O Dia Nacional da Consciência Negra foi tema do CB.Poder — parceria entre o Correio e a TV Brasília — de ontem. Às jornalistas Mariana Niederaurer e Rosane Garcia, a diretora da Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e relatora do sistema de cotas, Dione Moura, destacou que o fato de a data ser um feriado nacional pela primeira vez incentiva as pessoas a refletirem e se perguntarem: "Como podemos incluir mais?". Dione também falou sobre a importância do pioneiro sistema de cotas implantado há 20 anos pela UnB, que "transformou a educação brasileira", e como ele tem ajudado a aumentar a diversidade dentro da universidade. Confira a íntegra da entrevista.
Neste 20 de novembro, pela primeira vez, o Dia da Consciência Negra é feriado nacional. Por que isso é importante?
É importante porque trata-se de uma consciência que ainda não alcançamos. No sentido de entender qual é a importância da população negra no Brasil e na história da humanidade. Ainda não percebemos isso como sociedade brasileira, nem como sociedade mundial.
Este dia, no caso do Brasil, é um momento para refletir: o que fazemos com a população negra? Como tratamos a população negra na escola, no trabalho, na rua, nas questões urbanas, nas políticas de inclusão? É um dia para parar e pensar. Consciência é uma palavra muito bonita. Toda solução vem da consciência, todo progresso vem da consciência. Não há avanço na história sem ela.
Se queremos uma sociedade melhor, creio que todos desejamos uma sociedade mais justa para todos, inclusive, para a população negra. Precisamos desse dia de reflexão, de parar para pensar e perguntar: como podemos incluir mais? É um momento muito importante e ser feriado também é significativo. Isso permite realizar uma atividade cultural, assistir a um filme, ir a uma exposição, conversar com amigos, família, filhos, netos, companheiros, colegas de trabalho. É uma pausa para refletir de forma mais intensa e com mais propósito.
A senhora foi relatora do sistema de cotas da UnB, um sistema pioneiro entre as universidades federais. Qual é a importância hoje das cotas para o Brasil?
As cotas, o sistema de cotas para negros e o acesso de indígenas, implementado pela UnB como a primeira universidade federal a adotar essa política, transformaram o sistema educacional brasileiro. Elas removeram parte de uma barreira histórica que começou com o sequestro da população negra africana durante a expansão colonial e sua transformação em escravos.
As cotas vieram para dizer: "Olhem o quanto isso foi errado, o quanto foi um crime histórico, e precisamos reparar." É uma tentativa de devolver o que foi retirado. É como se tivéssemos tirado de alguém um milhão de direitos, de possibilidades, e nunca devolvido. As cotas são uma forma de começar a devolver, e na UnB esse processo começou com 20%.
No início, houve muita resistência. A comunidade, a opinião pública, não entendia nem reconhecia a importância desse processo. Mas, com o tempo, a consciência foi sendo construída. Hoje, embora ainda existam críticas pontuais, a maioria das pessoas compreende a necessidade de políticas públicas como as cotas.
No caso das universidades públicas, especialmente a UnB, os resultados desses 20 anos são claros. A UnB subiu em todos os rankings nacionais e internacionais. Caiu por terra o argumento de que as cotas diminuiriam a qualidade do ensino. Na época, perguntavam: "Os estudantes negros vão baixar a qualidade da UnB?" A resposta foi não. Sou professora negra, cheguei aqui e não baixei a qualidade da universidade. Da mesma forma, os estudantes negros e indígenas também não baixaram.
Na verdade, o que aconteceu foi o oposto. A diversidade de visões e experiências trouxe novas perspectivas para os problemas que a universidade enfrenta, e isso enriqueceu o ambiente acadêmico. Os índices da UnB subiram porque, além das políticas de cotas, houve um planejamento estratégico e uma gestão alinhada com esses princípios de inclusão.
Assim, nesses 20 anos de cotas, a UnB só melhorou. E isso reforça a importância de termos um dia como o Dia da Consciência Negra, um momento para celebrar conquistas e continuar refletindo sobre os caminhos para uma sociedade mais justa e igualitária.
A primeira tentativa de reparação do Estado ao povo negro é a Lei 10.639 (tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira em todas as escolas do Brasil), que não é aplicada em todo o país. A que a senhora atribui isso?
Nas escolas públicas, a gente percebe que a Lei 10.639, desde o ensino fundamental até o ensino médio, é muito aplicada. Temos escolas e, principalmente, professoras, que merecem o mérito, de ensino básico, fundamental e médio, que se dedicam à aplicação da lei. Elas trabalham com a história da África e promovem o respeito às religiões de origem e matriz africana. Contudo, em muitas redes de escolas particulares esse tema não é plenamente incorporado.
Mas é uma questão de tempo. Agora, com a criação de um dia nacional, as escolas terão que incorporar esse tema no calendário de atividades. Ter um feriado é, por si só, uma ação afirmativa. É como dizer: "Vocês precisam pensar sobre isso". Está no calendário, vai entrar na escola. Em breve, esses temas estarão mais presentes no Enem, no PAS, nos vestibulares e no Sisu. As escolas não vão querer que seus estudantes fiquem defasados nesses conteúdos.
Esse é um processo histórico. É importante lembrar que só a escravidão no Brasil durou, em média, 340 anos, com variações entre os estados quanto à abolição. Tivemos mais tempo de escravidão do que de liberdade. Temos apenas 20 anos de cotas e pouco mais de um século de abolição. É necessário compreender esse contexto histórico. Não significa ter paciência diante da discriminação, mas entender que estamos lidando com séculos de atraso que precisam ser superados com ações consistentes.
Cada um tem um papel nesse processo. Eu, como pesquisadora, professora e representante da universidade, tenho minhas responsabilidades. Vocês, como jornalistas, têm as de vocês. O veículo de comunicação têm um papel relevante também. Todos precisamos somar esforços para que nos próximos Dias da Consciência Negra possamos celebrar avanços ainda mais significativos.
Confira a íntegra da entrevista
*Estagiário sob a supervisão de Eduardo Pinho