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GUERRA NA UCRÂNIA

Professores denunciam à Câmara racismo na guerra na Ucrânia

Documento pede que os organismos internacionais intervenham contra as ações. O grupo pretende pensar formas de instituições de ensino desconstruírem práticas racistas

Um grupo de 67 professores de universidades e entidades do Brasil e de Portugal, Guiné Bissau, Moçambique, Angola e França protocolaram, na Câmara dos Deputados, nesta segunda-feira (11/4), uma carta em que denunciam práticas racistas durante a guerra na Ucrânia. O documento pede que os organismos internacionais intervenham contra as ações apontadas pelos pesquisadores e faz parte de um movimento do grupo para pensar formas de instituições de ensino e desconstruir práticas racistas na formação de pessoas.

A denúncia foi entregue por integrantes do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (Neab) do Centro de Estudos Avançados Multidisciplinares da Universidade de Brasília (Ceam/UnB). O professor e doutor Marcos Moreira, coordenador do Neab, afirma que a carta é resultado de um observatório feito pelo Núcleo e outros intelectuais de diversos países para observar como as questões raciais eram tratadas neste período.

O grupo se formou na segunda semana após a invasão da Ucrânia — Putin deu a ordem para as tropas russas invadirem o país ucraniano em 24 de fevereiro. O que o observatório percebeu foi que os direitos de pessoas negras e de origem asiática foram e são constantemente desrespeitados e que é o racismo que causa a inferiorização.

“Nesse conflito, foram constatadas contradições nas relações raciais, revelando inequívoco racismo com a população civil no momento em que busca se evadir da guerra”, diz um trecho do documento. Entre as ações racistas identificadas, estavam a retirada de negros e asiáticos de transportes coletivos que levavam os moradores da Ucrânia a países vizinhos para dar lugar a pessoas brancas.

Além disso, foram observadas inúmeras expressões e conotação racista na cobertura jornalística internacional sobre o conflito, como o uso de termos da aparência de brancos (“olhos azuis e cabelos loiros”) e de civilidade europeia (“não são refugiados do Oriente Médio ou do norte da África”) como justificativa para definir o conflito como um dos mais cruéis dos últimos tempos.

“Coletamos os casos e reunimos na carta, onde também colocamos nosso descontentamento com a questão racial e a postura colonizadora da Europa e dos veículos de comunicação europeus nesse conflito”, afirmou Marcos Moreira.

De acordo com o doutor Marcos Moreira, o documento foi entregue no gabinete da deputada Benedita da Silva (PT-RJ), que se comprometeu a “movimentar a Câmara e o Senador com palestras e debates junto com a UnB sobre o tema”.

A carta também foi enviada para o senador Paulo Paim (PT-RS), da Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal, além de ser responsável pela criação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288/10).

Entre os integrantes do grupo que assinaram o documento, estão Elisa Larkin Nascimento, viúva do ativista, político e intelectual negro Abdias Nascimento e o reitor da Universidade Pedagógica de Maputo (UPM), Jorge Ferrão.

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Negros e asiáticos preteridos no resgate: ‘Arrancados de coletivos para dar lugar a brancos’

De acordo com notícias publicadas na imprensa internacional, cidadãos de origem africana e asiática foram preteridos em relação aos de pele branca para serem retirados do país assim que ele foi invadido pelas tropas russas.

O caso ocorreu quando milhares de moradores da Ucrânia se enfileiraram nas fronteiras do país para serem retirados de ônibus e levados aos países vizinhos. Ao chegar a vez de negros e asiáticos, eles foram obrigados a deixar o veículo que os levaria para longe da guerra para dar lugar a pessoas brancas.

“Foram noticiados dois casos de crianças negras que foram retiradas do ônibus para dar lugar às crianças brancas e o argumento foi que, por serem negras, seriam mais fortes para enfrentar as intempéries da viagem a pé”, descreve um trecho do documento.

“As condições de desumanização, sujeitas a frio, fome, insalubridade, a ausência de assistência, foram reservadas para as pessoas negras. O racismo foi noticiado e líderes de países africanos fizeram apelos humanitários às autoridades ucranianas, e sua evidência estava também nas autoridades polonesas, que negaram ou atrasaram em dias a entrada de refugiados negros”, acrescentaram.

O grupo conta que a discriminação ocorreu independentemente da classe social dos cidadãos. “As pessoas que foram discriminadas incluíam indivíduos de classe média/alta, como alguns jogadores brasileiros de futebol que buscavam refúgio e denunciaram, eles mesmos, a discriminação em redes sociais”, disseram.

Cobertura jornalística mostra que a superioridade ariana está no imaginário social, dizem pesquisadores

Além das ações racistas identificadas na Ucrânia e nos países vizinhos, o grupo apontou uma reprodução de superioridade de pessoas brancas sob pessoas não brancas. Durante coberturas jornalísticas, âncoras e comentaristas afirmam que o conflito é cruel e que são vistas pessoas que “se parecem a qualquer família europeia que vivem ao nosso lado” e “não são refugiados do Oriente Médio ou do norte da África”.

“O conjunto de informações revela uma normatividade branca e europeia que opera com sentidos do racismo que propõe uma “estética ariana”, que compreende que traços de aparência de europeus do Norte são superiores”, define um trecho do documento.

Os jornalistas também citam que as vítimas de “olhos azuis e cabelos loiros”, que “se parecem conosco” é o que causa choque na guerra. Os comentaristas chegaram a afirmar que a invasão russa era cruel ao ponto de atacar um país europeu com “fogos de mísseis como se estivéssemos no Iraque ou no Afeganistão”.

Em outra ocasião, o correspondente da CBS News, Chalie D’Agata, voltou a comparação com Iraque e Afeganistão. “Isto não é o Iraque ou o Afeganistão… Esta é uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”, disse ao vivo.

“O fato de as diversas falas ocorrerem em tão múltiplos veículos de comunicação, mostra a dimensão de quanto a normatividade branca europeia e os sentidos de superioridade ariana estão arraigados no imaginário, ocorrendo de forma muitas vezes não refletida/reflexiva nos discursos de uma grande multiplicidade de jornalistas e de meios midiáticos”, descreve o grupo.

Para combater a cobertura jornalística racista, e as próprias ações, o coordenador do Neab, professor doutor Marcos Moreira, explica que o grupo pretende continuar a trabalhar com foco em repensar maneiras de trazer à tona um “novo modelo de universidade descolonizada”.

“Não adianta só trabalhar para que a imprensa não seja racista, se os estudantes de comunicação são formados em uma estrutura com olhar colonizador e que reforça essas práticas”, pontua Marcos.

O Neab/UnB já tem feito o esforço de se aproximar com universidades fora da Europa e criar um vínculo de cooperação e fortalecimento para que o ensino superior passe por essa transformação. “A meta é não repetir modelos do século 20 e, sim, pensar em uma universidade do século 21”, diz.

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