RACISMO

Empresas ainda desperdiçam talentos negros por causa do racismo

Discriminação aparece de diversas formas na seleção, na promoção e na convivência corporativa. Companhias perdem em diversidade, inovação e produtividade

Ana Lídia Araújo*
Ana Paula Lisboa
postado em 08/11/2020 13:31 / atualizado em 09/11/2020 19:56
As marcas do racismo no mercado de trabalho aparecem de diversas formas na seleção, na promoção e na convivência corporativa. Com a exclusão, trabalhadores pretos e pardos perdem a chance de se desenvolver e companhias abrem mão da diversidade, da inovação e da produtividade -  (crédito: Arquivo Pessoal)
As marcas do racismo no mercado de trabalho aparecem de diversas formas na seleção, na promoção e na convivência corporativa. Com a exclusão, trabalhadores pretos e pardos perdem a chance de se desenvolver e companhias abrem mão da diversidade, da inovação e da produtividade - (crédito: Arquivo Pessoal)

Aquantidade de pessoas negras desempregadas no Brasil é quase o dobro que a de brancos. Das 12,8 milhões de pessoas que estavam desocupadas no primeiro trimestre do ano, mais de 8,2 milhões se identificam como pretas ou pardas, o que representa 64,2% do total.

Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnadc) do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e são o reflexo de um país que perde a oportunidade de diversificar o mercado de trabalho, desperdiça talentos e perde chances de inovação em desenvolvimento pela manutenção de uma estrutura racista.

Em Brasília, os percentuais repetem o cenário nacional: no DF, 68% dos desempregados são negros de acordo com a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan).

“Quando uma empresa deixa de lado candidatos com competências e habilidades por qualquer critério, essas pessoas perdem a chance de se incluir no mercado de trabalho, mas a organização perde mais ainda”, diz José Vicente, reitor e fundador da Universidade Zumbi dos Palmares. Segundo ele, além de desperdiçar talentos, firmas não inclusivas têm perdas econômicas e sociais.

“Uma empresa existe, claro, para se manter financeiramente, mas também para cumprir uma missão social importante de garantir que as pessoas possam realizar sonhos individuais e coletivos”, afirma. “Quando ela faz uma distinção e escolhe quem pode realizar esse sonho, já se desvirtuou de seu motivo de existência”, completa.

Promover inclusão e diversidade deveria ser de interesse das organizações pelo simples fato de que a igualdade entre pessoas é importante. No entanto, isso também pode trazer outros benefícios para as empresas, como destaca Cris Kerr, CEO da consultoria CKZ Diversidade.

.
. (foto: Valdo VirgoCB/D.A Press)

“Quanto mais diversidade eu trouxer, mais perspectivas diferentes eu vou ter. Quando a empresa traz negros, pessoas LGBTQI+ e perfis plurais, têm pessoas que pensam diferente. É isso que leva à inovação”, diz. Cris acredita que, para uma organização ser antirracista, é preciso que a liderança da companhia abrace essa causa.

Os líderes também devem ter noção de que inclusão não é só uma questão de responsabilidade social, mas é algo que vai gerar resultados e melhorar a produtividade e, por isso, deveria estar na estratégia da instituição.

“Estamos falando de metade da população brasileira, e um país não consegue avançar com metade do seu corpo paralisado”, destaca Tatiana Dias Silva, técnica de planejamento e pesquisa do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), com base em seus estudos sobre igualdade racial.

Assim, resolver essa desigualdade é pré-requisito para o Brasil avançar e se desenvolver como sociedade. Tatiana argumenta que “se uma ação de inclusão não toma a questão racial como central, ela ainda acaba ampliando discrepâncias”. Esse princípio vale para políticas públicas e também para programas de promoção de diversidade no interior de empresas.


Não use


Para falar de diversidade de inclusão, não se deve usar o termo tolerância. Todos merecem respeito e ninguém deve ser “tolerado”.


Reserva para estágio

O Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) determinou a reserva de 30% das vagas em seleções de estágio no Ministério Público para candidatos negros. O percentual será aplicado sempre que a oferta for maior que três. Para concorrer pela cota, é preciso se autodeclarar preto ou pardo no ato da inscrição.

Pandemia acirra problemas

Tatiana Dias Silva, pesquisadora do Ipea
Tatiana Dias Silva, pesquisadora do Ipea (foto: Hélio Montferre/Divulgação)

“Temos muitos desafios na permanência e no acesso ao mercado de trabalho, e o contexto da pandemia traz chances de retrocessos e de agravamento de desigualdades”, diz Tatiana Dias Silva, graduada, mestre e doutora em administração.

De acordo com a Pnad Covid-19, pesquisa experimental feita em caráter emergencial para divulgação de dados durante a pandemia, a taxa de desemprego subiu de 13,6% em agosto para 14% em setembro.

Entre a população negra, os números são mais agressivos: o índice saltou de 15,4% para 16,1%. Na prática, isso equivale a 519 mil pessoas pretas ou pardas que perderam o emprego em apenas um mês, enquanto, entre brancos, o número não chegou a 60 mil.

As chances de aumento de desigualdades na pandemia, observa Tatiana, se aceleram agora porque, na crise sanitária, negros tiveram menos chance de se manter no emprego trabalhando a distância, porque, em geral, as posições que ocupam não permitem isso.

O acesso à educação é fundamental para que pretos e pardos tenham empregos melhores. Tatiana, persquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), analisa que houve avanços e conquistas importantes da população negra, como o aumento da participação no ensino superior, vindos de ações afirmativas. No entanto, há ainda muitos problemas a superar.


R$ 1,69 mil
Rendimento médio mensal dos pretos no país


R$ 1,7 mil
Rendimento médio mensal dos pardos no país


R$ 3 mil
Rendimento médio mensal dos brancos no país

Fonte: Pnad Contínua do primeiro trimestre de 2020/IBGE


Mês da consciência negra

No início de 2003, a Lei nº 10.639 incluiu no currículo escolar a obrigatoriedade de abordar a temática da história e cultura afro-brasileira e escolheu 20 de novembro como o Dia Nacional da Consciência Negra. Neste mesmo dia, há 325 anos, o líder do Quilombo dos Palmares, Zumbi, foi assassinado. Em 2011, a Lei nº 12.519 oficializou a data como o Dia Nacional de Zumbi e da Consciência Negra. A data não é feriado nacional, mas foi adotada como feriado estadual e municipal em algumas localidades, como a cidade de São Paulo e os estados de Alagoas, Amazonas, Amapá, Mato Grosso, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul.

Rendimentos estratificados

Marcela Passamani, secretária de Justiça e Cidadania do DF
Marcela Passamani, secretária de Justiça e Cidadania do DF (foto: Ana Rayssa/CB/D.A. Press)

De acordo com a Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), 63,9% das pessoas pretas e pardas da capital do país moram nas regiões administrativas (RAs) com renda de até R$ 3.101. A renda alta, em média de R$ 15.622, é realidade para 33% dos negros da capital.

A secretária de Estado de Justiça e Cidadania do Distrito Federal (Sejus/DF), Marcela Passamani, diz que os dados evidenciam as barreiras impostas ao ingresso da população negra no mercado de trabalho.

“O nosso papel, enquanto responsáveis pela pauta da promoção da igualdade racial, é eliminar esses obstáculos por meio da conscientização das organizações públicas e das empresas sobre a importância de garantir a diversidade no ambiente de trabalho”, afirma.

O desenvolvimento de políticas públicas que ampliem as oportunidades para esses candidatos é necessário, argumenta Marcela. Em junho, o governador Ibaneis Rocha assinou o Decreto nº 40.910/2020, que estabelece que 20% das vagas de estágio da administração pública distrital sejam reservadas a negros.

Segundo a secretaria, o GDF está em trâmites para implantação de dispositivo similar à lei federal que garante o acesso de 20% de pessoas pretas ou pardas nos cargos públicos por meio de concursos. “O nosso objetivo é oferecer oportunidade aos jovens para que eles quebrem as barreiras e conquistem os sonhos deles”, diz.

Discriminação na pele

Matheus participou de 70 seleções, mas nunca se encaixou no "perfil" das empresas
Matheus participou de 70 seleções, mas nunca se encaixou no "perfil" das empresas (foto: Arquivo Pessoal)

Para quem está desempregado, a participação em processos seletivos é um momento crucial. Os recrutadores fazem perguntas e dinâmicas que vão definir se o candidato se encaixa ou não no perfil da empresa. O problema é quando o tal perfil não inclui a pele negra ou o cabelo black power.

Desde 2018, o morador de Ceilândia Matheus Dourado, 21 anos, busca uma oportunidade de trabalho. De lá para cá, participou de mais de 70 processos seletivos, sem sucesso. Ele gastou boa parte da rescisão do último trabalho para conseguir ir às entrevistas.

Em muitas seleções, nem foi chamado para a entrevista; em outras, sequer teve a mesma chance de se apresentar. Durante disputa para o cargo de auxiliar de estoque, ele e mais dois negros foram avaliados de forma diferente em comparação com outros candidatos brancos presentes.

“As entrevistas estavam sendo feitas individualmente, mas chamaram nós três juntos” relata. De acordo com ele, parecia que as perguntas eram feitas para reprovar. Matheus relata que questionaram se ele tinha interesse de fazer faculdade. Ele respondeu que sim. O recrutador disse, então, que Matheus não poderia ficar com a vaga porque seria difícil conciliar trabalho e estudo. “Ele colocava barreiras para não nos chamar.”

Em outras ocasiões, a aparência foi questionada. “Já perguntaram se eu podia cortar meu cabelo ou fazer outra coisa, porque não era perfil do lugar, mas não me sinto bem com o cabelo cortado ou de outra forma”, conta. Mesmo que cedesse à pressão, Matheus sabe que a experiência naquele ambiente não seria agradável.

“Eu não me sentiria bem trabalhando em um lugar que não me aceita. Eu não aceito que me desrespeitem, então, não daria certo.” Depois de concluir o ensino médio, Matheus trabalhou, por um ano e quatro meses, como aprendiz num órgão público por intermédio do programa Jovem Candango do Governo do Distrito Federal (GDF).

A experiência, porém, não tem sido suficiente nas seleções: muitas vezes, até se interessam pelo currículo, mas, quando o veem pessoalmente, recrutadores mudam de atitude. “Na entrevista, as pessoas já me olham de cima a baixo. Não só por ser negro, mas também por ser uma pessoa LGBTQI+ e afeminada”, revela.

“As empresas ficam pregando isso de que somos todos iguais, mas, na hora de fazer uma entrevista, colocam os candidatos brancos em primeiro lugar, mesmo que essa pessoa não seja a mais qualificada”, opina. Apesar das negativas em mais de 70 seleções, Matheus diz que desistir não é uma opção.

Em agosto, a avó dele, que detinha a renda principal da família, faleceu. Ainda moram com Matheus uma tia, três primas, dois irmãos e o pai, o único com renda fixa. Durante a pandemia, o jovem conseguiu o auxílio emergencial, posteriormente cancelado. Matheus tem feito bicos, por exemplo, de entrega de panfletos. Ele estuda para conseguir uma bolsa no curso de design de moda.

Voz do quilombo

"Se você tem a pele negra, o cabelo crespo e vem de um quilombo, o preconceito é triplicado" Lucilene dos Santos Rosa, quilombola e coordenadora do Programa Parlamento Jovem na Câmara Municipal de Goiânia
"Se você tem a pele negra, o cabelo crespo e vem de um quilombo, o preconceito é triplicado" Lucilene dos Santos Rosa, quilombola e coordenadora do Programa Parlamento Jovem na Câmara Municipal de Goiânia (foto: Arquivo Pessoal)

Os membros das comunidades quilombolas remanescentes no país enfrentam dificuldades para se inserir no mercado de trabalho, mesmo quando buscaram estudar e construir um currículo exemplar. Somente nos municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás, vivem 1.355 famílias kalungas, de acordo com o cadastro da Associação Quilombo Kalunga (AQK). Considerando-se grupo familiares ainda não cadastrados, estima-se que o número passe de 1.500.

Quilombola nascida em Cavalcante, Lucilene dos Santos Rosa, 38 anos, deixou de morar na comunidade Kalunga há 20 anos para estudar. Segundo ela, há milhares de kalungas espalhados pelo país pela mesma razão. “Temos de sair para trabalhar e estudar”, diz. Em Goiânia, ela concluiu o ensino médio e ganhou bolsa de 50% para fazer faculdade de turismo.

“Quando saí de Cavalcante, entendi o que é ser quilombola. Se você tem a pele negra, o cabelo crespo e vem de um quilombo, o preconceito é triplicado”, revela. Para manter a si mesma e os estudos, foi empregada doméstica e trabalhou em diversos estabelecimentos, incluindo panificadora, lanchonete em praça de alimentação e loja de roupas.

Foi com muito esforço que chegou onde está: Lucilene é pós-graduada em história da cultura afro-brasileira pela Universidade Estadual de Goiás (UEG), trabalha como coordenadora do Programa Parlamento Jovem na Câmara Municipal de Goiânia, é embaixadora do projeto Goianas na Urna e dona da loja de roupas Nega Kalunga.

Apesar da vida na região metropolitana, ela nunca se afastou do quilombo. “À medida que você vai adquirindo conhecimento e descobrindo a história não contada, dá mais vontade de voltar e ajudar os seus. Eu vivo movida por isso”, relata.

Por alguns anos, a quilombola trabalhou como gerente de comunidades tradicionais e projetos da Secretaria de Estado de Desenvolvimento Social (Seds) do Goiás. Nessa experiência, pôde conhecer quilombos de cerca de 40 municípios e conversar com mulheres sobre a autoestima delas.

“Nós já nos deparamos com meninas adoecidas pelo racismo”, diz. “Quando a mulher começa a se aceitar, ela não permite esse adoecimento mental.” A vida de Lucilene foi marcada pelo racismo. Ela viveu o preconceito ao não ser reconhecida como representante do Estado em diversas ocasiões. “Tive situações de ser barrada ou ignorada na hora que ia registar a presença em eventos”, conta.

“São casos que me marcaram muito. Em determinados lugares, antes de entrar, eu imagino como serei tratada e invisibilizada. Isso me dói”, desabafa. Apesar do currículo e da competência, a quilombola tem receio de não conseguir uma nova colocação quando encerrar o atual contrato, pois ocupa cargo comissionado. “A partir de dezembro, estarei desempregada. Daí, vem a questão da idade, da pele e várias situações que não nos favorecem para conseguir uma vaga facilmente”, revela.

Três perguntas para

Orkut Büyükkökten, turco, engenheiro de software pela Universidade Stanford, fundador da antiga rede social Orkut e CEO da Hello Network, rede social que aproxima pessoas com paixões em comum

.
. (foto: Hello Network/Divulgação)

O que as empresas brasileiras perdem por não investir na diversidade?
Elas perdem uma grande vantagem competitiva no cenário internacional. Empresas que não são diversificadas têm menos engajamento dos colaboradores e são menos criativas, produtivas e relacionáveis. Uma força de trabalho que tem diferentes culturas e até mesmo pode falar idiomas diferentes faz com que a conquista de uma base de clientes mais amplos e globais seja mais fácil. Estatisticamente, as empresas mais diversificadas são também mais bem-sucedidas. A diversidade cria equipes inovadoras que são melhores em pensar fora da caixa e criar novos produtos. Além disso, os colaboradores se sentem respeitados, incluídos, mais felizes e produtivos em um ambiente diversificado.

O racismo ainda é um grande problema no Brasil e há grandes lideranças organizacionais que dizem que “é muito difícil contratar negros”. O que é necessário para os líderes empresariais mudarem essa visão?
É importante que as empresas criem programas de diversidade e inclusão e treinem as equipes para combater o viés inconsciente. As lideranças querem produtos melhores e inovadores, novos talentos, maior produtividade e crescimento da receita, por isso, mostrar dados históricos e atuais sobre como a diversidade ajuda as empresas a atingir todos esses objetivos poderia mudar essa visão. Também ajudaria a disponibilizar publicamente os dados sobre diversidade das empresas, o que mostraria ao público quais negócios estão sendo inclusivos e diversificados. Isso afetará a reputação e aceitação da marca no mercado.

Quais são os principais passos para uma empresa se tornar verdadeiramente inclusiva e diversificada?
É preciso fomentar uma cultura aberta a pessoas com diferentes origens, experiências e pontos de vista. As pessoas contratadas precisam saber que são respeitadas independentemente de suas diferenças e que suas vozes são ouvidas. Precisamos de justiça nas regras de promoção e das mesmas oportunidades de crescimento para todos. Diversidade não é apenas contratação, mas também aceitação e capacitação. Essa é a verdadeira inclusão.

Posicione-se contra a discriminação

"O que nós temos é uma atitude social do país como um todo. Quase ninguém fala abertamente ou aponta o dedo. Você percebe o racismo nas sinuosidades, nas rotinas, nas vivências" José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares
"O que nós temos é uma atitude social do país como um todo. Quase ninguém fala abertamente ou aponta o dedo. Você percebe o racismo nas sinuosidades, nas rotinas, nas vivências" José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares (foto: Universidade Zumbi dos Palmares/Divulgação)

Ativista da igualdade racial e reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, José Vicente nasceu em Marília (SP) e, antes de realizar o sonho de abrir uma faculdade com foco na inclusão de negros, ocupou uma variedade de funções, como vendedor de biscoito, boia-fria, funcionário de ferro-velho e de um açougue.

Depois de se formar em direito, advogou e foi delegado. Ao longo da vida, enfrentou situações de racismo e, ainda hoje, percebe a discriminação. “Quando passo por isso, vem a constatação: olha, ele (o racismo) continua aí. A minha postura sempre foi a mesma: ignorá-lo e não o considerar uma coisa de valor”, conta.

“Se tantos talentos negros de diversas áreas fossem se limitar por causa do racismo, eles não teriam se transformado no que são. Quando você tem habilidade, você tem de ir e derrubar o muro”, afirma. Passar por cima da discriminação não quer dizer se calar ou se omitir.

Caso perceba uma situação ou posicionamento racista, criar atrito não é necessariamente a solução, mas é preciso se posicionar. “A pessoa deve demonstrar que aquilo não está agradando, que a atitude de mal gosto e preconceituosa foi entendida para que os outros não tenham dúvida de que aquilo é inadequado”, orienta José Vicente.

Em geral, o professor acredita que o racismo tende a não ser mais escancarado no mercado de trabalho como já foi. “O que nós temos é uma atitude social do país como um todo. Quase ninguém fala abertamente ou aponta o dedo. Você percebe o racismo nas sinuosidades, nas rotinas, nas vivências”, avalia José Vicente.


Inclusão corporativa

A Universidade Zumbi dos Palmares foi criada há quase 16 anos, voltada para a qualificação, a inclusão e o protagonismo negro. Metade das vagas do vestibular é reservada para afrodescendentes. Hoje, a instituição tem parceria com 20 empresas que facilitam a inserção empregatícia dos alunos e veem o valor de agir para que mais negros entrem em seus quadros, realidade bem distinta da de várias outras companhias.

“A parceria é uma ação determinante para garantir a manutenção e a inclusão desse público no sistema educacional e servir como a ponte que os leva ao mercado de trabalho”, diz o reitor José Vicente. Para que uma empresa possa se tornar de fato inclusiva, o professor observa que o primeiro passo é a disposição honesta de aumentar a diversidade, que deve começar no topo.

Os caminhos para tornar isso realidade podem ser os mais variados e adaptados à realidade da organização. O importante é que a inclusão não fique apenas no discurso. “O fato é que precisa ser uma ação objetiva, concreta, com cronograma pensando em longo prazo e que possa ser monitorada, medida e validada”, diz o educador. Há empresas que trabalham com cotas, enquanto outras estabelecem metas.

Por ambientes acolhedores

"A promoção da igualdade racial não passa exclusivamente por contratar profissionais negros, mas por garantir também que tenha uma mudança de ambiente para que ele seja acolhedor" Aline Nascimento, analista sênior de treinamentos e ações afirmativas do Instituto Identidades do Brasil
"A promoção da igualdade racial não passa exclusivamente por contratar profissionais negros, mas por garantir também que tenha uma mudança de ambiente para que ele seja acolhedor" Aline Nascimento, analista sênior de treinamentos e ações afirmativas do Instituto Identidades do Brasil (foto: Arquivo Pessoal)

Na busca pela redução das desigualdades raciais no mercado, o Instituto Identidades do Brasil (ID_BR) trabalha a fim de promover políticas de ações afirmativas nas empresas. O Instituto auxilia as companhias no processo de inclusão racial, que vai desde treinamentos com as lideranças e equipes de recrutamento até a conscientização da sociedade.

Para Aline Nascimento, analista sênior de treinamentos e ações afirmativas da organização, o primeiro passo é o autoconhecimento institucional. Portanto, as empresas devem passar por um processo de identificação dos problemas internos que impedem a diversidade.

Só contratar pretos e pardos não adianta. “A promoção da igualdade racial não passa exclusivamente por selecionar profissionais negros, mas por garantir também que ocorra uma mudança de ambiente que o torne acolhedor”, diz Aline.

“Não queremos que os profissionais vivam o racismo recreativo, que são as ‘brincadeiras’ de mau gosto voltadas para ações discriminatórias e preconceituosas”, afirma a historiadora e mestre em relações étnico-raciais na área de políticas públicas.

Outro problema a ser combatido é a estagnação profissional. “Se você perceber que tem um colaborador negro que faz a mesma atividade há muito tempo, é importante elaborar uma pesquisa e entender como está o processo de avaliação para também conseguir estabelecer atividades de mentoria”, aconselha.

“Não dizemos que todos os profissionais negros são excelentes por essência, assim como os brancos também não são. Mas que um bom profissional perpassa por um bom ambiente”, ensina.

Recentemente, após a cofundadora do Nubank, Cristina Junqueira, usar o termo “nivelar por baixo” ao falar sobre uma possível política afirmativa para candidatos negros, o banco pediu desculpas e se comprometeu a construir “ações concretas e ambiciosas de transformação na área de diversidade racial”.

Para isso, foi firmada uma parceria com o ID_BR, que acompanhará e auxiliará o processo. A organização também está por trás também de diversos movimentos de inclusão ocorrendo em empresas, como Magazine Luiza, Unilever e Johnson & Johnson.

“Nós temos uma sociedade que está mudando e cobrando mais. As empresas precisam olhar minimamente essas mudanças para poder garantir os valores para além do lucro”, afirma.

PALAVRA DE ESPECIALISTA »

O branco na luta antirracista

Cris Kerr, CEO da consultoria CKZ Diversidade, professora de diversidade e inclusão da Fundação Dom Cabral, mestre em sustentabilidade pela Fundação Getulio Vargas (FGV)

.
. (foto: CKZ Diversidade/Divulgação)

“Existe o viés inconsciente e é muito importante toda pessoa tomar consciência dos seus vieses por meio de treinamento. Às vezes, a pessoa vem para um treinamento de diversidade e inclusão até forçada e com raiva e, durante a reunião, se conscientiza e se espanta, pois não tinha noção deles. Se ela não entender isso, não conseguirá mudar.

O nosso cérebro busca os iguais. Muitas empresas são formadas majoritariamente por brancos. Se eu sou branco, eu vou buscar outro branco, a não ser que eu seja conscientizado e vá buscar ativamente o diferente. Eu estou ciente dos privilégios que tenho na sociedade por ser branca.

Muitas vezes, a desculpa das pessoas para ser contra ações afirmativas para negros, por desconhecimento, é esta: o branco pobre também passa dificuldades. No entanto, o branco, mesmo com baixa condição financeira, terá mais abertura que uma pessoa negra no mercado de trabalho e em outros contextos.

Uma vez, numa reunião de um comitê de diversidade, usaram o termo privilégio branco. Uma das participantes me perguntou: você alguma vez ensinou ao seu filho que ele não podia correr na rua? A minha resposta era não. E ela me respondeu: pois eu ensino isso para meu filho desde pequeno porque, se tem um assalto e ele está correndo, o primeiro a ser parado será ele.

Do mesmo modo, nunca me pediram para mudar o meu cabelo ou minha roupa, mas isso ocorre frequentemente com pessoas negras. A pessoa não pode mudar a identidade dela. E qual o papel das pessoas brancas para mudar essa realidade? As pessoas brancas podem ser antirracistas ativas, ou seja, devem atuar nesse sentido.

O que significa contratar pessoas negras para seus times; ser mentor de pessoas negras; auxiliar com aulas de inglês; participar do grupo de afinidade racial da empresa para ampliar a rede de contato com pessoas negras; procurar ler livros e ver filmes com protagonistas negros; e, ao ouvir uma ‘piada’ ou ‘brincadeira’ racista, agir imediatamente contra isso, usando comunicação não violenta, isto é, trazendo consciência sem agressividade.”


*Estagiária sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa

Os comentários não representam a opinião do jornal e são de responsabilidade do autor. As mensagens estão sujeitas a moderação prévia antes da publicação