Hoje (19) é Dia do Índio, apesar de o termo correto ser indígena, é assim que a data é nomeada formalmente. O descaso não começou com o nome. O Brasil demorou três anos para comemorar a data, desde que lideranças políticas e indígenas se reuniram, em 1940, para discutir propostas e lutar por representatividade no Congresso Indigenista Interamericano, em Patzcuaro, no México.
A representatividade desses povos originários é um assunto amplamente discutido hoje. Alguns ativistas aproveitam para chamar atenção sobre uso incorreto de termos. A palavra “índio” é uma das discussões recorrentes.
O termo é herdado do período da colonização brasileira, ele foi a denominação dada por Cristóvão Colombo ao pensar que havia chegado às índias. Dessa forma, o uso do vocábulo é incorreto. Para designar as etnias, são corretos os termos indígena e povos originários.
Essa falta de conhecimento sobre cultura indígena também está presente no ambiente acadêmico, talvez seja por conta da falta de representação nesse espaço.
Apesar do crescimento do número de povos originários, ainda são necessários avanços. Segundo o Censo da Educação Superior de 2019, os estudantes de etnias indígenas representam somente 56.257 entre 8.603.824 matriculados na graduação. O número representa aproximadamente 0,65% do total.
Além da pequena presença na universidade, a falta de bibliografias de pesquisadores indígenas é um fator que dificulta a permanência dessas etnias no ensino superior.
Conquista coletiva
Quando Sandra Pankararu veio da aldeia, onde residia a 500 km de Recife (PE), para o Distrito Federal, trazia “um caderno no braço e uma mala com saudade da aldeia, mas com medo desse novo que seria Brasília”. De etnia Pankararu, a estudante do 8º semestre de medicina recorda a luta da tia avó, ativista que vinha para a capital com frequência lutar por uma educação de qualidade na aldeia. Ela ingressou na Universidade de Brasília (UnB) em 2013 pelo vestibular indígena.
De família de pajés e parteiras, Sandra recorda que os colegas de turma a olhavam estranho quando comentava que era de família de médicos. “Aí eu dizia ‘então, é porque no meu povo o médico é pajé’, e todo mundo fazia aquele silêncio”.
Outro fator que levou a jovem a escolher o curso foi a percepção da carência de assistência médica na aldeia. Além da falta de profissionais, as dificuldades também derivam de que “a forma de entender o que é o adoecimento é diferente”. Ela explica que uma simples dor de cabeça pode significar coisas diferentes para pessoas indígenas e não indígenas.
Sandra comenta que o número de leituras no meio acadêmico também é um obstáculo para povos de tradição oral, principalmente com o uso de termos técnicos. “Há um termo técnico da medicina, aí é preciso traduzir para o português e traduzir depois para um entendimento seu cultural e linguístico”, explica.
A falta de representatividade também é um problema dentro do curso. Segundo Sandra, a população indígena é abordada de maneira rasa. Por esse motivo, ela propôs, junto à Faculdade de Medicina, que tivesse aula sobre saúde desses povos. “A gente nunca teve nada para a população indígena, e olha que a gente é um dos povos que tem um dos índices de mortalidade mais elevados”, relata.
Políticas públicas são essenciais
Claudia Renault, 51, coordenadora da Questão Indígena da Diretoria de Diversidade da UnB (DIV), acredita que a UnB tem tido êxito no número de ingressantes indígenas. Atualmente, há 201 alunos ativos de 34 povos diferentes na graduação e 25 pós-graduandos.
Ela afirma que os números cresceram com a aplicação do vestibular indígena, uma colaboração entre a UnB e a Fundação Nacional do Índio (Funai), embora ainda representem uma minoria entre os universitários. “No primeiro convênio (2004 a 2013) o ingresso era de 10 estudantes por ano, hoje o nosso convênio ingressa 85 estudantes por ano”, explica. A prova é aplicada anualmente em sete aldeias selecionadas e os cursos são escolhidos de acordo com as demandas das comunidades.
Também coordenadora do Centro Multicultural dos Povos Indígenas da UnB - Maloca, Cláudia explica que a primeira dificuldade enfrentada pelos ingressantes é o choque cultural. Há também problemas de natureza financeira, já que o aluno chega, na maioria das vezes, sem ter uma moradia para se estabelecer.
Outro desafio é a adaptação à metodologia da universidade. “Muitos desses estudantes têm o português como segunda língua e se deparam com disciplina com cinco ou seis textos para ler por semana”, ressalta.
O desafio de ocupar novos espaços
As dificuldades de adaptação nem sempre conseguem ser vencidas pelos indígenas. Îasy Almeida, 21, iniciou o curso de publicidade e propaganda, mas trancou a graduação. Para ela, foi um desafio "lidar com muito racismo anti-indígena vindo dos professores e dos alunos”. De etnia Tamoio, ela e a família vivem em Niterói (RJ), em contexto urbano, por não possuírem um território próprio do povo deles.
Ela relata que, durante o período de graduação, nunca houve leituras complementares ou obrigatórias escritas por pessoas indígenas e nem qualquer menção à representatividade.
“É muito difícil essa falta de representatividade, porque com certeza afeta como as universidades abordam os termos que envolvem e mencionam os povos indígenas”, explica. “Isso pode acabar perpetuando uma ideia que somos uma coisa no passado ou que somos selvagens, e isso pode desmotivar muito a gente até em ir para faculdade.”
Em meio a discursos equivocados e preconceituosos, Îasy pontua que ser ativista é algo fundamental na vida dela e de outras pessoas indígenas. “Estamos sempre lutando para viver e proteger os nossos diariamente, no final não precisa de internet, passeatas e protesto para fazer da gente algo que nascemos sendo também”, argumenta.
A jovem ainda acrescenta que a experiência de chegar ao ensino superior é “difícil e cansativa”. “Mas como queremos ocupar os espaços, continuamos mesmo depois disso, pois somos o futuro das nossas famílias”, reforça.
*Estagiária sob a supervisão da subeditora Ana Luisa Araujo