá do século 17 tornou-se um movimento corporal da capoeira. Nesse sentido, foi um saber incorporado. Todo um percurso histórico, toda uma sabedoria que Njinga tinha para resistir foi sintetizado em uma manifestação corporal. Ela era especialista em enganar para atingir seus objetivos. As pessoas acreditavam que ela ia para um lado, e ela ia para outro. Ficou 30 anos fugindo dos portugueses sem nunca ter sido capturada. Ela era considerada a principal inimiga deles e chegou a sofrer um golpe de Estado. Acessei os registros do arquiteto do golpe, o governador Fernão de Sousa, e um dos argumentos falsos usados por eles era de que ela não poderia governar por ser mulher, sendo que as tradições orais mostram que o mesmo reino havia tido outras rainhas anteriormente.

Como ela lidava com o
tráfico de escravos?

Esse é um ponto polêmico da história de Njinga. No século 17, no Atlântico Sul, o principal produto eram os escravos. Então, seria ingênuo achar que Njinga não tinha envolvimento com o tráfico. Ela era um chefe que queria se manter no poder e vendia seus prisioneiros, mas não podemos julgar esse envolvimento com os valores do século 21,o abolicionismo é uma ideia que surgiu mais de um século depois dessas guerras. Agora, a documentação me permite comprovar que ela atrapalhou muito o tráfico de escravos. Tem as cartas de Fernão de Souza afirmando que as guerras que a Njinga movia na região impediam o acesso dos escravizados ao litoral. Ela, estrategicamente, assaltava os mercados de escravos, fazia barricadas em rios que davam ao litoral, convencia chefes africanos a não darem escravos para os portugueses em troca de proteção.

Você contou recentemente
essas histórias em um curso para mulheres brasileiras, como
elas as receberam?

Foi a primeira experiência de diálogo fora da academia. Fiz uma parceria com a revista África e Africanidades e montamos cinco turmas, com mais de 70% das vagas preenchidas por bolsas para mães de santo, lideranças comunitárias, quilombolas. Foi maravilhoso. Eu sentia que eram as filhas daquelas rainhas que estavam ali, e elas perceberam isso também. Questionaram por que não sabiam dessas rainhas antes. Ouvi muito delas que se sentiram deslegitimadas desde muito novas e, ao acessarem essas histórias, viram um roteiro diferente. É uma ferramenta que possibilita que elas desafiem as vozes que tentam dizer que as mulheres negras não podem nada. Elas podem tudo, porque a rainha Njinga pôde. Suas ancestrais não se curvaram. Essa história da Njinga é inspiradora porque destrói vários esteriótipos: de que o africano é inferior, perdeu todas a guerras, se comprometeu porque era interesseiro, era só um fantoche, não tinha capacidade de pensar estratégias…

A África tem muito a nos contar…

Cada uma das 30 rainhas que eu conto no livro traz uma chave para enfrentar desafios do presente. Cada uma com um encanto, com uma sabedoria, um poder, valorizando o coletivo. Escrevi esse livro com o objetivo de criar repertório para chegar à sala de aula, à educação básica principalmente, e ajudar as novas gerações a construírem outras possibilidades de pensar o poder, as culturas africanas e as relações de gênero. Precisamos conhecer a África rica, poderosa, vencedora, pois isso faz parte da história da humanidade. Utilizando recursos visuais variados, como artes, cenas de danças, músicas, provérbios, buscamos trazer para a educação a beleza das culturas africanas centradas no poder feminino. As ilustrações de 23 artistas do Brasil, Angola e Camarões que compõem o livro são também potentes recursos didáticos para refletir sobre imagens de mulheres pretas, com seus turbantes, tranças, brincos, braceletes, insígnias, exibindo a força e o poder das culturas africanas.

"Precisamos conhecer a África rica, poderosa, vencedora, pois isso faz parte da história da humanidade"

Para as batalhas de hoje

Dois projetos com inscrições abertas oferecem apoio a mulheres dedicadas a empreendimentos inovadores e voltados para melhorias de comunidades locais. Ao todo são 70 vagas, quase R$ 200 mil em suporte financeiro, além de mentorias e capacitação. Confira:

Acelerador de projetos

Se você procura apoio para o seu empreendimento, uma dica é o Aceleração de Negócios de Empreendedoras Negras, cujas inscrições terminam nesta quarta-feira, dia 19. A iniciativa — que é uma correalização do Instituto Feira Preta e o Facebook — pretende fortalecer e impulsionar trajetórias profissional e pessoal de negras empreendedoras, contribuindo também para ampliar o impacto dos seus projetos em regiões de baixa renda. Até 50 selecionadas receberão o suporte financeiro de R$ 32 mil, além de capacitação, consultorias, mentoria e oferta de serviços e produtos customizados, com duração prevista de seis meses. Podem participar pessoas de todas as idades, sem distinção de formação educacional ou experiência profissional, LGBTQIA , sem distinção de país de origem, imigrantes e ou refugiadas, desde que tenham um negócio estabelecido no Brasil.

Potências digitais

Já o Programa Pretas Potências tem como objetivo fortalecer projetos digitais liderados por mulheres negras e afro-indígenas de qualquer lugar do Brasil. Produtoras de audiovisual, desenvolvedoras de jogos, podcasters e empreendedoras de mídias são algumas das profissionais que poderão ser beneficiadas. As 20 selecionadas — que precisam ter entre 18 e 30 anos — receberão um aporte de R$ 20 mil e farão parte de uma comunidade de aprendizado. Estão previstas atividades como ciclo de mentorias e aceleração digital do negócio. O edital abarca quatro áreas de atuação: design e fabricação digital, novas mídias, tecnologia e música. O programa é fruto de uma parceria entre os institutos Feira Preta e Alok e a cerveja Black Princess. As inscrições estão abertas até a próxima quinta-feira, dia 20.

Sim à vacina
Covid: crianças negras são mais vulneráveis

Mais um motivo científico para vacinar as nossas crianças contra o novo coronavírus. As pretas e as pardas podem ser mais vulneráveis à covid-19, alertam pesquisadores dos EUA. Entre elas, o índice de ocorrência de um perigoso agravamento da doença, a síndrome inflamatória multissistêmica pediátrica (SIM-P), é significativamente maior. Pesquisadores do Children's National Hospital, em Washington, chegaram a essa conclusão ao observar 124 pacientes com, em média, 7 anos. Desses, 63 tiveram a síndrome, sendo que 46% eram negros, 35% latinos e 19% brancos. Metade das crianças acometidas pela síndrome ficou gravemente doente. Complicações cardíacas e intestinais, insuficiência renal e comprometimento cerebral estão entre as consequências da SIM-P. Detalhes da pesquisa foram publicados na revista especializada The Journal of Pediatrics.

Renda Bruta

34,4% do total de trabalhadores ocupados no Brasil recebem até um salário-mínimo, reajustado, neste mês, para R$ 1.212. Desses, 66% são negros. Considerando apenas a população negra ocupada brasileira, 43,1% ganham até esse valor mensalmente. Os dados, apresentados pela consultoria IDados, têm como base os indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad) do segundo trimestre de 2021.

1% dos homens brancos mais ricos do país, o equivalente a 0,56% da população brasileira (705 mil pessoas), recebe mais que todas as 32,7 milhões de mulheres negras no Brasil, que representam 26% dos adultos. Enquanto as mulheres negras têm renda média de R$ 1.691,45. A dos mais ricos é de R$ 114.944,50, segundo estudo divulgado, em dezembro, pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades, da Universidade de São Paulo (Made/USP).