Primeira mulher a ocupar a reitoria da Universidade de Brasília (UnB), a geóloga Márcia Abrahão anfitrionará a 74ª edição da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em meio a maior crise vivida pelas instituições públicas de ensino superior do país. Em entrevista exclusiva ao Correio, ela fala sobre o evento — que começa neste domingo (24) e prossegue até 30 de julho —, suas expectativas para os grandes debates e também sobre as dificuldades impostas pela crise política, que atingirão, diretamente, estudantes em vulnerabilidade socioeconômica. “Ter a SBPC aqui, nesses 60 anos da UnB, num momento de período eleitoral e em que temos sido atacados pela nossa própria sobrevivência, é muito importante. Tenho certeza de que teremos debates de altíssimo nível, afirma. E garante que, mesmo em meio à crise histórica, a UnB não vai esmorecer. “Até como forma de resistência, não paramos e não vamos parar. Em nenhum setor”, afirma. Abrahão detalha, ainda, o processo de investimento em segurança nos câmpus da instituição, com a ampliação das redes de monitoramento e, ainda, sobre a possibilidade de ampliação da oferta de cursos. “No momento, estamos numa situação dramática de sobrevivência. Esperamos ter condições, em breve, de poder ampliar mais os cursos de graduação”, diz.
Quais serão os destaques desta edição e o que representa para UnB, aos 60 anos, sediar pela quarta vez uma reunião da SBPC?
É um orgulho para mim, como a primeira reitora mulher da UnB, nos 60 anos da instituição, nos 200 anos da independência e num ano de eleições presidenciais e gerais. Certamente será uma reunião muito produtiva, com muita participação. É um momento importante, por se tratar da maior reunião da América Latina que envolve professores, pesquisadores e estudantes para discutir a ciência, não só em termos de dados acadêmicos, mas também a política científica nacional. É uma grande expectativa da nossa comunidade e estamos organizando todo o evento com muito carinho.
Todos os candidatos à presidência foram convidados. Qual a expectativa para esses debates?
Ainda não temos essas confirmações, mas alguns estão dando indicação de que poderão vir mas, se confirmarem, acredito que será entre os dias 27 e 29. A agenda deles é muito cheia.
Que contribuição a SBPC pode dar nesse processo de danos à democracia em curso no país?
As reuniões anuais da SBPC são espaços de grandes debates dos grandes temas da sociedade e da ciência. A Universidade de Brasília, nos seus 60 anos, é uma instituição que foi criada sob a bandeira da democracia, da liberdade de cátedra e dos direitos democráticos da sociedade. É uma universidade que sofreu muito durante a ditadura. Ter a SBPC aqui, nesses 60 anos da UnB, num momento de período eleitoral e em que temos sido atacados pela nossa própria sobrevivência, é muito importante. Tenho certeza de que teremos debates de altíssimo nível, tanto políticos, mas também sobre a política científica que a gente espera para o futuro do país.
O tema desta edição é Ciência, Independência e Soberania Nacional. O que se pode esperar desses debates na atual conjuntura política?
Esse é um tema muito feliz, no momento em que temos tido a redução do orçamento das universidades. Estamos hoje, inclusive, com essa expectativa de mais um corte, mais um bloqueio orçamentário de R$ 8 bilhões. Não sabemos onde ainda. Provavelmente vai vir para a educação, a ciência e a tecnologia novamente, num momento em que alguns projetos de lei chegam ao Congresso Nacional para reduzir a autonomia das universidades, inclusive a eleição de reitores. Tem projeto acabando com a eleição de reitores, além de tudo que já tem acontecido. O financiamento da ciência está muito aquém das necessidades. A pandemia mostrou, claramente, a importância das universidades, da ciência desenvolvida no país. Então, é um tema que tem totalmente a ver com o momento que estamos vivendo. Nenhum país consegue ter soberania se não tiver uma educação forte, uma educação superior e uma ciência e tecnologia igualmente fortes. Em qualquer lugar do mundo, o financiamento principal da educação superior é feito pelos governos.
Esses cortes orçamentários estão afetando o funcionamento da UnB?
Afeta o planejamento que fizemos desde o início do ano. Agora estamos numa fase em que precisamos repassar mais recursos para os institutos e faculdades, mas tivemos esse anúncio de que poderá haver novo bloqueio. Então, seguramos para ver o que vai acontecer daqui pra frente. Neste momento, estamos funcionando com todas as contas em dia, mas não podemos, por exemplo, ampliar o apoio aos estudantes com vulnerabilidade socioeconômica. Ainda bem que neste ano contamos com emenda parlamentar nesse sentido. Talvez isso nos dê um fôlego, mas temos toda uma situação do empobrecimento da população. Precisaremos aumentar o apoio dos estudantes, bolsas de pesquisa, de extensão, o que não podemos fazer. Isso afeta a todos de diferentes maneiras, a partir do próprio planejamento. Precisamos, agora, planejar o aumento de despesas para o ano que vem e até mesmo até o fim do ano, mas não podemos. Estamos discutindo contratos que dependem de um orçamento que não temos.
Há possibilidade de aporte financeiros por meio de outras fontes?
A UnB é uma universidade que, de acordo com a nossa lei de criação, elaborada pelos geniais Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, que pensaram a UnB para ter arrecadação própria, de forma a não depender de governos. Isso, obviamente, é impossível. Para se ter uma ideia, 40% do que gastamos hoje vem da nossa própria arrecadação, mas o governo está cortando até esse orçamento próprio. E quando o governo corta na arrecadação própria, está limitando quanto podemos arrecadar. É meio complicado falar em orçamento porque as pessoas não entendem. A UnB tem um orçamento de arrecadação próprio, mas esse orçamento é um copo vazio que a gente recebe no início do ano, mas não temos autorização para encher esse copo. O governo está cortando, diminuindo o tamanho do copo. Com isso, mesmo se a gente arrecadar, não podemos usar. Temos, sim, outras formas de financiamento, como aluguéis. A universidade tem um patrimônio importante na cidade, tem projetos que geram recursos, mas se recebemos mais do que temos autorização não podemos usar. Então, além termos, no momento, redução do que o governo passa para gente, temos também redução do limite que podemos arrecadar. Isso vai asfixiando a universidade e também o futuro da nossa juventude.
Quais seriam os principais impactos dessa crise, além dos cortes nas bolsas de estudos?
Até como forma de resistência não paramos e não vamos parar. Em nenhum setor. A universidade não vai deixar de funcionar até o fim do ano. Poderemos ter menos bolsas para estudantes de graduação e de pós-graduação e menos recursos para investir na biblioteca. Além disso, a parte de tecnologia da informação é uma área que necessita de investimento o tempo inteiro. A gente faz, então, uma limitação. Neste ano vamos comprar uma quantidade menor de memória, e assim por diante. Ficamos, ainda, impossibilitados de aumentar contrato de vigilância e de limpeza. O que estou fazendo é manter os contratos que temos e administrando isso ao longo do ano. Mas a universidade não vai parar e não vai deixar de cumprir com as suas obrigações.
E os debates sobre questões ambientais, como serão conduzidos na reunião anual da SBPC?
Trataremos de todos os tremas relacionados à saúde global, que envolvem a relação do ser humano com o meio ambiente, o planeta, a água. Tenho certeza de que vamos sair daqui com grandes debates e apontando para o futuro do país para a grande sociedade científica brasileira.
Como os estudantes do ensino básico poderão ser inseridos nesse contexto?
Esse é um apelo especial que eu faço. Infelizmente, as escolas estão de férias, mas fizemos um trabalho todo especial nesse sentido com a Secretaria de Educação do GDF. Eu mesma me reuni com a secretária de Educação, Hélvia Paranaguá, pedindo apoio para incentivar os estudantes da escola básica para virem para a SBPC. Estamos buscando esses estudantes em alguma cidade para poder trazer não só aqui para o câmpus Darcy Ribeiro, mas também para os outros câmpus de Ceilândia, Gama e Planaltina. É muito importante a participação desses estudantes. Temos atividades para eles em todos os câmpus e esperamos muito que eles participem, pois são futuro do nosso país. É importante que eles participem dessas discussões.
E a população geral do DF, como pode aproveitar essas programações?
Temos algumas mostras, como, por exemplo, em frente a L4, onde está sendo montado um grande estante. Além disso, algumas embaixadas também vão participar, como a da França, além do Ministério da Ciência Tecnologia. Vamos ter vários eventos, tudo gratuito. É importante que as pessoas se inscrevam e, mesmo sem se inscrever, que venham participar dos eventos. A programação é extensa e está no nosso site. É muito importante que todos participem. Temos atividades para todas as idades, todos os públicos e todas as áreas de conhecimento. Teremos também muitas atividades culturais na SBPC Cultural, SBPC Jovem, para todas as idades e todos os públicos.
A SBPC Indígena é novidade nesta edição. A UnB está ampliando a inserção de populações indígenas em seus quadros. Fale um pouco sobre essa decisão.
A UnB oferece pós-graduação na área de meio ambiente e também na indígena. Estamos ampliando a quantidade de vagas para estudantes indígenas na graduação. Temos uma população indígena muito representativa.
Você coordenou o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni) entre 2008 e 2011, ampliando a oferta de cursos na UnB. Há, agora, expectativa de novos cursos e também de maior oferta de vagas?
Esse era um tempo e que o nosso grande problema era dar conta de gastar o dinheiro durante o ano. Éramos pressionados pelo Ministério da Educação. Se não gastássemos eles pegariam o dinheiro de volta. Agora, a gente fica implorando por mais dinheiro. No momento, estamos numa situação dramática de sobrevivência e de resistência. Esperamos ter condições, em breve, de poder ampliar mais os cursos de graduação. O que temos feito é ampliar nossa participação com a sociedade por meio de polos de extensão, que são atividades acadêmicas também, tanto para alunos de graduação como de pós, com a sociedade. São atividades diversas, de integração da universidade com a sociedade. Temos polos no Recanto das Emas, na Estrutural, no Paranoá e Kalunga, em Alto Paraíso, onde acabamos de inaugurar o centro UnB Cerrado, ampliando nossas atividades de pesquisas e outras atividades com a população local. Criando, ainda, cursos de pós-graduação, com vagas para indígenas. Antes, tínhamos um número restrito de vagas para indígenas. Eram 10, agora são 80. Temos um edital aberto para vestibular específico para indígena. Oferecemos, também, cursos de graduação à distância, que funcionam até no Norte do país, chegando ao Acre.
E o processo de melhorar a segurança nos câmpus, como fica? Lembrando o recente episódio de ataque a uma aluna, que culminou em um grande ato por mais segurança.
Desde que assumimos, em 2017, temos tido redução orçamentária, mas uma das áreas que priorizamos foi a segurança. Já instalamos mais de 600 câmeras. Esse episódio mesmo foi todo gravado por nossas câmeras. Entregamos, na íntegra, mais de 14 horas de filmagem para a polícia. A universidade, hoje, tem corredores com iluminação apropriada. O câmpus Darcy Ribeiro é aberto, cheio de árvores, não temos como ter iluminação em todo o câmpus, mas temos toda essa questão de segurança muito bem mapeada, com um planejamento muito bem feito. Já temos mais de 600 câmaras e estamos instalando mais equipamentos, o que impacta na redução orçamentária. Talvez não consigamos colocar todas as câmeras que planejamos neste ano. Pensávamos em mais 300, e o processo licitatório está em andamento. Duvido que alguém tenha tantas câmeras de altíssima qualidade como temos hoje em dia, a ponto de contribuirmos para o GDF reduzir a criminalidade na Asa Norte inteira. Os nossos dados são incríveis, mas refletem o período de 2018 a 2019 . Com a pandemia, obviamente, fica comprometido, pois ficamos quase dois anos com a universidade vazia. Então, os nossos dados não representam a realidade como se tivéssemos todo o câmpus funcionando. Mas vamos continuar investindo em segurança, mesmo com as limitações que temos.