Eu, Estudante

Chamado de macaco por um chefe hoje é VP de uma firma de dados de saúde

Fernando Paiva enfrentou racismo severo. Com duas graduações, dois MBAs e uma série de cursos, incluindo em Harvard, ele sempre apostou nos estudos

No bairro da Mooca, em São Paulo, onde cresceu e vive, Fernando Paiva, 40 anos, não via outros negros além da própria família. Estudou na rede pública até a 5ª série e, em escolas particulares, a partir de então, e era sempre exceção. “Eu nunca convivi com outros negros, nunca tive amigos negros, só passei a ter quando comecei a ter uma militância”, conta. Isso não impediu que sua liderança natural fizesse com que ele chamasse atenção, mesmo sendo “nerd” e tímido desde menino. “Eu tinha um conhecimento diferenciado e as pessoas naturalmente me escolhiam como líder”, lembra. Na juventude, foi eleito líder no grupo de escoteiro e foi líder do grupo de jovens da Igreja Católica que frequentava.

Desde jovem, sabia o que queria. “Sempre pensei em ser executivo. Eu assistia programas de entrevistas com executivos e isso me inspirou”, explica. Foi exatamente o caminho que ele trilhou: ao longo da carreira, ocupou diversos cargos de chefia e, desde dezembro de 2018, é vice-presidente da Carenet, empresa de monitoramento de dados de saúde.

A corporação suíça, presente no Brasil desde 2013, tem sido ainda mais demandada durante a pandemia e reconhecida em prêmios. “A tecnologia é usada no Brasil todo em UTIs, pois nossa solução reduz a taxa de mortalidade. Eu estava numa linha de carreira de ir para uma estrutura menor de pessoas, mas grande de propósito e de abrangência tecnológica”, comemora. Fernando também é o sócio majoritário da Beleza Negra Cosméticos, cuja operação é tocada pelo primo dele, Renato Paiva.



Estudos

A trajetória de Fernando é baseada em aquisição de conhecimento e esforço. Filho de um advogado e livreiro e de uma professora universitária, sempre apostou nos estudos e em aliar habilidades técnicas, comerciais e de comunicação. “Meu pai dizia: conhecimento é poder. Se as pessoas não te engolirem porque você é preto, vão ter de te engolir porque você tem conhecimento e habilidade”, diz.

Aos 8 anos, vendia pipa na porta de casa, além de coxinha e geladinho feitos pela avó. “Meu pai percebeu que eu era ligado à tecnologia e me deu um computador. Com 12 anos, comecei a fazer cursos de linguagens de programação e já programava, fazendo na raça, na mão”, conta.

Além dos cursos, comprou muitos livros de algoritmo para estudar. Aos 13, Fernando construiu um sistema para controle de estoque que começou a ser usado por comerciantes da Mooca. Também prestava serviços para vizinhos instalando programas e computadores.

Adolescente, trabalhou numa empresa de montagem de computadores que tinha um programa de controle de contas a pagar e a receber. “Eu ajudava na manutenção do sisteminha e, em contato com os clientes, sempre vendia algum periférico, como mouse ou teclado”, lembra. O chefe valorizou o esforço, e Fernando começou a receber comissão por cada venda.

No ensino médio, fez escola técnica em processamento de dados. “Foram quatro anos de colegial que me deram uma base técnica melhor do que qualquer faculdade ou curso”, elogia. “Eu tinha na cabeça que, para ser executivo, precisava de uma formação multidisciplinar”, comenta.

Cursou administração com 100% de bolsa na Universidade Sant’Anna. Em seguida, formou-se em engenharia de produção na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem no currículo dois MBAs, pelo Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (Coppead/UFRJ) e pela Universidade de La Verne, na Califórnia.

Saiba Mais

Especializou-se em economia e mercado pela Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidade de São Paulo (Fipe/USP). Estudou, ainda, gestão de projetos na Fundação Getulio Vargas (FGV) e comunicação corporativa e negócios na Harvard Business School.


Preconceito

Fernando passou em cinco programas de trainee e pôde escolher onde trabalhar. Acabou optando pelo conglomerado Odebrecht, onde teve seu primeiro cargo de gestão. “Eu busquei os programas de trainee por saber que me colocariam num cargo de gerência”, relata. Ao longo da carreira, passou por diversas instituições, incluindo nacionais e multinacionais.

O preconceito se revelou em muitos momentos. “Em casa, sempre aprendi que o racismo é uma limitação cultural e espiritual do outro. Então, em vez de me fazer de vítima ou me esconder, eu usava isso como alavanca propulsora e mostrava que eu não era o que diziam”, relata. “Eu tinha resiliência e demonstrava que meu conhecimento era superior.”

Durante dois anos, era chamado de “macaco” por um chefe. “Era atender assim ou ser mandado embora”, explica. Apesar disso, Fernando usou a experiência para aprender. “Eu precisava adquirir conhecimento e esse cara podia ser o maior boçal de tratamento humano, mas tinha um conhecimento fora da curva”, conta. “Então, suportei. Para mim, era uma provação de Deus para vencer o orgulho, a vaidade e dar conta de aguentar aquilo.”

Ele se motivava ao se fortalecer para enfrentar situações piores. “Era como se eu estivesse criando anticorpos.” Outras situações humilhantes vieram. “Minha esposa é branca e, ao apresentá-la quando ainda era minha noiva a um grupo de diretores, perguntaram: quanto você está pagando para essa prostituta estar aqui com você?”, relata. Apesar de se sentir ferido, novamente, Fernando não reagiu.

Numa seleção de emprego, foi bem avaliado em etapas por telefone e pela internet. Na hora da entrevista com o diretor e a gerente de RH, o diretor perguntou: “é esse o cara?”. A gerente respondeu que sim e disse que Fernando tinha um bom perfil. O diretor retrucou: “você não percebeu que aqui não trabalha preto? Se ele quiser emprego, que vá lá fora olhar carro”.

Fernando sempre demonstrou a “face da elegância e da tolerância” frente a agressões. “Se toda vez que você for humilhado, defender-se com ofensa ou humilhação, você não se difere do seu algoz”, define. “Se você sabe que não é macaco, por que agredir o outro? Já existem mecanismos de proteção. Você pode buscar esses meios de maneira elegante de modo a garantir seus direitos”, sugere.

Ele acredita que não é “no grito que as conquistas virão”. Em certas ocasiões, Fernando nem precisou se posicionar, pois outras pessoas tomaram providências. “Numa reunião, um homem que seria meu subordinado disse: ‘eu estou acostumado a ter negros trabalhando para mim e não o contrário’. Eu não precisei falar nada, e ele foi demitido.”

Fernando percebe que, antigamente, o racismo era mais descarado ainda, o que não quer dizer que não permaneça até hoje em suas vivências. “Eu tenho o propósito de ser bom exemplo para jovens que não têm um modelo de referência”, explica. A mensagem que ele deixa para jovens negros é de acreditar em si mesmo e de se libertar de estereótipos.