Violação de direitos

Número de crianças trabalhando aumenta na América Latina no último ano

Segundo dados da OIT e Unicef, há 160 milhões de pessoas na faixa de 5 a 17 anos trabalhando no mundo inteiro. No Rio Grande do Sul.

Ana Luisa Araujo
Maryanna Aguiar*
postado em 12/07/2021 20:23 / atualizado em 13/07/2021 09:29
A partir da pandemia, muitas crianças e adolescentes tiveram que começar a trabalhar para ajudar nas contas de casa. Especialistas falam sobre riscos que isso pode acarretar ao desenvolvimento, e sobre a perda de direitos  -  (crédito: Kleber Sales/CB/D.A Press)
A partir da pandemia, muitas crianças e adolescentes tiveram que começar a trabalhar para ajudar nas contas de casa. Especialistas falam sobre riscos que isso pode acarretar ao desenvolvimento, e sobre a perda de direitos - (crédito: Kleber Sales/CB/D.A Press)

K., J. e V. vão para a Rodoviária todos os dias vender chinelos, sandálias e babydolls. Eles têm 14, 13 e 11 anos respectivamente e são irmãos. A mãe deles morreu de câncer, e eles moravam em Campina Grande, na Paraíba, por isso, eles vieram para Brasília morar com a avó há cinco meses. Antes eles estavam em casa, mas há um mês começaram a trabalhar junto com a avó Socorro Lima da Silva, 51 anos, para ajudar nas vendas.

Conforme eles dizem, estão em recesso escolar. E o maior deles, K., é quem responde a maioria das perguntas, os outros dois complementam em um coro. Apesar de estarem trabalhando, as crianças parecem animadas, em especial a menor.

“Ficamos aqui das 11h às 19h, o movimento está um pouco fraco esses dias, não temos conseguido vender muita coisa”, afirma K.

A avó, e o marido dela, Robélio Avelino, 53, estavam presentes no momento e também falaram com a reportagem. Socorro afirma que está tentando conseguir a guarda das crianças, apesar de o pai morar em Brasília, ele sequer conhece a filha mais nova. “A pensão de R$ 200 quem paga é a mãe do pai deles, porque ele sumiu”, desabafa.

Enquanto a reportagem conversa com a avó, J. atende um cliente. A provável compradora parece em dúvida, e J. questiona “ele calça quanto?”, como um verdadeiro vendedor, ele tenta barganhar e conseguir a compra, apesar de ter somente 13 anos.

Os cinco: K., J., V., e os avós estão dentro das estatísticas. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), das 160 milhões de crianças que trabalham ao redor do mundo, 72,1% fazem isso junto à família.

E os dados são assustadores. Desse total, há mais de oito milhões de crianças trabalhando, somente na América Latina e no Caribe. Os dados são da OIT e do Unicef, a respeito do ano de 2020, em estudo publicado em junho de 2021.

Crianças vendem artigos na rodoviária por mais de meio período. Há um mês ajudam a avó
Crianças vendem artigos na rodoviária por mais de meio período. Há um mês ajudam a avó (foto: Ana Luisa Araujo/CB /D.A. Press)

A OIT tem uma classificação das piores formas de trabalho infantil. A Convenção 182, adotada por diversos países, define as atividades que mais oferecem riscos à saúde, ao desenvolvimento e à moral das crianças e adolescentes. Entre elas estão a exploração sexual, o trabalho nas ruas, em carvoarias e lixões, na agricultura, com exposição a agrotóxicos e ao trabalho doméstico. Do total de crianças trabalhando, 79 milhões estão em trabalhos perigosos.

De acordo com o IBGE, na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua sobre Trabalho de Crianças e Adolescentes, em 2019, existiam 1,8 milhão de pessoas no trabalho infantil no Brasil, indicativo de queda de 16,8% frente a 2016, apesar de no DF ter aumentado. Naquele ano, a totalidade chegava a 2,1 milhões.

Em questão de gênero e raça/cor, meninos e negros são maioria. Do total, 66,4% são do gênero masculino e 66,1% pretos ou pardos. Em 2019, entre a população brasileira de 5 a 17 anos, 96,6% estavam na escola, mas entre crianças e adolescentes em trabalho infantil apenas 86,1% estavam matriculados em algum local de ensino.

A pesquisa também mostra que mais da metade dessas pessoas têm entre 16 e 17 anos. Apesar de serem adolescentes, a lei proíbe trabalho infantil para essa faixa etária.

Não há dados sobre esse cenário depois da pandemia, numa escala de nível nacional, mas é de se imaginar que piorou. Um estudo, com recorte dos anos 2016 a 2019, feito pela Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc) de Porto Alegre (RS) indica isso. De acordo com o levantamento, 334 crianças e adolescentes foram abordados pela primeira vez em situação de trabalho infantil na cidade. Em 2019, haviam sido 120, o que significa um aumento de 178,3%.

No Distrito Federal, considerando o intervalo entre 2016 e 2019, havia proporcionalmente menos crianças e jovens em situações de trabalho do que no Brasil. Mesmo assim, houve uma redução, a nível nacional, de trabalho infantil: de 4,8% para 4,2%. No DF, entretanto, ocorreu um aumento de 0,8%, passando de 2,2% para 3%, segundo estudo da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan).

Assim como no Brasil, a capital do país também tem mais crianças negras trabalhando. Inclusive, houve um salto no número — de 2,8% para 3,3%. Um dos dados que talvez seja mais absurdo é o de meninas: em 2016, havia 0,8%, enquanto em 2019 a porcentagem subiu para 2,2%. A quantidade de meninos trabalhando também aumentou, de 3,5% passou para 3,8%.

Em nota, Daienne Machado, diretora de Estudos e Políticas Sociais da Codeplan, explica que o estudo analisou os dados disponíveis no IBGE para o DF, no intervalo 2016 e 2019. “Vimos que, nesse período, a proporção de crianças em trabalho infantil ficou abaixo da média do Brasil, mas cresceu. Ainda não foi analisado o efeito da pandemia sobre isso no Brasil ou no DF, mas é de se imaginar que piorou, seguindo o que aconteceu no resto do mundo, conforme apontaram Unicef e OIT recentemente”, diz.

1,8 milhão ajuda no sustento da casa

Gustavo Henrique da Silva Camargos, conselheiro tutelar de Planaltina II
Gustavo Henrique da Silva Camargos, conselheiro tutelar de Planaltina II (foto: Arquivo Pessoal)

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) sobre Trabalho de Crianças e Adolescentes, com dados de 2019, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), aponta que aproximadamente 1,8 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos trabalham em todo o território nacional, o que representa 4,6% da população (38,3 milhões) nessa faixa etária.

De acordo com o Fórum Nacional de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil (Fnpeti), entre os anos de 2016 a 2019, o número de crianças e adolescentes trabalhadores infantis no Brasil caiu de 2,1 milhões para 1,8 milhão.

O Fnpeti analisa que “a série histórica registra a tendência de diminuição do trabalho precoce. Contudo, é muito pequena para garantir a erradicação de todas as formas de trabalho infantil em 2025, compromisso firmado pelo Brasil com os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) das Nações Unidas”.

Segundo a ONG “Criança Livre”, para o Fórum Nacional, o cumprimento da meta torna-se ainda mais improvável devido ao agravamento da crise socioeconômica no contexto da pandemia da covid-19, pela desestruturação de políticas públicas de prevenção e erradicação do trabalho infantil, pela ausência de apoio às famílias em situação de vulnerabilidade, e também pela redução de recursos financeiros para as ações de fiscalização do trabalho por parte do governo federal. Assim, então, o agravamento da situação atual será captado pelas pesquisas ainda não divulgadas de 2020 e 2021.

No DF existem 41 conselhos tutelares, cada um deles com cinco conselheiros em exercício, sendo 200 ao todo. Eles funcionam 24 horas por dia e sete dias por semana. O conselheiro tutelar Gustavo Henrique da Silva Camargos, 32 anos, Bacharel em direito e pós-graduado em direito público pela Escola da Magistratura, relata que para entender quais os casos de denuncia são mais frequentes é necessária a diferenciação entre quatro formas de trabalho infantil.

“Em relação à exploração sexual, onde se promete algo, o indivíduo satisfaz a libido a partir da promessa de entrega de algo, por exemplo, uma adolescente que esteja em situação de exploração sexual, entrega seu corpo para conseguir alimentos para sua família, situação mais comum na região Norte. No DF é mais comum as pessoas trabalharem a ideia da exploração sexual com adolescentes mais novos, onde um adulto começa a namorar uma adolescente, por exemplo, e, em troca ajuda a família dela, sendo no pagamento de aluguel ou comida”.

Nas ruas

Segundo ele, esse fato pode configurar tanto trabalho infantil como a exploração sexual de criança e do adolescente. Há outra forma de trabalho infantil, na qual empresas que contratam adolescentes para trabalhar sem remuneração correta e sem condições saudáveis. O trabalho infantil doméstico é aquele onde se atribui a uma criança ou adolescente os afazeres principais da casa, por exemplo, cuidar dos irmãos mais novos, limpar a casa, lavar roupa, lavar louça, passar roupa. Nesse caso, o adulto delega para essa criança ou adolescente afazeres domésticos, e direitos são violados, como o acesso à educação.

“Ela está tão atarefada cuidando dos irmãos e da casa, que não consegue usufruir de seus próprios direitos. É importante deixar claro que esse tipo de violação é totalmente diferente da participação da criança e do adolescente nos afazeres da casa.”

Por fim, a quarta e mais comum são crianças nas ruas, nos semáforos, vendendo itens para ajudar a família a conseguir dinheiro. Essa também é uma forma de exploração do trabalho infantil, porque o trabalho não é adequado para criança ou adolescente. “Ele está bem presente no DF, principalmente em razão da pandemia e da atual situação do país em relação à falta de recursos financeiros”, explica.

Gustavo destaca a importância de elucidar que o trabalho infantil normalmente está atrelado a outras violações de direitos. Por exemplo, uma criança ou adolescente em situação de trabalho infantil pode estar violando o direito à educação, ou pode prejudicar a saúde se o trabalho for pesado, entre outras. Ele explica que o primeiro passo do conselho tutelar é identificar quais são os direitos violados e a partir da identificação do trabalho infantil, as medidas de proteção adequadas para cada caso.

O Conselho Tutelar deve aplicar uma medida de proteção e ela vai ser executada pelo Estado ou por algum autor, que tenha dentro da rede de proteção da criança e do adolescente.

“O conselho tutelar não recolhe crianças nas ruas, o que ele faz é a partir da identificação de uma violação de direito. Por exemplo, uma criança está vendendo bala no semáforo, nesse caso do trabalho infantil, o conselho tutelar vai acionar a equipe de abordagem de ruas que é feita pelo Instituto IPÊS vinculadas aos CREAS, o serviço especializado de assistência social que tem em toda RA”, afirma.

Esse pessoal vai identificar junto a essa criança a rede de apoio que ela tem, quem são os familiares dela, e porque ela está naquela situação. O conselho, a partir desse relatório, vai buscar medidas de proteção mais adequadas para o caso. “Pode ser, por exemplo, o acolhimento institucional dessa criança ou adolescente. Levar a criança para uma casa de acolhimento que há em todo o DF, mas é uma medida extrema e só é aplicada em último caso. O conselho tutelar também pode advertir esses pais e pode representar junto à Vara de Infância por estarem descumprindo o dever deles, inerente ao poder familiar”, explica.

Gustavo diz que as medidas dependem de cada caso e elas, provavelmente, serão sempre voltadas ao restabelecimento de direitos da criança ou adolescente.

Para conscientizar a população, o Conselho Tutelar do Cruzeiro, juntamente com o CREAS da cidade, criaram uma campanha pedindo que os comerciantes não colaborassem com o trabalho infantil. “Eles fizeram a emissão de alguns cartazes e começaram a divulgar no comércio local pedindo que não fosse dado esmolas para as pessoas de ruas, e sim que esse dinheiro fosse doado para uma instituição que trabalhe com essas pessoas.

O conselheiro Gustavo Henrique da Silva exemplifica que esse é um trabalho paralelo. Mas o coletivo também se reuniu em uma live no Instagram para debater o assunto. Ele afirma que essas e outras atividades buscam erradicar de uma vez por todas o trabalho infantil.

 

*Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Luisa Araujo

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