Histórias de consciência

Trabalho de advogado negro fortalece debate sobre reparação no país

Um dos responsáveis pela criação da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra da OAB, Humberto Adami fez da advocacia o meio para combater o racismo

Talita de Souza*
postado em 13/12/2020 14:05
Humberto Adami, advogado e presidente de comissão sobre a verdade da escravidão negra na OAB -  (crédito: Lula Aparício/Divulgação)
Humberto Adami, advogado e presidente de comissão sobre a verdade da escravidão negra na OAB - (crédito: Lula Aparício/Divulgação)

O ritmo acelerado e a voz firme ao falar sobre o trabalho como presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) revelam a urgência do advogado Humberto Adami, 62 anos, para tornar a reparação histórica o tema principal dos debates raciais no país.

“O racismo brasileiro tem uma marca evidente: a desigualdade racial estabelecida nos tempos da escravidão, desde o momento que o primeiro africano escravizado colocou o pé aqui. De lá para cá, não teve nenhuma política pública de reparação”, alerta. “Cotas são uma ação muito pequena em relação ao horror da escravidão negra”, completa.

A Comissão, criada em 2014 e dirigida por ele desde então, busca tornar públicos atos de racismo na história do Brasil e resgatar a memória negra do país. Graduado pela Universidade de Brasília (UnB), Adami foi um dos que propuseram a criação do núcleo na OAB durante a Conferência Nacional dos Advogados de 2014, no Rio de Janeiro.

“Não é possível deixar de tratar a perda de cultura, história, vida e bens materiais dos seres humanos trazidos de outro continente para cá, que ajudaram a construir o Brasil, mas foram subjugados a uma categoria inferior, o que permanece até hoje. Enquanto o país não enfrentar esse problema que vem da escravidão, não avançaremos”, afirma.

Por três gestões, Humberto tem dedicado tempo e energia para conduzir o trabalho da comissão de produzir relatórios com dados que mostram o racismo histórico, além de planejar ações que garantam a permanência de direitos conquistados pela população preta e parda.

Em 2017, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou constitucional a lei que reserva a negros 20% das vagas oferecidas em concursos públicos. O Plenário do órgão votou a matéria após receber uma Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) da OAB, feita a pedido da Comissão que Adami preside.

Hoje, ele contabiliza núcleos da comissão em 18 seccionais da OAB, e cada uma prepara relatórios e estudos focados na região em que está. “Em Brasília, por exemplo, um trabalho importante da comissão foi mostrar como as comunidades quilombolas presentes no entorno do DF não conseguiram, até hoje, a demarcação de terras”, conta.

O trabalho feito pelo carioca faz parte da trajetória de militância que tem construído há cerca de 20 anos. Apesar de sempre ter tido consciência racial, foi apenas em 1999, após viver mais um caso de racismo, que ele decidiu dar passos mais firmes e institucionalizar a luta contra o racismo.

“Organizei um evento para uma instituição de advogados e propus o debate da questão racial. Ao propor nomes do movimento negro, a instituição cancelou o evento. Quando fizeram isso, entrei para briga e não saí mais dela”, lembra.

“Refiz o pedido para o evento ocorrer e foi aceito. Consegui a presença de 400 advogados e quatro ministros, sem nenhum orçamento”, relata. A partir daí, Humberto Adami começou a fomentar cada vez mais os debates raciais em instituições como a OAB e o Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).

Pioneiro na luta

Depois disso, ele começou a defender de forma pró-bono, por meio do próprio escritório, Adami Advogados Associados, pessoas que recebiam sentenças contrárias em processos de cotas em universidades. “Antes da legislação nacional, os casos de pessoas que tinham o direito negado eram enormes”, destaca.

Em 2005, criou o Instituto de Advocacia Racial e Ambiental (Iara) para ter representação como pessoa jurídica nos casos de racismo e constitucionalidade de cotas. Hoje, a ONG (Organização Não Governamental) atua em questões pontuais de racismo.

Ela foi a responsável pela denúncia-crime contra o defensor público Jovino Bento Junior, que ajuizou uma ação civil pública para cobrar R$ 10 milhões da empresa varejista Magazine Luiza por abrir um programa de trainee exclusivo para negros.

“Entramos com a denúncia de abuso de autoridade porque ele quis impedir uma ação reparadora de uma empresa privada. A postura pode ter consequências terríveis, como amedrontar outras corporações a darem passos contra o racismo”, pontua. A ONG pede que o defensor responda a um inquérito policial na Polícia Federal sobre a motivação dos atos.

Agora aposentado pelo Banco do Brasil, após 32 anos como advogado da instituição, Adami tem mais certeza de que a advocacia é uma forma poderosa de exercer a reparação histórica. “Já me disseram que não se pode judicializar o tema racial. Para mim, não há outro caminho. Tem gente que briga nas áreas política e educacional e eu luto judicialmente”, diz.

Ele concluiu com um recado para advogados negros e negras: “Vocês devem se preparar para atuar contra as injustiças raciais ainda presentes. O Brasil é permeado de injustiças e a advocacia de combate tem um espaço importantíssimo para mudar isso. Advocacia é feita para os que têm coragem”.

 

*Estagiária sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação