O fazer científico e a política andam lado a lado, especialmente em momentos de descrédito e negacionismo. Desde os tempos da ditadura, as universidades tiveram papel estratégico. Nelas conviviam e trabalhavam uma grande quantidade de professores e estudantes que se opunham ao golpe de 1964, e que para além de produzirem conhecimento científico, buscavam juntos formas de desafiar a situação posta.
Hoje, em tempos democráticos, esses espaços de saber seguem sendo extremamente estratégicos para a ampliação dos debates e a conquista e manutenção de direitos. Em outubro, o Brasil viverá uma eleição diferente das anteriores, e desde já as universidades ampliam espaços de troca para o fortalecimento da democracia.
É o caso do evento que tem início neste domingo (24/7), na Universidade de Brasília (UnB). A 74° reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) tem como tema Ciência, Independência e Soberania Nacional, já que 2022 marca o bicentenário da Independência do Brasil, o centenário da Semana de Arte Moderna e as celebrações dos 60 anos da Universidade de Brasília.
No contexto atual, os painéis giram em torno de como a ciência e a democracia têm sido colocadas em xeque no país. Destaca-se o enxugamento e os cortes bilionários de verbas para ensino e pesquisa e os constantes ataques ao sistema eleitoral brasileiro. Na visão de muitos participantes da SBPC, o atual governo se comporta como inimigo da educação e contribui para um retrocesso nas conquistas educacionais e científicas do país.
O presidente da Sociedade, Renato Janine Ribeiro, e ex-ministro da Educação, reafirma o compromisso da SBPC com o fortalecimento da democracia brasileira, especialmente por meio das universidades.
"Para nós, a prioridade desta edição da SBPC é a democracia. Nós da SBPC somos o braço político da ciência brasileira. Cabe a nós defender essa situação preocupante que o Brasil está passando. Como vamos lidar com a defesa da democracia, recuperar a inclusão social, as diferenças, então temos que fazer tudo isso. Isso não é simples, mas é o que nos cabe fazer e a SBPC está lutando por isso", enfatiza.
O pesquisador e professor do Departamento de Física Aplicada da Universidade de São Paulo (USP) Paulo Artaxo, que participará de um painel no encontro, reforça que a universidade tem papel fundamental em pensar para onde o país vai caminhar. Para ele, o grande desafio na atualidade será a reconstrução de uma série de ferramentas fundamentais.
"A universidade tem que pensar no futuro do nosso país, na estratégia de que país a gente quer construir. Nós temos de passar agora para uma etapa em que a gente sai de um período onde houve uma destruição da legislação ambiental, das instituições de pesquisa para um período novo de reconstrução dessas questões. E para isso a SBPC vai ter um papel muito fundamental na reconstrução do país a partir do próximo governo."
Todo esse processo carece de espaços de troca de ideias. No entanto, o professor da pós-graduação em Educação Física e Epidemiologia da Universidade Federal de Pelotas (Ufpel) e coordenador do maior estudo sobre a covid-19 já aplicado no Brasil, o Epicovid-19, Pedro Hallal, nota dois sintomas decorrentes dos sucessivos ataques à ciência, vistos nos últimos anos.
"A combinação da dificuldade financeira vinda dos cortes com uma postura anticiência tornam o momento da ciência brasileira bastante complicado. E isso aparece muito em dois indicadores: o primeiro é a quantidade de pesquisadores e pesquisadoras brasileiras indo embora do Brasil, a chamada fuga de cérebros. Em segundo, o movimento de auto censura. Os pesquisadores ao notarem que outros colegas quando manifestam suas opiniões, quando publicam são atacados, são perseguidos, são censurados, os colegas se autocensuram, e aí eles algumas manifestações científicas, algumas pesquisas científicas eles acabam nem fazendo", denuncia.
Segundo Hallal, as universidades estão "silenciadas e silenciosas". Para ele, os espaços de ensino deveriam estar mais mobilizados para as discussões sobre o momento do país. "Não é discussão político partidária. É discussão de projeto de país. As universidades deveriam estar liderando grandes debates e eventos importantes sobre o futuro da ciência e tecnologia, sobre o futuro da educação brasileira, sobre os cortes de verba", aponta. Hallal conta que sofreu inúmeras retaliações por sua atuação, e que sente que há medo dos colegas em relação a isso. "Mas, infelizmente, não é o silêncio que vai nos salvar. Nos momentos em que uma sociedade é atacada, não é o silêncio que a salva."
Atuação na pandemia
As universidades federais tiveram um papel essencial no enfrentamento da pandemia de covid-19, mesmo com os sucessivos cortes orçamentários e ataques. A mobilização das universidades públicas, cientistas, professores e todo o corpo acadêmico foi fundamental no período mais letal do combate ao vírus. A ciência passou a ser reconhecida como força motriz e ativa na defesa da cidadania.
"As Universidades tiveram esforços para pesquisar uma vacina brasileira, a UFMG de Minas Gerais teve papel muito importante mas nós sabemos que o governo não investiu nisso. Nós perdemos a chance de salvar mais vidas, poupar dinheiro, dar de graça para países pobres. O Brasil poderia ter mandado vacinas para países pobres, mas por erros do governo isso não aconteceu. O Brasil se isolou. Sem dúvida as universidades poderiam ter tido mais atuação se o governo não tivesse cortado as verbas da educação. Elas não tiveram muito esse apoio, mas fizeram o que puderam", disse Renato Janine.
Na visão de Paulo Artaxo, a pandemia mostrou que a visão negacionista não é compartilhada pela sociedade brasileira como um todo.
"A sociedade brasileira valoriza muito a ciência. Eu acho que a questão da pandemia e de muitos outros aspectos são uma demonstração clara de que a visão negativa da ciência que o atual governo brasileiro tem não é compartilhada. O que precisamos é resgatar o papel da ciência no desenho de uma nova sociedade brasileira mais justa, mais igualitária, mais democrática e mais sustentável. Eu acho que os debates da SBPC vão mostrar várias tendências muito proveitosas nesta direção, que vão contribuir para o programa de governo de vários partidos políticos para as eleições deste ano", afirmou Artaxo.
Hallal defende que não há maneira de se realizar uma discussão sobre o futuro da ciência no Brasil sem falar-se das políticas públicas e recursos para a tecnologia no Brasil. "Notadamente, temos um projeto que não valoriza ciência, que não valoriza as universidades, porque não valoriza a educação, que é o projeto de continuação do governo atual. Não dá para fazer essa discussão como se ela fosse separada da discussão política. Ela não é. O grande desafio para o futuro da ciência e tecnologia do Brasil é tirar o governo atual. Enquanto o governo atual não sair a ciência e tecnologia do Brasil não vão avançar", frisou.
*Estagiária sob a supervisão de Michel Medeiros - especial para o Correio