Perto de completar uma década, a Lei de Cotas nas instituições de ensino federal entra em um momento decisivo. Terá que ser revisada em 2022 — um processo previsto em seu artigo sétimo que tem mobilizado defensores das políticas afirmativas. As inquietações são muitas. Ao mesmo tempo em que há um temor de que a polarização política ponha em risco uma medida com efeitos sociais claros, há a expectativa de que esta possa ser uma oportunidade para corrigir falhas. “É preciso que aconteçam reparações no âmbito das cotas raciais a fim de que o contingente excluído pelas fraudes (…) disponha de um período superior a uma década para se inserir de fato”, defende o professor da Universidade de Brasília (UnB) Nelson Inocencio. Mesmo com os problemas, a maior diversidade nos campi é significativa. Adriano Senkevics, doutorando em educação da Universidade de São Paulo (USP), lembra que a Lei de Cotas responde por mais de 50% da inclusão de negros de escola pública nas universidades federais. “Os campi têm ficado mais parecidos com a sociedade”, enfatiza. Inocencio e Senkevics foram convidados para refletir sobre este período emblemático da Lei 12.711/2012. Os artigos estreiam nossa vigilância quanto ao tema. Seguiremos, neste espaço, falando sobre a Lei das Cotas nestes meses cruciais.
Artigo
Por Adriano Senkevics pesquisador do INEP e doutorando pela USP
Câmpus plurais
Políticas de cotas vêm sendo implementadas no Brasil desde 2003 em âmbitos estadual e institucional e desde 2012, em nível federal. Um dos trunfos de termos completado quase 20 anos de programas de ação afirmativa é podermos olhar para trás e avaliarmos o que funcionou e o que pode ser aprimorado. Felizmente, o debate hoje se pauta por evidências e não mais por achismos. Nesse sentido, apropriar-se dos dados é fundamental.
Nos anos 1990, eram quase inexistentes nas universidades jovens pertencentes à metade mais empobrecida da sociedade: menos de 5% do corpo discente. Além disso, oito em cada 10 jovens que acessavam o ensino superior eram brancos. Hoje, eles não chegam a seis em cada 10. No setor público, pretos e pardos também somam mais da metade. Essas alterações foram ainda mais marcantes nas universidades mais prestigiadas.
À guisa de exemplo, o curso de medicina da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) contava com somente 11% de ingressantes provenientes do ensino médio público em 2012; em 2016, 49%. Se considerarmos os negros e indígenas da rede pública, esses cresceram de 8% para 19% do corpo discente — variação relativa de 137%. Em outras instituições, como nas universidades federais do Ceará (UFC) e de Santa Catarina (UFSC), a presença desse mesmo grupo cresceu, respectivamente, 135% e 121% no conjunto da universidade.
Em decorrência disso, os campi têm ficado mais parecidos com a sociedade. Mudam-se as cores e tonalidades das universidades, tanto em termos demográficos quanto intelectuais.
Por óbvio, muito há de ser feito: qualificar a educação básica, abrir novas vagas no ensino superior e garantir a permanência e conclusão desses estudantes que ingressam com novos perfis, histórias de vida e necessidades. Esses desafios nos lembram que uma mudança estrutural dessa monta precisa ser abordada por múltiplas frentes. Democratizar o acesso é o primeiro passo.
Por isso, as cotas são uma das ações de igualdade racial mais importantes de nossa história. Não se trata de mera retórica: nenhuma política tocou tão profundamente na distribuição de bens materiais entre brancos e negros como a reserva de vagas. Segundo estimativas, os programas de cotas responderam, sozinhos, por mais de 50% da inclusão de negros de escola pública nas universidades federais.
Manter essa política vigente, em uma nação historicamente tolerante à desigualdade, é não apenas uma demanda social, como também um imperativo ético.
Artigo
Por Nelson Fernando Inocencio da Silva professor da UnB e membro do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros
Acerto de cotas
Implementada pelo governo federal há quase 10 anos, a Lei 12.711/2012 estabeleceu uma política nacional de acesso ao ensino superior contemplando estudantes egressos da escola pública, entre os quais, pessoas pretas, pardas e indígenas. A esse respeito, vale destacar que, conforme os critérios adotados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pretos e pardos agregados constituem o segmento negro, como categoria. Tal procedimento tem utilidade para fins, por exemplo, de recenseamento, de elaboração de mapas sociais, levando-se em consideração os aspectos raciais que estruturam a sociedade brasileira. A lei sancionada na década passada atendeu a uma demanda histórica do Movimento Negro e representou avanço no que concerne ao acesso à universidade.
Contudo, no processo de aplicação daquela política pública, nos deparamos com sérios desafios e algumas armadilhas. Uma vez que o texto da referida lei é omisso no tocante aos mecanismos de acompanhamento das seleções, limitando-se a dar ênfase exclusiva à autodeclaração dos candidatos, o caos foi instaurado. Muitas pessoas que não tinham o fenótipo negro aproveitaram a brecha para burlar a lei, já que não seriam submetidas a qualquer abordagem com maior rigor. As fraudes se tornaram consequência inevitável desse modo irresponsável de gerir a política de cotas raciais.
Portanto, faz-se necessário avaliar o tamanho do prejuízo, que alijou um percentual expressivo de negras e negros dos certames alusivos ao ingresso nas instituições federais de ensino superior (Ifes). É preciso que aconteçam reparações no âmbito das cotas raciais, a fim de que o contingente excluído pelas fraudes, ocorridas em grande proporção e por vários anos, disponha de um período superior a uma década para se inserir de fato. Esse propósito visa acertos importantes, que considerem, sobretudo, a presença irrefutável das bancas de heteroidentificação nas seleções.
2022 está próximo, e a defesa da continuidade da política de cotas raciais torna-se imprescindível para que avancemos rumo à superação da sub-representarão negra em espaços de prestígio e poder. Pesquisa produzida pela Associação Nacional dos Dirigentes de Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) erra ao afirmar que pessoas negras são maioria nas Ifes. O referido trabalho se baseia principalmente no critério de autodeclaração, o qual deve ser problematizado pelas razões expostas. Enfim, as cotas se encontram no limite entre o êxito e o fracasso. Mais um golpe em uma sociedade que parece ter se acostumado com eles.
Recortes de cor
81%
das prisões irregulares em decorrência de reconhecimentos fotográficos feitos em delegacias no país, entre 2012 e 2020, foram de pessoas negras. O levantamento da Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro e do Colégio Nacional de Defensores Públicos Gerais revela, ainda, que ocorreram 90 detenções do tipo no período. Dessas, 73 se deram no Rio de Janeiro — um sinal de que essa ilegalidade estrutural tem proporções ainda maiores.
35 anos
É o tempo estimado para que haja equivalência entre profissionais negros e não negros em órgãos do Poder Judiciário brasileiro. A previsão é o melhor cenário. Isso porque o estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) prevê a chegada a esse patamar entre 2056 e 2059, caso o ritmo atual de ingressos seja mantido. A pesquisa mostra que, entre 2013 e 2020, o percentual de negros e negras entre membros da magistratura no Brasil subiu de 12% para 21%. Para o CNJ, esse novo recorte é um impacto direto da implantação da política de cotas raciais no Judiciário.
Participe
Conferência para integrar líderes
Reserve os dias 2 e 3 de outubro para aproveitar um evento gratuito voltado para a formação e a integração de líderes negros e negras e o fomento da diversidade racial no mundo corporativo. É a Conferência Juntos 2021, organizada pela McKinsey & Company em parceria com grandes empresas, como Itaú, BTG, Coca-Cola, Ambev e Grupo Boticário. A quarta edição do evento segue guiada pelo tripé inspiração, desenvolvimento e conexão entre as gerações. Estão previstas palestras com profissionais negros de destaque e lideranças de empresas apoiadoras, além de feira de carreiras, workshops, treinamentos e exposições de empresas engajadas na diversidade racial. A ex-ginasta olímpica Daiane dos Santos (foto) e o músico e produtor Evandro Fióti participarão do evento com depoimentos inspiracionais. Inscrições no site https://conferenciajuntos.com.br.
Treinamento em marketing digital
Estão abertas até a próxima quinta-feira, dia 23, as inscrições para uma iniciativa do Google e dos AfroGooglers que visa qualificar afroempreendedores e profissionais negros em marketing digital e publicidade. Gratuito, o Black Ads Academy terá aulas remotas ao vivo, de 27 de setembro a 15 de novembro, às segundas, terças e quartas-feiras, das 18h30 às 20h30. Haverá tradução simultânea em libras. Simulados sobre desenvolvimento e gerenciamento de anúncios e treinamentos com foco em desenvolvimento de carreira estão entre as atividades previstas. Interessados devem preencher formulário de candidatura no https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLSf5X0q0BMly5_WAFIQWUyhqS_ d3wPP8oIsEqqYEdAgH_5haMw/viewform
Nossa história
150 anos da Lei do Ventre Livre
Promulgada em 28 de setembro de 1871, a Lei do Ventre Livre estabeleceu que, a partir de então, não nasceriam mais escravizados em terras brasileiras. Filhos e filhas de mulheres escravizadas ficariam sob a tutela dos senhores até os 8 anos de idade, momento em que o Estado brasileiro poderia pagar uma espécie de indenização e conceder a liberdade às crianças ou prorrogar a condição até os 21 anos, desde que a alforria fosse paga.
Em qualquer das condições, as mães não tinham o direito de criar os seus filhos. A elas era negada a maternidade, ressalta Marjorie Chaves, coordenadora do Observatório da Saúde da População Negra (PopNegra), da Universidade de Brasília (UNB). “Essa história é muito emblemática porque lembra muito situações que a gente vivencia no Brasil contemporâneo. Por exemplo, as mulheres em condições de cárcere, a maioria delas é negra, seguem sem a perspectiva de criar os seus filhos”, diz.
Marjorie também lembra que, na década de 1990, organizações e coletivos de mulheres denunciaram que negras eram esterilizadas, à revelia, no momento do parto em hospitais públicos. “Foi uma prática muito comum naquela época. Houve até uma CPI no Congresso para investigar esses casos”, detalha. “A questão é que, 150 anos depois da lei, as mulheres negras continuam enfrentando uma dificuldade enorme de vivenciar a maternidade, negada desde 1871. Seus corpos ainda são controlados pelo Estado, de forma que esse ventre livre não acontece, de fato, para todas as mulheres negras.”