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Mãe lutou para filha cega ingressar na federal do Piauí

A aprovação de Maria Gabriella no curso de direito na federal do Piauí deve-se também à saga da genitora para conseguir adaptações no ensino básico

A história de Maria Gabriella, 18 anos, ganhou repercussão na internet durante os últimos dias. Primeiro, devido à nota 940 que obteve na prova de redação do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), depois pela aprovação em direito na Universidade Federal do Piauí (UFPI). Mas também, por ser cega.

 

Por trás dessa história, existe a figura da mãe que, durante toda a vida da filha, lutou para que a menina recebesse a educação de qualidade a que tem direito. Joana Darc, 38 anos, é formada em pedagogia, ciência da religião e letras em inglês. Ela também é especialista em educação especial e infantil.


O impacto com a chegada de Maria Gabriella

Quando Maria Gabriella nasceu, a família notou que poderia haver algo com a visão da menina, mas não sabia a causa. Com o auxílio de amigos e parentes, ela foi levada a um especialista e teve o primeiro diagnóstico, que apontava apenas o problema na córnea. Após visita a outros médicos, foi dado o diagnóstico de glaucoma congênito. Maria também tem a retina atrofiada, além da córnea opaca.


“Foi difícil até chegar na aceitação e entender que, mesmo tendo a deficiência, ela poderia ter uma vida normal e poderia estudar. Foi muito difícil, até porque eu moro no interior e a percepção que as pessoas tinham de pessoas com deficiência aqui era muito negativa”, relata Joana. A família vive no povoado Baixio, zona rural, que fica a 37 km do município de Pimenteiras (PI) e a 260 km da capital Teresina.

 

 

Arquivo Pessoal - Mãe batalhou para que a filha tivesse o direito à educação respeitado

 


“Depois que eu tive contato com amigos que são professores e que estudavam sobre isso, fui entendendo o contexto de vida de outras pessoas que tinham deficiência e conseguiam estudar e ter uma vida independente. Aí foi quando eu comecei a buscar recursos para a educação dela”, conta.


A batalha pelo estudo da filha

Joana conta que teve duas razões para escolher ser professora. A primeira foi a mãe, que também era professora. A segunda, e principal, foi a necessidade, que ela percebeu que a sua filha tinha. No povoado em que elas vivem, havia uma carência de professores que entendessem de educação inclusiva.


“Minha primeira preocupação foi como ela seria aceita na escola, porque não tinham noção do que era educação inclusiva. Foi quando eu comecei a estudar, a fazer as primeiras graduações para dar o primeiro suporte a ela”. Joana trabalhava na escola municipal, onde Maria Gabriella fez a educação infantil e os anos iniciais do ensino fundamental, antes da menina começar a estudar na instituição.


Ao notar que a escola não tinha o suporte para pessoas com deficiência, buscou a ajuda de amigos e da professora Firma Pimentel, que trabalhava na sala de recurso de Pimenteiras. Essas salas são ambientes nas escolas adaptados para auxiliarem alunos com uma ou mais deficiências. A professora levou Joana para a capital do estado para que ela pudesse se capacitar e dar as primeiras aulas à filha.

 

Na época, Joana fez um acordo com a secretaria de Educação do município para fazer a matrícula de uma vizinha que, até então, não tinha frequentado a escola por também ter deficiência visual. A mãe lecionou para as duas alunas – a vizinha e sua filha Maria Gabriella – em um corredor da escola e no contraturno das aulas, pois a instituição não tinha sala disponível. Além disso, ela ainda não tinha a graduação em pedagogia, portanto não poderia assumir uma turma.


Cinco anos depois que Maria Gabriella entrou na escola, a sala de recursos foi liberada. No entanto, a sua mãe teve que empreender um grande esforço para conseguir o material adaptado, ela conseguiu o empréstimo com a sala de recurso do estado. Mas, o local fica a 37 km do povoado e Joana teve que se deslocar até lá com regularidade para devolver o material antigo e trocar por um novo.


A construção da sala de recurso demandou persistência de Joana. Ela teve que fazer várias cobranças à Secretaria de Educação para liberar a verba. No fim, o valor que foi disponibilizado era para ampliar uma sala e não para construir uma nova. Com isso, ela fez um acordo com a família e, assim, eles mesmos construíram o espaço na escola.

 

No entanto, depois que a sala ficou pronta, a pedagoga precisou ir à Justiça para conseguir um professor capacitado para atender os alunos na sala. “As coisas começaram a melhorar. Passei a acompanhá-la todos os dias na aula e ficava para auxiliar [o professor]”, conta. Antes da chegada do educador, Maria Gabriella teve problemas para entregar as suas atividades em braile, pois os professores da escola não entendiam o sistema.

 

Após a implantação da sala de recurso e a chegada do professor capacitado, Maria Gabriella conseguiu ter uma rotina melhor de estudos. Ela ressalta que sempre estudou em sala regular e o atendimento especializado acontecia no período oposto ao das aulas.

 

Mesmo assim, Joana precisou recorrer ao Ministério Público diversas vezes para conseguir as adaptações necessárias na escola para que a sua filha e outros alunos com deficiência pudessem ter uma educação de qualidade e inclusiva. Além disso, ainda acompanhava o andamento das aulas para conversar com os professores sobre como se adaptarem para ensinar esses estudantes.

 

“Sempre que ela tinha um professor novo eu procurava conversar com eles fora da sala de aula e acompanhar as primeiras aulas para saber onde eles deveriam mudar para ficar melhor”, relata. “Por exemplo, eu tinha que explicar para o professor que, ao fazer uma leitura de um livro didático, tinha que descrever as imagens. De sempre ter o cuidado de falar o que estava fazendo na sala. Quando fosse escrever no quadro, lesse para ela [o que tinha anotado]. E mandar com antecedência o plano de aula para a sala de recurso”.

 

Ela ressalta que esse envio antecipado do plano de aula é importante, pois assim o professor da sala de recurso consegue preparar o material adequado para que os estudantes com deficiência possam acompanhar o conteúdo junto com os outros alunos. Somado a isso, Joana também chamava a atenção para a elaboração de atividades inclusivas para que Maria Gabriella não se sentisse excluída.

 

A pedagoga disse que a maioria dos professores eram compreensivos e aceitavam as suas orientações. “Eu tive muitos professores que se importaram comigo, que realmente quiseram sair da sua zona de conforto e me dar aulas mais inclusivas”, relata Maria Gabriella. No entanto, alguns professores foram resistentes aos pontos que Joana indicava que precisariam ser melhorados.

 

Para fazer os anos finais do ensino fundamental, Maria Gabriella teve que mudar para a escola que ficava no povoado Mestiço a 9 km da residência delas. Nesse período, Joana já estava com a formação em pedagogia, mas passou a acompanhar as aulas da filha com uma frequência menor.

 

Ainda durante o ensino fundamental, Joana foi atrás do notebook pessoal ao qual a filha tinha direito. Com o equipamento, Maria Gabriella pôde receber e fazer as suas atividades por e-mail e com o auxílio de programas adaptados para acessibilidade.

 

O direito ao notebook pessoal é garantido pelo Projeto Livro Acessível do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e pela Portaria 1.679 de 1999 do Ministério da Educação (MEC) em conjunto à Resolução 2 de 2001 da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação.

 

 

Arquivo Pessoal - A tecnologia foi uma grande aliada da Maria Gabriella nos estudos

 

Para fazer o ensino médio, Maria Gabriella teve que mudar de escola novamente. “Foi a mesma dificuldade, os professores não eram especialistas na área, mas eram ótimos profissionais e permitiam que eu orientasse e, graças a Deus, a Gabriella teve êxito”, relata a mãe.

 

Nessa etapa, Maria Gabriella se deparou novamente com a falta de acessibilidade da escola. A menina afirma que a instituição tinha uma carência de recursos, especialmente financeiros, e isso acabava impactando ela e os outros alunos. Apesar disso, ela também conta que tinha uma boa convivência com os seus professores e com os colegas.

 

Durante esse período, a aluna pôde ter mais contato com atividades extracurriculares, principalmente na área cultural, o que foi uma felicidade para ela, pois gosta de cantar. Aos 2 anos, ela aprendeu a primeira música depois que ganhou uma flauta. Mas o sonho é de um dia aprender a tocar piano. Por esses motivos, a menina guarda com carinho em sua memória as noites culturais que os seus professores de ensino médio promoveram por dois anos.

 

Além disso, as suas conquistas escolares também eram momentos de felicidade. “À medida que eu ia progredindo na escola, eu ia percebendo que era cada vez mais capaz de chegar aonde eu queria”, conta.

 

A surpresa positiva que Joana teve, ao longo do período escolar da filha, foi com a forma que os colegas receberam Maria Gabriella. “A minha convivência com os meus colegas sempre foi muito tranquila, apesar de ter ocorrido algum bullying quando era criança. No geral, eu convivi muito bem, sempre me trataram muito bem, com muito carinho e atenção”, relata a menina.

Apesar do esforço que a menina tinha com os estudos, ao finalizar o ensino médio, ela não conseguiu nota suficiente para ser aprovada no curso e universidade que desejava. Dessa forma, para que Maria Gabriella se preparasse para o Enem, a mãe tentou fazer um acordo com a direção da escola para ela conseguir continuar usando o notebook – na época, não tinha a demanda de alunos necessitando do equipamento na escola. Contudo, ela precisou devolver o aparelho.

 

“Chorei muito com a minha filha, porque era o único recurso que ela tinha para estudar e aí teve que devolver e eu não pude comprar outro de imediato. Foram três meses para eu poder conseguir, com a ajuda das avós dela, até que ela finalmente teve o computador dela pessoal e continuou com os estudos”, relata.

 

A preparação para a aprovação na federal

Maria Gabriella fez três edições do Enem (2018 a 2020). Para a última edição do exame, ela seguiu um plano de estudos que foi desenvolvido pelo namorado. Ele ainda escolhia os temas de redação que ela ia fazer, semanalmente, a aluna escrevia três textos no formato exigido pela prova. A correção era feita por uma plataforma paga e os conteúdos eram revisados por vídeos disponíveis no YouTube.

 

Com o esforço empreendido, Maria Gabriella foi aprovada em direito. A escolha do curso ocorreu quando ela tinha 14 anos. Com essa idade, indicaram a ela o livro O poder e a lei, de Michael Conelly. Ela ficou encantada com a profissão após a leitura e quanto mais pesquisava sobre, mais se apaixonava. Por enquanto, ela deseja ser promotora criminalista, mas pretende descobrir ao longo do curso se é essa a sua futura profissão.

 

Para estudar na UFPI, Maria Gabriella vai mudar para Teresina (PI) e vai morar com a irmã mais velha, que cursa psicologia. Nessa nova etapa na vida da filha, Joana não vai poder acompanhá-la, pois vai ter que ficar no local em que moram atualmente. A pedagoga ainda quer desenvolver um projeto na cidade, tem o emprego em escola, também cuida dos pais e do filho mais novo, 5 anos, que tem deficiência visual.

 

Ela confia na filha por ela ser uma menina bem resolvida, responsável com as suas obrigações e independente. “Eu sempre tive a preocupação de ensinar ela a ter independência e ela aprendeu desde cedo. Uma coisa que eu sempre fiz questão e eu esclareci para todos em casa era que eu não queria que ela fosse tratada de uma forma diferenciada por ela ter a deficiência”, relata.

 

 

Arquivo Pessoal - Joana tem três filhos, a mais velha mora em Teresina e cursa psicologia

 


Para Maria Gabriella, o período mais feliz que viveu foi justamente quando percebeu que não estava sozinha e que existiam pessoas iguais a ela: “Eu pude me libertar dessa prisão onde a sociedade me colocou e finalmente ser eu, Maria Gabriella, que tem deficiência, mas que não é um empecilho.”


“Tenho muito orgulho da minha mãe professora, do meu pai pedreiro, da minha irmã futura psicóloga e do meu irmãozinho que sabe-se lá o que ele vai escolher ser. A minha família me fez chegar até aqui e eu tenho muito orgulho de ter nascido nessa família”, conta.


O projeto futuro da mãe

Ao longo do tempo, Joana buscou conhecer os direitos da pessoa com deficiência. Hoje, ela é ativista pela causa e busca melhorias no município para essa população. A primeira conquista foi a sala de recurso quando a filha ainda estava na escola. Atualmente, a sala atende outras crianças da região que também têm deficiência.

 

Depois, ela batalhou pela criação do Conselho de Defesa das Pessoas com Deficiências, a lei foi criada em 2012, mas o comitê não foi implantado. Somente em 2021, sob uma nova lei, que foi instaurado o Conselho e a Coordenação das Políticas Públicas para as Pessoas com Deficiência.

 

“Fui surpreendida negativamente, porque eu fiz o possível que estava ao meu alcance para que o município implantasse o conselho, mas não fui escolhida para fazer parte como membro. Mesmo assim, eu fico feliz, porque o que eu quero é que o município se desenvolva e se destaque nas políticas públicas para as pessoas com deficiência”, relata.

 

Atualmente, a pedagoga quer tirar do papel o projeto pessoal “Sou anjo na vida de alguém”. A intenção é que os voluntários se conectem com as pessoas com deficiência do município.

 

“Eu tenho vontade de fazer um levantamento de dados sobre a realidade de todas as pessoas com deficiência no meu município, é um índice muito elevado. Segundo o Censo de 2010, cerca de 31% da população daqui tem algum tipo de deficiência e não tem muita inclusão. As escolas ainda são muito precárias em relação à educação inclusiva.” Para ela, falta atenção a esse público e ela quer fazer algo por essas pessoas.

 

“Entendi que minha missão nesse mundo não é só lutar pelo direito dos meus filhos, mas pelo direito de todas as pessoas com deficiência que têm esse direito negado. Então, quero muito poder conhecer essas famílias, levar informação e conhecimento que eu tenho para poder dar um suporte.”

 

Com a pandemia, o projeto ficou mais difícil de ser colocado em prática. Apesar disso, Joana conta com a parceria do professor Clemilton Dias e ainda tem a expectativa de conseguir mais parceiros e voluntários para dar o suporte necessário às famílias que têm pessoas com deficiência.

 

Por meio do conhecimento que ela tem hoje e das experiências pessoais, Joana quer motivar outras famílias a lutarem pelos seus filhos como ela fez. “Eles têm a oportunidade de crescer na vida e serem reconhecidos pelos seus talentos e não pela deficiência”, finaliza.

 

*Estagiária sob a supervisão da editora Ana Sá