Com apenas 8 anos de idade, a mineira Neuza Nascimento teve o primeiro emprego: cuidar de uma criança que era maior do que ela. Aos serviços domésticos, ela dedicou 42 anos, e a escola acabou sendo abandonada. O roteiro da história de Neuza poderia ser só esse. Porém, contrariando as expectativas, Neuza se tornou escritora. O primeiro livro dela, De Saracuruna a Copacabana, está prestes a ser lançado, após conseguir os recursos por meio de uma vaquinha on-line. A publicação reúne histórias ficcionais, mas baseadas no que ela já viu ao longo dos seus 62 anos sobre o cotidiano carioca. A maior parte dos contos foi escrita no trem, voltando das faxinas, e está guardada há 20 anos. “Tem um pouco da minha vivência, não tem como não colocar pelo menos 1%. Não tem como inventar tudo”, garante.
O amor pela escrita ela não sabe nem de onde veio, nasceu com ela. Neuza conta que gostava de escrever cartas para o namorado. Foi ele o primeiro a elogiar sua escrita. "Você escreve como se estivesse contando uma história. Você é uma escritora", disse ele, certa vez. Mas foi em uma oficina de escrita, há quase 20 anos, que ela descobriu que podia escrever contos e crônicas com muita facilidade. O projeto fazia parte da ONG Centro Integrado de Apoio às Crianças e Adolescentes da Comunidade (CIACAC), fundada por ela no início dos anos 2000, para aumentar o acesso à cultura de jovens da favela Parque Jardim Beira Mar. A instituição já impactou mais de 3 mil crianças.
Na oficina, o talento dela chamou a atenção de um escritor voluntário no projeto, João Vaz, que acabou conseguindo uma bolsa para Neuza no Instituto Estação das Letras, em um curso de contos. Para poder participar das aulas, ela teve que deixar um dia que passava roupas. “Na época, meu filho tinha uns 12 anos e ele disse que a gente ia morrer de fome, mas eu resolvi ir. Lá era todo mundo branco. Tinha que produzir um conto por semana, eu tinha faxina, tinha casa para cuidar, e eu só pensava que eu tinha que dar valor ao curso”, conta.
Caminho difícil
Apesar do talento nato, desenvolvê-lo não foi tão fácil. Neuza lembra que uma vez levou um texto seu para que sua patroa, uma jornalista, pudesse opinar. A mulher sequer se deu ao trabalho de ler. “Uma semana depois, voltei, ansiosa, e ela não falou nada. Eu então perguntei se ela tinha lido e ela disse que não tinha conseguido passar da segunda linha. Ela me disse, 'vai fazer sua faxina, cuidar dos seus filhos'. Ela achava que porque eu era empregada eu não podia escrever. E isso me paralisou por três anos.”
Neuza também se recorda de uma outra patroa que sempre dizia que ela era muito inteligente. Então, um dia, a jovem Neuza, aos 14 anos, pediu para fazer um curso de datilografia. “Eu dizia que queria ser secretária, mas na verdade eu queria era escrever." Em resposta, a patroa disse que, se ela quisesse, pagaria um curso de corte e costura. “Era como se eu só pudesse ser costureira”, recorda. Em uma das casas em que trabalhou, Neuza lembra que tinha uma grande estante de livros que ela gostava de aproveitar para ler. Um dia, ela levantou à noite e foi até a estante, mas no caminho se deparou com a patroa e ela a mandou voltar para a cama, porque o marido não gostava que Neuza circulasse pela casa.
Abandono escolar
Em um Brasil que não tinha nenhuma regulação sobre o trabalho de domésticas e onde o trabalho infantil era muito naturalizado, Neuza acabou deixando a escola muito cedo. Só terminou os estudos aos 40 anos. Hoje, aos 62, cursa a faculdade de jornalismo. “Por uma questão de honra, eu terminei o primeiro grau e, depois, o segundo”, destaca.
Em meio aos mais de 40 anos trabalhando em casas de família, Neuza sofreu todo tipo de humilhação. No primeiro emprego, ela sequer era paga. Depois, lembra que foi para casa de uma família no Rio de Janeiro aliciada por uma pessoa que dizia que ela poderia estudar e que teria melhores condições de vida. Após a morte da mãe, ela foi morar com a irmã na favela de Cordovil, na Zona Norte do Rio, e trabalhar em outro lugar.
“Nessa casa, eu lembro que ela comprava um quilo de carne moída e guardava tudo. Para mim, ela dava arroz, feijão e banana d'água. Às vezes, ovo frito, ovo podre. Hoje, tenho pavor de ovo. Eu não entendo porque ela fazia isso. O meu quarto mal me cabia”, lembra. Neuza ainda recorda que a dona da casa chegou a dizer que ela seria como uma filha de criação para ela. Mas, quando se arrumou para ir à escola, percebeu que não seria bem assim. “A patroa me chamou e perguntou para onde eu ia. Respondi que ia para a escola. Daí ela falou: 'Está bem, mas você entra e sai pela porta de serviço'”, lembra.
Na avaliação dela, tudo o que passou é um reflexo de uma sociedade marcada pelo racismo. "É uma questão de desqualificação. É aquele olhar quando me vê, sou preta, moradora de favela, velha, já pensa que não tenho condições de escrever", afirma. “Eu penso que são pessoas frustradas que se aproveitam do poder que acham que têm. Às vezes, não tem nada a ver com o dinheiro. Hoje, com a cabeça que eu tenho, a impressão é que elas queriam reproduzir a senzala e a Casa Grande. Se acham poderosas porque são brancas”, destaca. É tanta história, que ela diz que daria um livro. "Vou escrever ainda", garante.
Hoje, Neuza é colunista fixa do site Lupa do Bem, onde conta histórias, semanalmente, sobre projetos sociais de sucesso. Além disso, está no terceiro período da faculdade de jornalismo na Estácio de Sá.