A partir da promulgação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) n° 186 de 2019, mais conhecida como PEC Emergencial, um novo capítulo de preocupações se abriu para muitos concurseiros. Na prática, o texto permite ao governo federal gastar com assistência à população, no entanto estabelece uma série de normas, chamadas gatilhos, para controlar os gastos.
Em um dos trechos, fica estabelecido que, caso a relação entre despesas correntes e receitas correntes supere 95%, estados, Distrito Federal e municípios podem sofrer medidas de ajuste fiscal, incluindo a se limitação à realização de concursos públicos, restringindo-se à reposição de vacâncias.
Um dos pontos que têm gerado discussão é a relação com mecanismos da Emenda à Constituição do Teto de Gastos, aprovada durante a gestão do então presidente Michel Temer, o que faria com que as limitações aos concursos valessem pelo mesmo período. O teto tem duração de 20 anos, contando a partir de 2016, assim, está vigente até 2036.
O diretor da Associação Brasileira de Concursos Públicos (ABCP), Eduardo Ferreira, ressalta que a entidade não enxerga a PEC Emergencial como algo prejudicial para a área dos concursos, tendo em vista o número de concursos represados em 2020. No entanto observa como problema a falta de estratégia que prevenisse isso, ou seja, planejamento para lidar com a crise antes que ela ocorresse.
Ele destaca que o impedimento da pandemia se soma à decisão de muitos governantes de não promover concursos públicos em ano eleitoral, uma vez que a legislação veda nomeação em período próximo à troca de mandato. “Foi um ano de concurso represado, e essa demanda não é afetada pela PEC, porque não é vacância, mas algo que estava previsto no orçamento de 2019”, ressalta.
Falta de vacina atrapalha
“A PEC do ministro Paulo Guedes tenta fazer com que não haja pedalada fiscal ou acúmulo de dívidas do setor público. E isso é compreensível”, observa. Mas ele destaca que, em período de pandemia, ampliar o número de postos na administração pública não era algo viável devido a necessidade de canalizar recursos para a contenção da disseminação do vírus e amenizar a recessão econômica proveniente do isolamento social.
“Nenhum prefeito ou governador tem dinheiro para abrir vaga nova, isso é irreal. A pandemia já esvaziou os cofres.” O diretor observa que falta uma explicação clara da legislação. “Na prática, o governo somente libera recursos para quem seguir um estrito controle das finanças, dos gastos”, ressalta. “A PEC é para injetar dinheiro público, por meio do auxílio emergencial, por exemplo, para tentar fazer o Brasil respirar em meio a uma repressão brava”, diz.
Ele destaca que, assim que for possível realizar aplicações sem o risco da pandemia, faltará agenda para um número tão alto de concursos. “Nosso inimigo não é a PEC, mas, sim, a falta da vacina. Não há segurança jurídica para fazer um concurso mesmo por empresas bem seguras”, lembra Eduardo, sobre o impacto também para as bancas aplicadoras.
Certames dependem de orçamento
A contenção de gastos da gestão pública tem sido fator que rege os concursos públicos durante a pandemia, limitando-os à reposição de cargos vagos. Está em vigor a Lei nº 6.662, de 21 de agosto de 2020, que suspende, até 31 de dezembro de 2021, os prazos de validade dos concursos públicos homologados e mantém somente a nomeação de aprovados para reposições decorrentes de vacâncias de cargos públicos efetivos. O mecanismo está em consonância com a Lei Complementar nº 173, de 27 de maio de 2020, que estabelece o Programa Federativo de Enfrentamento ao Coronavírus SARS-CoV-2.
Bancas devem aprimorar aplicação
Marco Antônio Araújo Júnior, vice-presidente da Asssociação de Apoio aos Concursos Públicos e Exames, afirma que a suspensão das provas é uma prevenção das bancas. “Por vezes, as provas são desmarcadas por conta de uma atitude de precaução e outras são desmarcadas na véspera por falta de estrutura, que foi o que aconteceu com a Polícia Civil do estado do Paraná”, ressalta.
Após o Núcleo de Concursos da Universidade Federal do Paraná (UFPR) constatar a ausência de requisitos indispensáveis de segurança, a aplicação do concurso público da Polícia Civil do estado foi suspensa.
A decisão ocorreu na madrugada da data marcada para a realização das provas, 21 de fevereiro. O certame se destina ao provimento de 400 vagas para cargos de nível superior, que se dividem entre postos de delegado de polícia (50 vagas), investigador de polícia (300) e papiloscopista (50).
O vice-presidente da Aconexa, porém, considera que tanto a aplicação quanto a suspensão devem ser aprimoradas pelas bancas aplicadoras. Ele ressalta que a associação tem sugerido às bancas que, se decidirem pela suspensão das provas, o façam com antecedência para evitar prejuízo, principalmente aos inscritos que viajaram para participar dos certames.
Quanto à aplicação, Marco Antônio lembra que concursos públicos, por essência, provocam aglomerações e por isso, as bancas devem avaliar os riscos e implantar medidas que garantam a segurança sanitária. Portanto, as bancas devem avaliar os riscos e atuar na redução do potencial de contaminação dos inscritos e aplicadores.
Entre as ações sugeridas pela Aconexa durante os testes estão a utilização de máscaras, o distanciamento, a disponibilização de álcool em gel e a garantia de estrutura física para ter um menor número de candidatos por sala de aula. Além disso, antecipar a abertura dos portões pode ser uma boa medida para evitar aglomerações. “As bancas precisam, efetivamente, se adaptarem ao cenário de pandemia se quiserem continuar realizando concursos públicos”, afirma.
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Desafio para os concursos nacionais
O cuidado da banca deve aumentar ao promover certames nacionais. De acordo com Marco Antônio Araújo Júnior, a quantidade de pessoas mobilizadas em provas dessa amplitude deve levar a organizadora a fazer uma avaliação mais criteriosa para entender se os testes deveriam ser aplicados ou não.
Eduardo Cambuy, professor do Gran Cursos Online, acrescenta que outro fator determinante é a desigualdade tanto na disseminação do vírus quanto no combate à pandemia. “Realizar uma prova de âmbito nacional exige analisar a desigualdade sanitária em cada região. Imagine você fazer uma prova em Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais… Teríamos diferentes situações sanitárias.”
Mesmo em condições anteriores à pandemia, a logística de um certame nacional era bem mais complexa que a de um local. “Mas as duas formas são possíveis de serem ou não realizadas, dependendo dos índices e do avanço da pandemia”, pondera.
Mesmo com medida carreira pública é atrativa
O advogado especializado em administração pública Agnaldo Bastos observa que os mecanismos criados pela PEC remetem a outros em vigor na pandemia. Ele destaca que a legislação já prevê a suspensão de concursos com criação de novas vagas por meio da lei complementar n° 173, aprovada em maio de 2020.
Ele ressalta que a EC deixa a critério da administração pública a decisão de adotar as medidas de contenção de gastos. “Essa EC emergencial, como tem uma aplicação mais abrangente, uma vez que foi alterada a Constituição, a aplicação dela também será mais abrangente. A proposta, como lembra, apesar de ganhar força na pandemia, teve como base projeto apresentado em 2019. “Essa proposta surgiu por uma questão de crise econômica e reajuste fiscal”, ressalta. Agnaldo observa que, em caso de acionados os gatilhos da legislação, caso um órgão tenha sua demanda aumentada e precise de novos profissionais não poderá abrir um certame.
Mesmo com as mudanças na legislação impactando diretamente no interesse pelo serviço público, ele ressalta que continua a ser uma área mais atrativa que a iniciativa privada. “Gera um impacto tanto para os servidores quanto para quem está querendo ingressar. Não vai ser da mesma forma que antes, mas continuará melhor que a iniciativa privada, continua valendo a pena se dedicar", pondera.
Três perguntas para / Thiago Sorrentino, professor de direito do Estado do Instituto Brasileiro do Mercado de Capitais do Distrito Federal (Ibmec/DF)
Como o senhor avalia o desempenho das bancas na gestão das provas durante a pandemia? Legalmente é possível o cancelamento ou a suspensão?
As bancas estão adaptando-se como possível nesse ambiente novo e extremamente instável, causado pela pandemia. Nesse processo, é esperado que alguns deslizes ocorram. Legalmente é possível o cancelamento e a suspensão de concursos públicos para provimento de cargos, nas estritas hipóteses legais. Em qualquer hipótese, é necessário que o cancelamento ou a suspensão sejam motivados. Normalmente, um concurso pode ser cancelado se houver irregularidade na execução das provas (falta de fiscalização, fraude etc). Mas é possível vislumbrar a possibilidade de cancelamento ou de suspensão na hipótese extrema de os recursos necessários ao preenchimento do cargo terem que ser destinados ao combate à pandemia, ao menos momentaneamente.
Quando o concurso é adiado, o que o inscrito pode fazer? É possível pedir ressarcimento?
A princípio, o inscrito não pode fazer muito. O adiamento, plenamente motivado, por prazo razoável, não geraria o dever de ressarcimento, nem de indenização ao candidato. Porém, essa situação de legalidade pode lentamente transitar para quadro de ilegalidade ou até inconstitucionalidade, se a demora for prolongada, ou se as condições para submissão às provas mudarem radicalmente. Evidentemente, no caso de cancelamento, o inscrito possui o direito de receber os valores pagos a título de inscrição.
Como as restrições orçamentárias vigentes durante a pandemia podem impactar os concursos?
O orçamento é condição essencial para os concursos. Sabemos que a capacidade de investimento do Brasil é bastante limitada, e, por tal razão, a Lei de Responsabilidade Fiscal impõe restrições importantes ao dispêndio com remuneração de servidores. A necessidade de gastos prioritários com as ações de combate à pandemia, associada à diminuição da arrecadação pelo esfacelamento da economia, podem afetar drasticamente a capacidade de dispêndio com folha, e, consequentemente, de abertura de novas vagas ou o preenchimento das vagas existentes -- a ponto de levar à criação das chamadas vagas “podres”, isto é, existentes nos termos da lei, mas que não podem ser preenchidas sem violação da responsabilidade fiscal e do orçamento
Estagiário sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa*