ENSINO PARTICULAR

Em crise, ensino particular pode sofrer apagão, afirmam especialistas

A criação de um novo imposto, conforme previsto pela proposta de reforma tributária do governo, pode aumentar mensalidades e extinguir bolsas do ProUni

Ana Lídia Araújo*
postado em 21/08/2020 19:24 / atualizado em 21/08/2020 21:26
Celso Niskier, secretário executivo do Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular e diretor presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) -  (crédito: Arquivo pessoal)
Celso Niskier, secretário executivo do Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular e diretor presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) - (crédito: Arquivo pessoal)

Em tramitação no Congresso Nacional, a proposta de reforma tributária do governo federal, que cria a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), pode causar uma série de efeitos negativos para a educação particular brasileira.

Segundo nota técnica divulgada pelo Fórum das Entidades Representativas do Ensino Superior Particular, o novo imposto traz como consequência o aumento das mensalidades e a extinção de mais de 161 mil bolsas do ProUni, afetando cerca 6,4 milhões de estudantes do setor (75% do total de universitários).

Atualmente, a alíquota paga pelo ensino particular é de 3,65%, sendo que as instituições sem fins lucrativos são isentas. Com a criação da CBS, que substituirá os tributos do Programa de Integração Social (PIS) e a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), o percentual sobe para 12%, podendo resultar em um aumento de 6% nas mensalidades das escolas do ensino básico e 10,5% nas do ensino superior, segundo a nota técnica.

Celso Niskier, secretário executivo do Fórum e diretor presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES), explica que a reforma afeta diretamente estudantes em situação de vulnerabilidade socioeconômica. “Assim que a reforma foi proposta, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse que a rede particular não seria muito afetada porque somente os filhos dos mais abastados estudavam lá. Isso não é verdade”, pontua.

“Nós vimos que mais de 80% dos alunos de instituições particulares são das classes C, D e E. Isso significa, para muita gente, o abandono do sonho de fazer faculdade. A reforma está sendo injusta para quem menos tem condições”, argumenta.

Educação básica também ficará mais cara

"A medida que o imposto cresce, é tirado de as pessoas a chance de poder investir na educação", comenta Ademar Batista Pereira, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep).
"A medida que o imposto cresce, é tirado de as pessoas a chance de poder investir na educação", comenta Ademar Batista Pereira, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep). (foto: Arquivo pessoal)

Segundo a nota técnica do Fórum, as mensalidades das escolas de ensino básico podem aumentar em até 6%. Para Ademar Batista Pereira, presidente da Federação Nacional das Escolas Particulares (Fenep), o impacto para esse segmento será na qualidade da educação. "O ensino de qualidade continuará existindo. O problema é que ele aumentará o preço, o que diminui a possibilidade de as pessoas que se esforçam para pagar a escola tenham condições", afirma.

Segundo ele, as instituições de ensino básico particulares pagam um terço do que arrecadam em tributos. Com a CBS, a contribuição será ainda maior. “À medida que o imposto cresce, é tirada das pessoas a chance de poder investir na educação", comenta. "Ou seja, diminui-se a qualidade de educação do povo brasileiro."

Número de vagas no ProUni pode diminuir drasticamente

Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES)
Sólon Caldas, diretor executivo da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (ABMES) (foto: Arquivo pessoal)

Outro problema que tem causado preocupação é o Programa Universidade para Todos (ProUni), que converte impostos não pagos por instituições particulares em vagas para alunos de baixa renda. Atualmente, o programa atende 575.114 alunos com bolsa integral e 147.106, com benefício parcial, de 50%.

“O ProUni é um programa muito bem-sucedido que democratizou o acesso dos alunos menos favorecidos economicamente ao ensino superior. Talvez, o programa seja a única porta de entrada para esses estudantes”, defende Sólon Caldas, diretor executivo da ABMES.

A partir da reforma tributária, estima-se que muitas instituições devem abandonar o programa. “O governo está tirando da base de cálculo do ProUni o PIS e o Cofin, e não colocou a CBS no lugar. Então, as instituições de ensino que ofertam essas bolsas não vão ter mais compensação tributária desses impostos e ainda vão ter que pagar 12% a mais”, diz

“O programa deixará de ser atrativo e as faculdades não vão mais ofertar essas bolsas”, afirma o diretor.

Crise financeira do setor

Segundo Celso, as instituições de ensino particular podem não resistir à reforma tributária. Ele explica que existem três “ondas de choques” que afetam o setor. A primeira seria a crise financeira que o Brasil enfrenta há cerca de cinco anos, o que ocasionou diminuição do financiamento estudantil.

A segunda onda foi desencadeada pela pandemia do novo coronavírus. “A covid-19 agravou a primeira onda porque impactou muitos estudantes que perderam os empregos e tiveram que abandonar a faculdade sem nenhuma alternativa de financiamento”, diz.

Por fim, a reforma tributária pode se caracterizar como a terceira onda da crise no setor. “As instituições vêm de uma situação complicada. Se vier mais esse impacto, vai ser difícil resistir”, pontua.

A solução é isentar a educação

Para Celso, o ideal seria que as instituições educacionais tivessem uma alíquota neutra, sem aumento de tributos. “Entendemos a importância de uma reforma e somos favoráveis. Entretanto, pedimos que a educação tenha um tratamento diferenciado. O setor tem importância social fundamental para o futuro do país”, diz.

“Nós vamos dialogar. Estamos mandando todos esses estudos para os técnicos do governo, para que eles reconsiderem a visão de que a educação particular é para a elite. Também estamos alimentando os parlamentares com essa informação”, conta. “A educação é o melhor investimento social.”

Apagão da mão de obra qualificada

Com o aumento das mensalidades e a extinção de vagas do ProUni, especialistas comentam sobre um possível “apagão da mão de boa qualificada”, interferindo diretamente no desenvolvimento do país. A longo prazo, mais de 1,5 milhão de pessoas não terão a oportunidade de ingressar no ensino superior. “Se o governo deixa de incentivar o acesso à educação superior, consequentemente, haverá prejuízo no desenvolvimento do país porque não haverá mão de obra suficiente”, afirma Sólon Caldas.

Este e os demais pontos foram comentados durante apresentação do estudo do Instituto Semesp, membro do Fórum, que apontou que cerca de 322 mil alunos perderão a chance de ingressar no ensino superior em 2021.


*Estagiária sob a supervisão de Ana Sá

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