Em fevereiro de 2021, a agência de empregos Catho constatou que mulheres, mesmo ocupando os mesmos cargos e realizando tarefas iguais às dos homens, chegam a ganhar até 34% menos do que eles. Em funções como gerente e diretor, essa diferença é de 24%.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o rendimento médio das mulheres entre 40 e 49 anos, em 2018, era de R$ 2.199, enquanto o dos homens chegava a R$ 2.935. Os valores ficavam mais próximos quando a faixa etária diminuía — 25 a 29 anos. Nesses casos, a média do salário feminino era de R$1.604 e a do masculino, de R$ 1.846.
Quando um homem recebe mais do que uma mulher exercendo o mesmo tipo de trabalho, gera angústia e sensação de injustiça maiores se, porventura, fosse apenas um caso de desigualdade salarial. Isso acontece porque, nesses cenários, a remuneração desigual é por desempenhar o mesmo tipo de função.
Julyhanna Luiza Fernandes, 25 anos, enfermeira, passou por uma situação como essa. “Eu reclamei, exigi direitos iguais, o meu ex-chefe disse que iria pagar o mesmo para os dois, só que eu descobri, por trás, que foi combinado de me enganarem, e ele continuaria recebendo mais que eu”, relata. Na época do acontecimento, ela trabalhava como auxiliar administrativa.
Ainda de acordo com o IBGE, as mulheres recebiam, em 2018, 79,5% do total do salário de um homem, tendo uma carga horária semanal de apenas 4,8 horas menor. Isso sem contar os afazeres domésticos, que, apesar da modernidade, a jornada dupla fica, em sua maior parte, para a profissão não remunerada dona de casa.
Os dados são da pesquisa Diferença do rendimento do trabalho de mulheres e homens nos grupos ocupacionais — Pnad Contínua. O estudo analisou as horas trabalhadas, a cor ou raça, a idade, o nível de instrução de mulheres e homens ocupados de 25 a 49 anos. Segundo o IBGE, praticamente nenhum índice se alterou desde a última verificação feita em 2012.
Rendimento médio em 2018
40 a 49 anos
Mulheres: R$ 2.199
Homens: R$ 2.935
25 a 29 anos
Mulheres: R$ 1.604
Homens: R$ 1.846
Lei para multar empresas
Para solucionar o problema, está sendo votado, na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei nº 130/2011. O texto, de autoria do ex-deputado Marçal Filho (PMDB-MS), prevê multa a favor da empregada. O valor será, caso aprovada a proposta, cinco vezes a diferença de salários durante todo o período de contratação da mulher. O projeto, segundo justificativa do autor, tem o objetivo de combater a diferença na remuneração verificada entre os dois gêneros.
A pesquisa promovida pelo site Catho, este ano, constatou que o problema vai além das remunerações baixas. Uma das áreas que mais sofrem com a desigualdade salarial e a falta de representatividade é a de tecnologia, na qual as mulheres ocupam somente 19% dos cargos.
Das entrevistadas pelo site Catho, 30% contavam com nível superior e pós-graduação, já entre os homens apenas 24% tinham alguma especialização. Mesmo tendo qualificação um pouco menor, o trabalhador ainda pode ganhar 52% a mais que uma mulher, exercendo a mesma função..
A antiga empresa de Julyhanna Luiza Fernandes levava o ditado “amigos, amigos, negócios à parte” à risca. Mas só para o lado feminino da história. De acordo com a enfermeira, ela trabalhava mais do que qualquer homem, e a sensação de tristeza veio acompanhada com a de traição, pois eram todos amigos próximos. “Era escondido de mim, era por fora, na carteira recebíamos o mesmo (...) frequentávamos a casa do chefe e da família dele em festividades e tudo mais”.
Segundo a ex-auxiliar administrativa, depois de algum tempo, sabendo da situação, ela exigiu direitos iguais, mesmo assim, continuou sendo enganada. “Eu me sentia péssima”, desabafa. Quando, mais uma vez, ela buscou deixar a situação justa, foi despedida. “No final, ele não quis me pagar corretamente os valores de quando mandam embora o funcionário, tentou me enganar de novo”, conta.
De acordo com o relato, ela precisou entrar na justiça para reaver o valor. Julyhanna tentou a equiparação salarial, mas acabou não conseguindo, pois as provas que tinha eram sem a permissão do chefe.
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A opinião de advogados
O advogado e professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho César Alexandre Marinho informa que o máximo que uma trabalhadora conseguirá, ao ingressar com uma Reclamação Trabalhista, caso o pedido de equiparação salarial seja julgado procedente, é o pagamento de diferenças salariais. O que não foi o caso de Julyhanna Luiza Fernandes, já que ela não tinha provas válidas.
Sobre a situação e a proposta que tramita no Congresso Nacional, Mayra Cardozo, 28 anos, advogada especialista em Direitos Humanos, professora de Direitos Humanos do Centro Universitário de Brasília, afirma que, apesar de a lei ser um instrumento importante, a mudança esperada na sociedade virá da educação.
“É a base que conserta. A gente pode ter as melhores leis do mundo, mas o que a gente tem que mexer é na educação, para que se questione a socialização patriarcal e a mentalidade de inferiorização da mulher”, diz.
O Projeto de Lei, caso aprovado pelo Congresso, trará uma sanção maior ao empregador, no sentido de dar mais dureza ao descumprimento da norma trabalhista, segundo César Alexandre Marinho, advogado e professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho. “Quanto à isonomia salarial entre homens e mulheres, o fato de aplicar uma multa de cinco vezes o valor do salário do homem, nesse caso, certamente, fará com que o empregador esteja mais preocupado em cumprir a Lei”, argumenta.
Impotência, injustiça e desvalorização
Adriane Alves de Sousa, 28 anos, trabalha como freelancer atualmente. Quando ela sofreu desigualdade salarial, em 2016, era balconista. A moça, que mora em Caldas Novas (GO), conta que ela indicou o namorado para o mesmo cargo na empresa em que trabalhava, e ele, ao entrar, passou a receber um salário maior que o dela.
“Eu cheguei a questionar a diferença para a nossa contratante, perguntando, inclusive, se era por causa do horário dele, mas ela disse que era assim mesmo e que esse não era o motivo, pois ele recebia apenas uma hora de adicional noturno, o que não cobria a diferença no valor”, conta.
“Me sentia muito injustiçada e desvalorizada, porque, apesar de termos a mesma função, eu ainda ficava no turno diurno, que era muito mais movimentado”, afirma. Conforme ela diz, é preciso olhar com mais respeito às mulheres no mercado de trabalho. Adriane cita a cobrança da sociedade para que se tenha filhos e os crie com dignidade, sem dar suporte para que isso aconteça.
“Além de pagarem menos, muitas empresas descartam a contratação pelo simples fato de sermos mães, enquanto o homem pode ter quantos filhos quiser, que isso jamais o impedirá de ser contratado”, afirma.
Sobre a desigualdade salarial entre homens e mulheres que ocupam a mesma posição em uma empresa, a advogada de Direitos Humanos, mentora e palestrista em feminismo e inclusão entende que o assunto está relacionado ao poder. “Eu acho que o que está por trás disso é a ideia de que o espaço, o poder, não pertence às mulheres”.
Elas, segundo a professora do Uniceub, estariam sempre pedindo um “favor” para ocupar determinados espaços. “Somos [as mulheres] socializadas a entender que o que é público é eminentemente masculino, e o poder também, se a gente está ali como meras intrusas, num espaço que não é nosso, então, é justificável não ter um salário igual ao do homem”, arremata.
O sentimento de impotência diante de situações como essa é o que leva, muitas vezes, mulheres a não falarem nada, afinal, a maioria desses casos não tem solução. E quando levados à Justiça, tem resultado desfavorável à vítima. A enfermeira Julyhanna Luiza Fernandes é a prova disso. “Só passando na pele para sentir, foi horrível, me senti a pior pessoa do mundo e extremamente impotente diante disso, pois, no final das contas, a justiça não foi feita”, comenta a enfermeira.
No caso de Heloísa Abreu, 28 anos, foi diferente. Ela não reclamou, mas isso não mudou o sentimento de raiva, tristeza e injustiça. A mulher sofreu desigualdade salarial por ocupar o mesmo cargo que um homem duas vezes em empresas e cargos distintos. Na primeira, ela era fotógrafa e recebia menos que os homens que ocupavam sua posição anteriormente. “Até eu tirar o registro, recebi R$ 1.500, enquanto os anteriores, recebiam R$ 2.500 pela mesma função”.
A empresa aumentou a remuneração dela assim que a moça tirou o registro. “Me sentia péssima, mas foi meu primeiro emprego com carteira assinada, e não soube lidar bem com isso”, desabafa.
Mas a história não acaba aí. Segundo Heloísa, demitiram-na sem justa causa: ligaram para o amigo dela que a indicou à vaga, perguntaram se ele queria voltar a trabalhar na empresa, antes mesmo de dispensá-la. “Não havia nenhuma reclamação sobre o trabalho antes”, conta. Substituíram ela — sem motivo e justificativa aparentes — por um homem.
O advogado e professor de Direito do Trabalho e Processo do Trabalho César Alexandre Marinho alerta sobre a importância de as empregadas estarem conscientes de seus direitos para que, assim, possam exigi-los “diante dos desmandos do empregador que insiste em não cumprir a ordem jurídica laboral”.
"Discriminação feminina é endêmica no país"
Para o relator da proposta no Senado, que propõe multa às empresas que diferenciarem salários entre homens e mulheres na mesma posição, Paulo Paim (PT-RS), a discriminação feminina é endêmica no país. “Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), as mulheres ocuparam apenas 37,4% dos cargos gerenciais em 2019 e receberam 77,7% do rendimento dos homens. Ou seja, 22,3% a menos”, afirma.
O projeto nº 130/2011, de autoria do ex-deputado Marçal Filho (MDB-MS), deveria ter ido à sanção presidencial a partir do Senado. Entretanto retornou à Câmara, pois havia muitas alterações no texto, e deveria ser aprovado novamente. A senadora Simone Tebet (MDB-MS), líder da bancada feminina, manifestou preocupação com a volta da proposta.
“Esse é um projeto que tem uma década de paralisia institucional. Nós estamos falando de uma atrofia social que, a cada dia que passa sem sanção, prejudica mais a sociedade e distancia ainda mais homens e mulheres em seus direitos”, justificou.
Segundo Paulo Paim, desde 1952, há previsão legal de que sendo idêntica a função, a todo trabalho de igual valor prestado ao mesmo empregador, na mesma localidade, corresponderá igual salário, sem distinção de sexo, nacionalidade ou idade. Mas, ele afirma que “na prática, ainda estamos longe de alcançar essa realidade”.
A igualdade na remuneração é um princípio decorrente da Constituição, de acordo com o parlamentar, e, também, já previsto em lei. “Acontece que, até o momento, não há multa prevista para os casos de discriminação salarial. Nesse sentido, o projeto busca dar efetividade à política de proteção e promoção do trabalho da mulher”, explica.
Ele também afirma que o texto assegura às mulheres negras equidade e combate ao preconceito racial. “Em razão da cor [trabalhadoras pretas e pardas], recebem salários, em média, 26,5% inferiores aos das mulheres brancas e 40% menores que os dos homens brancos”.
Em entrevista ao Correio, a senadora Simone Tebet afirma que a luta é “por respeito e validação da nossa capacidade”. Ao ser questionada sobre a efetividade do projeto, a parlamentar respondeu que as empresas irão respeitar a futura lei conforme elas tiverem que cumpri-la.
“Quando dói no bolso, funciona. Estipular multa de até cinco vezes o valor da diferença entre os salários, ao longo de cinco anos, pode assustar. Quem é contra argumenta que o prejuízo às empresas será muito danoso. Mas, e o lucro que essas mesmas empresas tiveram ao longo de anos, explorando o trabalho feminino?”, questiona.
Essa culpa é minha?
“Às vezes, passava pela cabeça se eu não estava reclamando demais, porque precisaria ter me valorizado primeiro e tal, mas sei que eles estavam errados”, revela Heloísa Abreu, profissional de vídeo, sobre o segundo emprego em que sofreu desigualdade salarial. Ela conta que, durante a entrevista, aceitou ganhar R$ 1.500, por medo de não ser contratada e precisar muito do trabalho. Depois de algum tempo, no entanto, descobriu que outros homens que trabalhavam com ela, ganhavam — no mínimo — R$ 1.000 a mais na mesma função.
“Pensei em fazer algo a respeito, mas o clima geral na empresa era ruim e preferi esperar que me demitissem, porque sabia que estavam querendo cortar algumas pessoas. Nessas duas situações me senti horrível, obviamente, ainda mais porque me considero feminista e nunca imaginei que ia passar por isso e meio que “aceitar” pelas circunstâncias”.
Heloísa que, atualmente, é freelancer e trabalha como assistente de câmera de cinema, considera que mulheres aceitam situações desse tipo por medo. “Quem quer ficar desempregado, não é mesmo? Mas ter uma lei para punir quem faz isso seria o mínimo, enquanto esse sistema de desvalorização do trabalho feminino não muda”.