O resultado de um levantamento feito por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) revela que a maioria dos estudantes que moram nas residências da instituição e responderam ao questionário sofrem insegurança alimentar.
Cerca de 25% dos moradores do Conjunto Residencial da USP (Crusp) estão em situação de fome grave e ficam sem comer por um dia inteiro ou fazem apenas uma refeição.
Daniel Vasconcelos, 33 anos, morador do Crusp e doutorando em geografia pela USP, observa a falta de reforma estrutural desde que se mudou para o apartamento da universidade.
Os estudantes sofrem com infiltrações, cupim, falta de manutenção da fiação e risco de incêndio. Com a pandemia, apesar de poucos alunos estarem lá, a situação se agravou.
Por isso, ele e Tânia Araujo, 33, ex-moradora do Crusp, resolveram promover essa pesquisa com foco em segurança alimentar, área de especialização da nutricionista.
“Quando a pessoa está passando fome, várias outras necessidades foram descumpridas. A fome é a última das necessidades”, explica a doutora em saúde pública.
“Privar as pessoas de cozinhar é uma insegurança”
Durante o período de isolamento, com o fechamento dos restaurantes universitários, a universidade tem oferecido marmitas aos estudantes.
Cozinhar não é possível. Apesar de cada bloco de apartamentos ser equipado com uma cozinha comunitária, elas não estão em funcionamento e se encontram depredadas. Além disso, os estudantes não são autorizados a ter eletrodomésticos nos dormitórios.
Em nota, a universidade afirmou que o espaço não é prioridade no momento, pois agentes de saúde municipais não recomendaram o uso.
“As cozinhas comunitárias, como o próprio nome diz, são lugares de aglomeração e, portanto, de insegurança em saúde durante a pandemia”, informa o texto.
Para os pesquisadores, a situação seria facilmente sanada com a uma organização de horários para evitar aglomerações.
Lugar é pouco cuidado
O Conjunto Residencial da USP é composto de oito prédios de seis andares. São seis edifícios para alunos da graduação e dois para pós-graduação no maior câmpus da USP, no Butantã.
Cada apartamento tem três dormitórios, sala, área com tanque e banheiro. O Crusp abriga em média 1.600 estudantes em vulnerabilidade socioeconômica. Durante a pandemia, esse número se reduziu a 600.
No total, 84 estudantes responderam ao questionário enviado pelos pesquisadores. São graduandos e pós-graduandos de 19 a 59 anos, sendo a maioria do sexo feminino (56%).
A metodologia utilizada pelos pesquisadores seguiu a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar (EBIA), que avalia, por exemplo, quantas refeições o estudante faz ao dia, se repetiu o mesmo alimento, ficou o dia todo sem comer e com que frequência come. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética da USP.
Após o resultado, Tânia Araujo e Daniel Vasconcelos tentaram entrar em contato com a universidade para marcar uma reunião, mas dizem não ter recebido retorno.
Segundo a USP, a Superintendência de Assistência Social (SAS) está à disposição para conversar com os pesquisadores. “A única solicitação que fizemos foi que enviassem o projeto de pesquisa antecipadamente. É fundamental conhecermos os detalhes metodológicos, que os pesquisadores recusaram-se a apresentar”, afirmou a instituição.
Marmitas e auxílios são paliativos
Em maio, a universidade disponibilizou kits de internet compostos por um chip para celular ou um modem portátil, habilitados para 20 GB aos estudantes.
Um aluno que mora no Crusp há um ano acredita que essas são medidas paliativas: apenas disfarçam o problema. Todos os lugares da cidade universitária têm wi-fi, mas as moradias não.
Além disso, muitas vezes, a quantidade de internet do celular ou do aparelho não é suficiente para a carga horária de aula dos alunos.
Desde o início da pandemia, a USP passou a oferecer marmitas gratuitas aos estudantes. Após a flexibilização das regras de distanciamento social em São Paulo, algumas atividades voltaram em setembro e, com isso, a cobrança dos R$ 2 pela refeição retornou.
A maioria dos moradores recebe auxílio-alimentação e tem as refeições subsidiadas. Entre os quatro restaurantes da universidade, o terceirizado, que está em funcionamento, fica a 20 minutos de distância do Crusp.
As marmitas entregues costumam vir com mais arroz do que feijão e raramente há salada. A opção para vegetarianos é sempre proteína de soja texturizada.
“Quando os bandejões estão funcionando, a gente tem controle do que pode nos saciar, mas o modelo atual de distribuição de comida não respeita nem a questão nutricional nem a questão de desperdício”, compartilha um estudante que não quis se identificar.
“A impressão que a gente tem é que, cada vez mais, a universidade não quer que essas pessoas estejam no Crusp. Talvez essa falta de manutenção seja para que os alunos não queiram ficar lá”, afirma Tânia. “Terminar uma graduação sem ter como preparar sua refeição é muito difícil.”
Alguns blocos ficaram sem água por semanas e outros nem têm energia elétrica. O quarto de um estudante, que reside no Crusp há dois anos e que prefere não se identificar, não tem luz.
O aluno entrou em contato com a zeladoria e a SAS para solicitar o reparo, mas tudo o que conseguiu foi uma resposta negativa. “Eles disseram que não há nenhum problema (no apartamento), mesmo sem ter verificado o que estava acontecendo, e que isso não é prioridade da instituição”, relata.
Para outro estudante da graduação que não quis se identificar, a negligência mostra a falta de diálogo com os alunos e fomenta uma precariedade que deixa o Crusp à margem da USP. Vários graduandos e pós-graduandos também percebem que existe preconceito com os moradores do local.
De acordo com a USP, a Superintendência do Espaço Físico (SEF) está com processo em andamento para efetuar reformas no Crusp, mas não há previsão para o início das obras.
*Estagiária sob supervisão da editora Ana Sá