Violação de direitos

Trabalho infantil ocorre de forma deliberada na Rodoviária do Plano

14 anos, como aprendiz. Mas, a realidade de Brasília é diferente. Aqui, ele ajuda a pagar as contas de casa

Correio Braziliense
postado em 12/07/2021 21:43 / atualizado em 12/07/2021 22:35
Com receio de ser denunciado, P. não quis falar muito sobre seu trabalho -  (crédito: Maryanna Aguiar/Esp.CB/D.A. Press)
Com receio de ser denunciado, P. não quis falar muito sobre seu trabalho - (crédito: Maryanna Aguiar/Esp.CB/D.A. Press)

Na rodoviária do Plano Piloto ainda é possível encontrar adolescentes em situação de trabalho infantil, como o caso de M., 16 anos, estudante do segundo ano do ensino médio. Ela se inscreveu em várias vagas, sem êxito, quando no ano passado decidiu que queria trabalhar. Sua mãe, que também trabalha na rodoviária, comprou mercadoria para que ela começasse.

A jovem, que trabalha das 13h até 19h, de segunda a sábado, vende meias, toucas e luvas, diz que gosta de trabalhar dessa forma e que ganha mais que se estivesse estagiando. “Eu procurei muitos estágios, mas prefiro aqui, eu fico à vontade e o tempo passa voando, chego a faturar R$ 200 por dia, não pago aluguel, então fica tudo para mim e consigo juntar para pagar a faculdade, e agora já estou no último ano, não vou ficar aqui para sempre, pretendo fazer faculdade de direito, quero ser delegada”, afirma a adolescente, que divide espaço com outros vendedores ambulantes de diversas mercadorias.

P. é um deles, o rapaz fica intimidado com as perguntas e diz ter 16 anos, mesmo que sua fisionomia diga o contrário. Ele vende frutas, está no 7º ano do ensino fundamental e diz ter reprovado. O que ganha é para si e para sua família, que não interfere na vontade dele de trabalhar na rodoviária, segundo ele.

M. trabalha de segunda a sábado na rodoviária do Plano Piloto
M. trabalha de segunda a sábado na rodoviária do Plano Piloto (foto: Maryanna Aguiar/Esp.CB/D.A. Press)

Segundo a organização sem fins lucrativos “Criança Livre”, trabalho infantil é toda forma de emprego ou trabalho realizado por crianças e adolescentes abaixo da idade mínima permitida, de acordo com a legislação de cada país. No Brasil, o trabalho é proibido para quem ainda não completou 16 anos, como regra geral. Quando realizado na condição de aprendiz, é permitido a partir dos 14 anos. Se for trabalho noturno, perigoso, insalubre ou atividades da lista TIP (piores formas de trabalho infantil), a proibição se estende aos 18 anos incompletos.

Para o aprendiz com deficiência não se aplica o limite máximo de 24 anos de idade, nem o limite máximo de 2 anos de duração do contrato de aprendizagem. Cabe ao adolescente executar, com zelo e diligência, as tarefas necessárias a essa formação (artigos 62 do ECA e 428 da CLT).

Criminalização

O trabalho infantil, apesar de não ser considerado em si um crime, pode evoluir para a esfera criminal, como em situação de maus-tratos. O que diferencia para não ser incluído como um crime são as condições em que se encontra a família dessa criança ou adolescente, como explica a Procuradora do Ministério Público do Trabalho no Distrito Federal, Ana Maria Villa Real.

“A gente evita criminalizar aquela família porque, pela lei, os pais poderiam até mesmo perderem seus filhos, pois os colocam para trabalhar e o trabalho infantil é uma violação de direito. Porém, o que eles precisam, na verdade, é de assistência do Estado, de proteção social, necessitam sair daquela situação de vulnerabilidade econômica para que os seus filhos permaneçam na escola e consigam se desenvolver e romper o ciclo de pobreza”, afirma a procuradora. Ela também comentou sobre o aumento do trabalho infantil durante a pandemia. Segundo ela, mesmo sem pesquisas especificas sobre o problema, o aumento é visível.

Cartazes da campanha organizada pelo conselho tutelar do Cruzeiro
Cartazes da campanha organizada pelo conselho tutelar do Cruzeiro (foto: Divulgação)

“Não temos dados oficiais, nenhuma pesquisa atualizada do IBGE em torno dessa questão, mas nós conseguimos visualizar nas ruas o aumento. Nas feiras livres, é visível aos olhos da sociedade. Porque toda vez que há um aumento da vulnerabilidade socioeconômica, elevação nos índices de desemprego, desproteção social, há um impacto direto no trabalho infantil. Soma-se a isso à questão do fechamento das escolas, um problema ainda não resolvido no Brasil, que também fez com que vários adolescentes abandonem as escolas para trabalhar na informalidade. A situação desses adolescentes é classificada como trabalho infantil, como revelou a última pesquisa divulgada pelo IBGE em 2020, a PNAD, ainda que os dados se refiram a 2019”, diz.


O que diz a lei

Até 13 anos

Proibição total;

Entre 14 a 16 anos


Admite-se uma exceção: trabalho na condição de aprendiz;

Entre 16 e 17 anos
Permissão parcial. São proibidas as atividades noturnas, insalubres, perigosas e penosas, nelas incluídas as 93 atividades relacionadas no Decreto n° 6.481/2008 (lista das piores formas de trabalho infantil), haja vista que tais atividades são prejudiciais à formação intelectual, psicológica, social e/ou moral do adolescente;

A contratação de aprendiz

Klara foi aprendiz legal da Caixa Econômica Federal
Klara foi aprendiz legal da Caixa Econômica Federal (foto: Arquivo Pessoal)

As empresas de médio e grande porte são obrigadas a contratar aprendizes em número correspondente a 5%, no mínimo, e 15%, no máximo – do total de empregados cujas funções demandam formação profissional. Contudo, muitas empresas ainda não cumprem a cota.

A aprendizagem profissional corresponde à formação técnico-profissional aplicada ao adolescente ou jovem segundo as diretrizes e bases da legislação de educação em vigor, implementada por meio de um contrato de aprendizagem. Esse documento é feito necessariamente por escrito e com prazo determinado de no máximo dois anos, ou enquanto durar o curso.

O contrato deverá conter, expressamente, o curso, a jornada diária e semanal, a definição da quantidade de horas teóricas e práticas, a remuneração mensal e o termo inicial e final do contrato, que devem coincidir com o início e término do curso de aprendizagem, previsto no respectivo programa. Destina-se a jovens de 14 a 24 anos e deve ser compatível com o desenvolvimento físico, moral e psicológico.

A contratação de aprendizes é uma política pública fundamental para o combate ao trabalho infantil. O adolescente que hoje está em situação de trabalho desprotegido, se for contratado como aprendiz, terá assegurados os direitos à educação, à profissionalização e à proteção social: educação, porque a frequência escolar é obrigatória até concluir o ensino médio; profissionalização, porque ele deve ser matriculado em curso de aprendizagem profissional; proteção social, porque ele tem direito à carteira de trabalho, com garantia de todos os direitos trabalhistas e previdenciários assegurados aos demais empregados. Infelizmente, a maioria dos adolescentes que hoje trabalha tem esses direitos violados.

Segundo Ana Maria, os programas de aprendizagem são importantes, porque é uma política que reúne emprego, renda, inserção protegida no mercado de trabalho, escolarização e qualificação profissional. Além disso, tem como prioridade adolescentes entre 14 e 24 anos. Não há, também, limite etário para pessoas com deficiência, e tem o papel de trazer esses adolescentes e jovens que estão em situação de vulnerabilidade socioeconômica para o mercado de trabalho.

“O trabalho infantil no Brasil quase 80% está concentrado também nessa faixa etária (14 a 24 anos). O que se pretende com a aprendizagem profissional é trazer esses adolescentes que estão no trabalho infantil ou que estão prestes a ingressar para a aprendizagem profissional, para um programa que traz formação profissional adequada no desenvolvimento de adolescentes”, aponta.

Para a estudante Klara Paz, 17, o emprego de menor aprendiz foi essencial. Ela soube da vaga por meio de um anúncio e pesquisas na internet. Os benefícios foram desde educacionais a financeiros. “Estava procurando uma oportunidade de início de carreira, me identifiquei com o que eles apresentaram no site e me inscrevi. Me ajudou financeiramente, tive férias, 13°, FGTS, rescisão e etc. Eu pude aprender a controlar meu dinheiro e a investir. Em outros assuntos, eu pude ‘sair da caixinha’ e aprender como é mais ou menos a vida no mercado de trabalho, rotina, essas coisas”.

Segundo ela, ser aprendiz tem seus prós e contras, foi preciso levar em consideração que era o primeiro emprego e isso tudo influencia no aprendizado tanto como pessoa como na formação profissional.

“Foi uma oportunidade única, principalmente pelo fato de me tratarem não apenas como uma adolescente do ensino médio, mas como uma futura profissional. Ter esse emprego afetou, se não todas, boa parte das áreas da minha vida, eu estava começando no ensino médio e o que aprendi trabalhando me ajudou na escola também. É uma mudança tão grande de personalidade, caráter e outras coisas que só tendo a experiência para saber, muda muita coisa. No início é difícil se acostumar, mas com esforço, você consegue”, conta a estudante.

 

* Sob a supervisão da subeditora Ana Luisa Araujo

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