O afroempreendedorismo está presente na economia brasileira e somente segue firme porque as empresas entendem que, para ir longe, precisam se apoiar. Esse cenário de cooperação é visível, principalmente no negócio das mulheres negras, uma vez que há uma raiz feminina afrocentrada na história do empreendedorismo brasileiro. Ele nasce da necessidade de sobrevivência, liberdade e reação à escravidão e à violência. Ainda que o incentivo seja pequeno e o acesso ao crédito seja dificultada para essa população, tal mercado movimenta R$ 1,7 trilhão por ano no Brasil, o correspondente a 24% do PIB.
Essa parte da população tem superado barreiras para conseguir inspirar pessoas a continuarem fazendo o seu trabalho, seja ele de qual área for. Apesar de manterem um negócio e a visão do capitalismo permear a conduta delas, o que elas fazem ultrapassa a esfera econômica e atinge a social, transformando a vida de outras pessoas.
Uma pesquisa feita por meio de colaboração das empresas Afrohub, Afrobusiness e Diáspora constatou que empreendedores negros estão separados em três categorias: vocação, engajamento e necessidade. Coincidentemente, o nome ‘diaspóra’ também intitula a loja da especialista em políticas negras do Atlântico Lia Maria dos Santos, 41 anos, mas com um leque amplo. Dentre as opções, a empresária tem um pouco de cada categoria em sua trajetória de empreendedora.
A diaspora009 é uma loja brasiliense de moda autoral. Entretanto, a história do local não pode ser contada de forma separada da jornada de vida de Lia. É CEO do empreendimento, mas se considera, antes de qualquer coisa, “brasiliense, cidadã do mundo”. Lia viajou para mais de 20 países, isso porque sua mãe era da chancelaria do Palácio do Itamaraty, e seu pai, arquivista da mesma instituição, hoje, aposentados.
A partir da caminhada em torno do mundo, passou a carregar a cultura não só no conhecimento, mas no jeito que se vestia. Lia fazia as roupas que usava, e seus amigos sempre admiravam os cortes e tecidos que ela trajava. E, por admirarem suas vestimentas, pediam para que a gestora de políticas públicas costurasse roupas para eles em ocasiões importantes, como casamentos e formaturas.
A empreendedora atuou como consultora de gestão pública para diversos órgãos da Organização das Nações Unidas (ONU). Entre eles estão o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).
Trabalhou, ainda, vários anos no Ministério da Saúde, até que, em 2017, políticas públicas foram desfeitas, e Lia foi demitida. Foi quando teve de se reinventar e decidiu formalizar o que era apenas uma demanda de amigos em um negócio. “Não posso guardar a experiência de 25 países, da riqueza cultural do conhecimento de tecidos e cortes só para mim, eu pensei”, conta a CEO da diaspora009.
Todo o processo de construção de quem ela é hoje se deu a partir da vivência negra e, também, do ativismo político. Ela prefere intitular “artivismo”, pois é formada em artes plásticas.
Currículo extenso
Seu ateliê fica localizado na 410 norte. Nele, Lia cria peças de roupas e também escreve para uma revista. A diaspora009 é uma das 10 marcas de novos talentos da publicação, e esses prodígios participam da feira de negócios da Veste Rio. Isso proporciona a ela uma visibilidade nacional e internacional junto a investidores que compram no atacado. Um dos textos de Lia, publicados na revista, foi justamente a respeito do empreendedorismo negro.
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De acordo com a empresária, os corpos pretos e pardos não são individuais, mas coletivos, por isso, também, ela considera impossível que se empreenda, enquanto uma mulher negra, de maneira isolada. “Fiz uma exposição na Caixa Cultural e no Centro Cultural do Banco do Brasil. Acredito que foi realizado um aquilombamento. Ou seja, fui reencontrando e fortalecendo laços, tanto das minhas redes afetivas quanto da rede ativista e política”, explica.
Com o currículo extenso da estilista, Lia Maria foi a primeira cotista na missão brasileira junto à ONU. Foi nessa época, também, que ela entendeu a importância de ressignificar a história negra. Portanto, tirar dos negros o papel de subserviência e resgatar o histórico, “mostrando a gente como rainhas, líderes, que é o que, de fato, nossos ancestrais eram”, conta a gestora pública.
Raiz do empreendedorismo negro
Para Jaqueline Fernandes, 41 anos, gestora cultural e diretora da Griô Produções, o empreendedorismo é uma invenção das mulheres negras. Desde o início, esteve ligado ao fortalecimento da cultura e da identidade. Ela explica que a Irmandade da Boa Morte carrega esse significado, uma vez que o ato de empreender nasceu de uma necessidade e foi decolonial por natureza. A irmandade é uma reunião que surgiu na época da escravatura, uma associação laica que funciona sob princípios religiosos católicos foi criada, exclusivamente, por mulheres negras.
Diretora do Instituto Afrolatinas Jaqueline explica que, ainda no século 19, essa comunidade criou estratégias bem estruturadas de resistência e compraram alforrias de pessoas escravizadas com a venda de quitutes, contribuições e taxas de seus associados.
“É importante resgatar essa história e contá-la. Há uma raiz afrocentrada na história do empreendedorismo brasileiro, que nasce da necessidade de sobrevivência, liberdade e reação à escravidão e à violência. Felizmente, hoje, é possível ver muitas iniciativas que dão visibilidade a esse legado”, avalia Jaqueline Fernandes.
Ela usou a frase do artista sul-africano Steve Biko para resumir o empreendedorismo negro: “Nós estamos por nossa própria conta”. Para a gestora cultural, faltam políticas públicas para incentivar e impulsionar empreendedoras negras. Porque ser negra e empreendedora no Brasil significa, de acordo com a diretora da Griô Produções, “enfrentar o mundo, sobreviver ao racismo e às violências geradas por ele”.
Segundo Jaqueline, os micro e nano empreendedores negros estão, em toda parte, consumindo, fornecendo serviços e produtos, gerando empregos e impactando a economia. No entanto, falta investimento mínimo, que faria diferenças significativas para o desenvolvimento econômico brasileiro. Ela explica que não somente um lado ganharia. Há o potencial de fortalecer a base da pirâmide social, uma vez que os negros estão nela, em sua maioria.
Encontro de pares
O investimento financeiro está vindo da própria comunidade negra feminina. A cofundadora da Afrobusiness, instituição que conecta empreendedores com grandes empresas, Fernanda Ribeiro, 36 anos, explica que, quando começou a trabalhar no segmento, percebeu diversas falhas financeiras. Algumas delas são a falta de crédito e conhecimento nesse mundo por parte da comunidade.
Pensando nessa questão, ela fundou a Conta Black, que nasceu com o objetivo de apoiar empresários negros, mas, hoje em dia, é acessível a qualquer um que queira participar. Fernanda explica que a maior parte da comunicação e rede de parceiros nasce apoiada em uma identificação. Seu parceiro Sérgio All também é negro, e ambos entendem que a representatividade é primordial para muitos de seus clientes.
Fernanda Ribeiro conta que decidiu empreender porque, ao trabalhar no ambiente corporativo, sofreu um processo de burnout — o qual as pessoas chegam ao limite da exaustão e não conseguem mais desempenhar funções básicas de serviço. Agora, ela diz que tem sido uma jornada “transformadora” e “cheia de propósito”.
Além disso, no empreendedorismo, ela consegue encontrar o que chama de pares. São pessoas com demandas, sonhos, aspirações e expectativas parecidos com os dela. “Isso torna essa jornada mais leve. Ao comparar com a época do corporativo, quando eu ascendi, por exemplo, era difícil encontrar mulheres pretas em posições de liderança. O grande objetivo [da Afrobusiness e da Conta Black] é empoderar empreendedores e clientes e ajudá-los no processo de decisão de crédito”, afirma Fernanda.