Uma vez que um racismo histórico, estrutural e estruturante permeia todos os espaços da sociedade brasileira, são de grande proporção os obstáculos que a população preta e parda enfrenta para chegar a posições de destaque. A superação desse nível de barreira acontece a partir de um elevado esforço.
É preciso muito vigor para dar conta dos desafios existentes no mercado de trabalho em geral e, também, dos desafios impostos pelo racismo no Brasil, último país ocidental a abolir a escravidão. Mesmo quando integram a mesma classe social ou quando tiveram acesso à educação de mesmo nível, negros e brancos são confrontados com dificuldades diferentes.
Não faltam pretos e pardos que conseguiram êxito nos mais diversos nichos e são exemplos de superação. A mudança está em curso para que cada vez haja mais casos assim. No entanto, essa alteração gera, muitas vezes, polêmica e falta de aceitação. Isso porque o negro bem-sucedido incomoda racistas.
“E tem que incomodar mesmo”, afirma Cida Bento, coordenadora e cofundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert). “As mulheres, quando começaram a chegar a cargos de liderança, também incomodavam os homens. Por muito tempo, os homens não queriam lidar com mulheres como chefes”, compara.
Psicóloga, mestra e doutora em psicologia, ela observa que a mudança racial em curso vai incomodar sempre, pois existe medo da perda de privilégios. “A identidade branca é fortalecida quando o branco pode ficar num lugar de referência do que é humano. Quando aparece este outro (o negro) em posição de igualdade, há um desconforto”, analisa.
“O branco, mesmo se for pobre e tiver limitações, está um passo à frente. Quando um ‘inferior’, e digo isso entre aspas, aparece numa posição de igualdade com ele, o branco perde um pouco dessa superioridade imaginária na sua condição de ser humano universal”, diz. “Ele, em geral, não gosta de encontrar os negros nos espaços que seriam, em tese, brancos, como universidade”, explica.
Desgaste
Como o racismo está presente em todas as esferas da vida em sociedade, é comum encontrar pessoas negras cansadas e fartas de terem de se impor e lutar contra isso. “A gente tem cansaço de tantas coisas”, diz Cida.
Saiba Mais
Dentro das instituições, grupos de afinidade ou discussão racial ajudam muito, pois permitem concentrar demandas, o que não quer dizer que tudo que peçam será aceito pela chefia, mas é um primeiro passo. Além de concentrar demandas para os setores competentes, grupos organizados fortalecem os negros por meio da coletividade.
“A instituição precisa se responsabilizar, mas só faz isso quando grupos começam a demandar e levar questões de discriminações de gênero e raça.” Em grandes empresas, esse tipo de iniciativa começa a ser comum. Nas corporações que não contam com esse tipo de serviço, é possível começar.
Pacto branco
Cida foi listada pela revista The Economist, em 2015, como uma das 50 profissionais mais influentes do mundo no campo da diversidade. Natural de São Paulo e filha de um motorista e de uma servente, foi a primeira da família a ter diploma de nível superior.
Sua tese de doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), de 2002, intitulada Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público, explorou manifestações da racialidade branca (branquitude) no discurso de gestores de RH.
O trabalho buscou entender como se dá a reprodução das desigualdades raciais nas relações de trabalho nas organizações. As exclusões acontecem como se houvesse um pacto entre brancos, chamado por Cida de pacto narcísico da branquitude, que implica em negar e evitar a discussão racial tendo em vista a manutenção de privilégios raciais.
A pesquisadora explica que o pacto narcísico da branquitude é “um pacto de dominação, de relações de dominação que visa privilegiar e reservar os melhores espaços, seja em que tipo de instituição for, pública ou privada, para os iguais (os brancos)”. Os efeitos disso são escancarados nas seleções, nas promoções e em todos os processos.
Assim, gera-se um contexto em que, por um lado, há preferência e uma tendência de confiar “nos iguais”, de acreditar que vai dar certo com outros brancos. Por outro lado, existe a “tendência de deixar de fora aqueles e aquelas que, no seu imaginário, são considerados ruins, incompetentes, feios e perigosos”.
Em busca de consciência
É possível superar essa visão dentro das organizações. O primeiro passo, ensina Cida Bento, é reconhecer esse lugar da branquitude e suas consequências. Muitas empresas, no entanto, negam. Alegam que, ali, funciona um sistema meritocrático.
“Para ocupar certos lugares nas instituições, um grande empurrãozinho da meritocracia é ter se relacionado com quem ocupou esses lugares ao longo da vida”, comenta Cida.
A boa notícia é que há mais pessoas em busca de consciência racial e há brancos antirracistas colaborando para alterar o cenário. “Cresce o percentual de brancos fazendo esforços para mudar. Esse é um movimento de questionamentos de lugares homogêneos que não é moda, é contínuo.”
Os efeitos dessa maior conscientização precisam se concretizar institucionalmente, nas normas das empresas, nos processos de recrutamento e seleção. “É preciso ter humildade de saber que usar o mesmo processo seletivo que sempre selecionou brancos não, necessariamente, selecionará negros”, avisa Cida.
“Estamos em mudança e precisamos apoiar essas mudanças. Uma sociedade para todos e todas nós exige que as instituições se tornem mais democráticas e se voltem para o significado da vida em sociedade, que envolve bem-estar, cooperatividade…”
Os lugares de tomada de decisão, historicamente, são ocupados por brancos. Quando um “diferente”, que sempre esteve excluído, ocupa esse posto, subverte a estrutura. “As pessoas e as empresas têm medo de eles tomarem decisões diferentes”, observa.
Segundo Cida, os negros, por sempre terem estado à margem, conseguem olhar para as instituições de maneira crítica. Assim, são capazes, também, de trazer um olhar mais humanitário e não exclusivamente voltado a resultados e lucros, mas pensando em solidariedade, convivência e bem-estar.
Serviços públicos
Na análise de Cida Bento, os prejuízos do racismo estrutural, institucionalmente, são muito similares em organizações públicas e particulares. O detalhe é que a população negra e periférica mais comumente tem acesso a serviços públicos, o que gera um prejuízo maior ao cidadão nessa esfera. “Quanto mais a instituição tem dificuldade de lidar com a desigualdade dentro dela, mais difícil será atender um público diverso.”