Histórias de consciência

Como ser uma pessoa ou empresa antirracista? Especialistas ensinam

Combater o racismo e ajudar na construção de uma sociedade mais justa e igualitária é uma responsabilidade de todos. Saiba como assumir esse compromisso

Ana Lídia Araújo*
Ana Paula Lisboa
Talita de Souza*
postado em 13/12/2020 13:47 / atualizado em 13/12/2020 14:28
A luta contra a discriminação não cabe nem deve caber apenas aos negros. Todos os trabalhadores podem abraçar essa causa para que haja mais instituições inclusivas. Há profissionais que fazem da própria carreira um instrumento de busca por igualdade racial   -  (crédito: Reprodução)
A luta contra a discriminação não cabe nem deve caber apenas aos negros. Todos os trabalhadores podem abraçar essa causa para que haja mais instituições inclusivas. Há profissionais que fazem da própria carreira um instrumento de busca por igualdade racial - (crédito: Reprodução)

Ao longo de seis domingos, o caderno Trabalho & Formação Profissional abordou desafios e conquistas da participação de negros na educação e no mercado de trabalho, por meio da série Histórias de consciência.

As publicações mostraram o desperdício de talentos por causa do racismo, as dificuldades dos jovens pretos e pardos, a luta para conquistar cargos de chefia, a potência de inclusão social que é o empreendedorismo afro-brasileiro e como os negros bem-sucedidos incomodam racistas.

Hoje, a última reportagem da série no caderno investiga uma questão relevante: como pessoas, negras ou não, podem ser antirracistas ativamente e ajudar a construir uma sociedade mais igualitária? Segundo Kelly Stak, consultora de RH e especialista em desenvolvimento humano pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, o primeiro passo é se posicionar.

“O racismo é um problema social e, como seres sociais, temos de entender o nosso papel em relação a esse dilema. É preciso se posicionar sobre o assunto não só em palavras, mas, também, em atitudes. Não é postar fotos nas redes, mas estudar e agir”, pontua a fundadora da consultoria Conscidisti Desenvolvimento Humano.

“Ser antirracista é algo que todos nós devemos ser e que começa em um nível pessoal. Ser antirracista é entender a dor do outro que sofre com a injustiça histórica e busca refletir como pode mudar seu comportamento para que isso não ocorra mais hoje e em gerações futuras”, explica.

Como começar?

Profissionais que querem adotar a postura antirracista devem entender que o posicionamento exige uma mudança radical no cotidiano. Eliminar do vocabulário palavras de origem racista e corrigir colegas ao ouvir expressões discriminatórias são ações necessárias.

“Muita gente usa termos racistas ao se referir a cabelos crespos. Outras podem até fazer ‘brincadeiras’ com colegas retintos, e depois todos riem. O antirracista deve ser aquele que não vai sorrir e ainda vai corrigir os colegas. Ele não fingirá que o racismo não existe nem se preocupará em parecer chato”, ensina Kelly.

Ler livros e assistir a séries ou filmes sobre a temática racial é uma das formas mais simples de entender a profundidade do racismo e de identificar atitudes e situações que ajudam no combate à prática criminosa. Além disso, é primordial denunciar casos de racismo. “Em qualquer forma ou em qualquer manifestação, não fique calado. Denuncie”, convoca.

Gestão responsável

Kelly Stak, consultora de RH
Kelly Stak, consultora de RH (foto: Flávio Rodrigues/Divulgação)

Empresários, gestores e diretores de empresas devem entender o peso do posicionamento deles em relação à luta contra o racismo. Eles são responsáveis por adotarem posturas coletivas, de forma a aumentar a participação de negros na empresa e promover uma cultura antirracista na instituição.

“O primeiro passo é avaliar a empresa: as oportunidades são igualitárias? O número de funcionários negros é igual ao de brancos? Se a resposta for não, esse empresário deve ficar incomodado e entender que precisa mudar”, alerta Kelly.

Rever o processo seletivo de uma instituição pode ser a resposta para garantir o aumento de negros. “Às vezes, exigem inglês fluente em uma vaga em que o idioma não será usado no dia a dia. Isso impossibilita a entrada de negros, já que sabemos que, no nosso país, a maioria das pessoas fluentes são brancas de classe média alta”, comenta.

Também cabe ao gestor promover capacitações sobre questões raciais e práticas antirracistas. O intuito é fazer do debate contra o racismo um dos pilares éticos da organização. “Toda empresa adota medidas de conscientização sobre sustentabilidade, como treinamentos e ações coletivas. Por que não adotar o mesmo formato em relação ao racismo?”, indaga Kelly.

Dar treinamentos específicos às lideranças da instituição é um passo que pode acelerar a mudança da cultura organizacional, pois não é raro que sejam os gestores a questionarem a necessidade de falar sobre racismo. Kelly ministra treinamentos para gestores nesse sentido e percebe isso.

“A maioria dos meus alunos é branca, porque eles ainda são bem presentes em cargos de liderança. Quando perguntados o que fazem para serem antirracistas, muitos se indignam e desistem do curso porque não acham necessária a adoção dessas práticas ou não gostam do meu questionamento”, conta. “Os líderes são modelos para os colaboradores, por isso, precisam ser os primeiros a adotarem o antirracismo”, defende.


Entenda
O posicionamento ativo contra o preconceito racial é chamado de antirracismo e se refere ao ato de pensar e construir ambientes, sistemas de ensino, culturas organizacionais e políticas públicas que previnam ações racistas. A postura antirracista não deve ser adotada só por pretos e pardos, mas pela sociedade em geral.

Políticas públicas: houve avanços?

Tatiana Dias Silva, pesquisadora do Ipea
Tatiana Dias Silva, pesquisadora do Ipea (foto: Hélio Montferre/Divulgação)

Tatiana Dias Silva, técnica de planejamento e pesquisa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), com base em seus estudos sobre igualdade racial, observa que as políticas públicas relacionadas aos negros avançaram ao longo dos anos, com base em muito esforço. “Saímos de medidas repressivas, para medidas de valorização para, então, chegar às medidas de igualdade racial”, observa.

Apesar de importantes, normas não resolvem a questão da desigualdade racial isoladamente. “Às vezes, dizem: você fala muito dos problemas. Isso é porque eu sou pesquisadora do tema. Teve avanços? Teve, sim. Mas temos que avançar estruturalmente”, diz. A luta pelo que é usufruído hoje veio de muito antes. As ações afirmativas que garantem maior ingresso no ensino superior e em concursos públicos, por exemplo, são resultado de uma batalha anterior.

“Estamos vivenciando a implementação de medidas pensadas muito antes de nós estarmos aqui. São ações que gerações de pessoas negras propuseram”, informa. Em 1983, o Projeto de Lei nº 1332/1983, do então deputados Abdias Nascimento (PDT-RJ), já previa ação compensatória visando a implementação do princípio da isonomia social do negro, em relação aos demais segmentos étnicos da população brasileira.

Foi preciso um longo processo para chegar às iniciativas de hoje. As primeiras políticas públicas voltadas à população negra visavam evitar a discriminação direta. Em 1988, o racismo virou crime inafiançável e a Fundação Cultural Palmares foi instituída por meio de lei. “Depois, surgiu outra geração de leis, voltadas à valorização, por exemplo, da cultura negra”, relata.

A fase seguinte foi a de políticas pensadas para a igualdade racial. “Só então começam a surgir medidas não apenas para promover a cultura de matriz africana, reconhecer e enfrentar o racismo, mas, também, para reconhecer as desigualdades e atuar sobre elas.” As cotas para concursos públicos fazem parte desta fase mais tardia de ações.

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Em meados dos anos 90, a Marcha Zumbi dos Palmares reuniu 30 mil pessoas em Brasília. No início dos anos 2000, a 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo da Organização das Nações Unidas (ONU), na África do Sul, contou com uma participação muito ativa do Brasil. Segundo Tatiana, esses foram alguns dos vários eventos que ajudaram a movimentar o cenário e promover o diálogo.

Impeditivos

Em alguns casos, dispositivos impedem a total aplicação de medidas afirmativas existentes. Muitos certames públicos são abertos com uma ou duas oportunidades e, portanto, não são obrigados a aplicar as cotas. “Concursos com poucas vagas acabam não implementando a legislação.” Há instituições que perceberam isso, estão revendo seus processos e criaram dispositivos para garantir a aplicação da norma em toda seleção.

“Cumprir só a letra da lei não garante eficácia para alcançar o objetivo da inclusão de pessoa negra. Alguns órgãos criaram um processo de fila de entrada, em que, a cada três vagas abertas, uma é destinada a ações afirmativas; em outros, ocorre um sorteio”, exemplifica Tatiana. Além disso, entre as seleções que chegam a reservar vagas para negros, nem sempre conseguem bom aproveitamento, principalmente no caso de processos seletivos de alto prestígio.

“Há concursos extremamente caros: há os custos da inscrição, de viagem para fazer prova se a chance for em outro lugar, de material de estudo e curso…”, lista a técnica do Ipea. Por isso, seja num órgão público, seja numa empresa particular, a pesquisadora defende que medidas afirmativas sejam vistas como parte de um projeto de desenvolvimento e que também não acabam com o racismo por si. “Só ter algo que ajude na entrada não é suficiente para dizer que a instituição é antirracista.”


Convenção por igualdade


A Câmara dos Deputados aprovou, na quarta-feira (9/12), o Projeto de Decreto de Lei nº 861/17, que valida o texto da Convenção Interamericana contra o Racismo, adotado na Guatemala na 43ª Sessão Ordinária da Assembleia Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA) em junho de 2013. Os países que ratificam o texto se comprometem com a elaboração de políticas públicas de prevenção ao racismo, promoção da igualdade de oportunidade na educação e no mercado de trabalho, ações afirmativas, diversidade no sistema político, assim como afirmam o esforço de punir práticas racistas. O texto foi encaminhado para o Senado Federal.

Leia!

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. (foto: Companhia das Letras/Reprodução)

Pequeno Manual Antirracista
Autora: Djamila Ribeiro
Editora: Companhia das Letras
135 páginas
R$ 24,90 / R$ 8,90 versão para Kindle

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. (foto: Editora UnB (EDU)/Reprodução)

O negro no mundo dos ricos: um estudo sobre a disparidade racial de riqueza com os dados do Censo 2010
Autor: Emerson Ferreira Rocha
Editora: UnB (EDU)
220 páginas
Livro gratuito disponível no link bit.ly/3gyIa44

Escrito por Emerson Ferreira, professor e pesquisador do Departamento de Sociologia da Universidade de Brasília (UnB), a obra, premiada, apresenta dados sobre a diferença de ganhos entre negros e brancos, principalmente, entre aqueles com a mesma formação. “O retorno financeiro sobre a qualificação profissional é maior para o branco do que para o negro. Em algumas áreas do conhecimento, essa diferença é um pouco menor, mas ela existe em todas as áreas”, afirma Emerson no livro. O estudo conquistou o primeiro lugar no 6º Prêmio ABEU (Associação Brasileira de Editoras Universitárias) na categoria ciências sociais aplicadas, em outubro deste ano.

Em livro, a filósofa e ativista Djamila Ribeiro sintetizou o significado de ser antirracista, o histórico do racismo no Brasil e as consequências dele, além de elencar práticas que podem ser adotadas na luta contra o preconceito racial. “Nunca entre numa discussão sobre racismo dizendo ‘não sou racista’. O que está em questão não é um posicionamento moral individual, mas um problema estrutural. A questão é: o que você está fazendo ativamente para combater o racismo? A inação contribui para perpetuar a opressão”, diz a autora.


* Estagiárias sob a supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

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