O sonho de estudar no exterior virou pesadelo para muitos estudantes brasileiros durante a pandemia de covid-19. O ano letivo está prestes a começar em várias faculdades ao redor do mundo, enquanto alunos “presos” no Brasil reclamam da falta de respostas do Itamaraty.
Movidos pelo medo, jovens chegam a viajar a um país para arriscar chegar a outro. Relatos dão conta de alunos indo para México, Turquia buscando conseguir chegar até o destino final. Outros brasileiros que têm passaporte europeu também tentam ir à Europa para, então, chegar aos Estados Unidos, que impede a entrada de brasileiros.
Daniel Setton, 20 anos, cursa administração e marketing na University of Evansville, em Indiana (EUA), ele conta que, junto a um grupo de brasileiros, tenta contato com o Itamaraty desde junho, sem sucesso. “Quando tem retorno, são respostas copiadas e coladas. Em automático. É muito frustrante, pois a nossas aulas começam em duas semanas ou menos, e não sabemos o que fazer”, desabafa.
Os estudantes buscam por uma negociação diplomática entre o órgão e o governo estadunidense. “Já que eles falam que o governo brasileiro tem uma relação muito boa com os Estados Unidos, por causa da afinidade dos presidentes, queremos que o governo brasileiro consiga uma isenção dos estudantes brasileiros da restrição de viagem”, cobra.
Em maio, o governo de Donald Trump anunciou a proibição da entrada de estrangeiros vindos do Brasil. A medida foi tomada em decorrência do número de infectados pela covid-19 no país, mais de 3 milhões de pessoas. O segundo maior número de casos do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos, com 5 milhões de contagiados.
Alunos em desespero
“Os estudantes europeus acabaram de ser isentos da restrição pelo governo norte-americano. A Europa tem uma restrição exatamente igual ao Brasil”, conta Daniel. “Eles foram isentos por interesse nacional, segundo o governo americano. Ou seja, houve uma negociação entre a União Europeia e os Estados Unidos para que essa decisão fosse tomada. O que não está acontecendo no caso do Brasil”, compara.
O estudante ainda questiona o motivo de o bloqueio não se aplicar ao México também, já que se justifica pela questão sanitária e o país ocupa o terceiro lugar na América Latina, em número de contaminados. “Nós clamamos pela isenção dos brasileiros. Educação é viagem essencial!”, defende.
“É uma situação que foge do nosso controle e que está atrapalhando a nossa vida. Por exemplo, tem gente que está pagando aluguel lá para nada, pois não pode voltar. Tem os que estão perdendo aula”, apela Daniel.
Stanford de dentro de casa
Guilherme David, 21 anos, foi aprovado para estudar na Universidade Stanford, situada em Palo Alto, Califórnia. O QS Global World Ranking nomeou a instituição como a segunda melhor do mundo em 2020, na frente até mesmo da renomada Harvard. A frustração por não poder viajar é gritante. Entristecido, o jovem diz que já se conformou com as aulas on-line.
“Já aceitei que vou fazer o curso daqui de dentro de casa, em Cubatão (SP). Eu sou privilegiado por ter acesso à internet, não tenho muita privacidade, pois divido o quarto com a minha avó, mas consigo estudar”, brinca. “Tem pessoas que receberam uma bolsa muito boa, são de comunidade, onde fica mais difícil de estudar. O que está em jogo é isso, nós queríamos que o governo dos Estados Unidos isentasse quem é do Brasil tem o visto de estudante”, afirma.
Aluna de destaque sem poder realizar sonho
Isabelly Veríssimo, 18, foi aprovada em sete universidade no exterior. Escolheu cursar neurociência na Nova Southeastern University (NSU), Flórida (EUA),
Entretanto, o sonho tem sido barrado por obstáculos. As aulas da estudante começam na próxima segunda-feira (17/8), mas ela não consegue viajar para a Flórida. “Mesmo me propondo a fazer todos testes de covid-19 para afirmar que não apresento perigo, não me deixam ir”, lamenta.
A data máxima para adentrar o câmpus é 7 de setembro. Mesmo colocando essa informação no formulário de solicitação para tirar o visto, ela não conseguiu marcar entrevista para antes da data. “Ficou marcado para 28 de setembro. Eu já tinha pedido todos os documentos para ir em agosto e agora estou ameaçada de mudarem meu visto para janeiro”, afirma.
Como estudante de neurociência, a maioria das aulas de Isabelly são práticas em laboratórios. Com a restrição, ela perderá essa experiência presencial e começará com aulas on-line. “Como todo curso prático, ele foi criado para ser prático. A distância não é a mesma qualidade”, opina.
Além disso, para manter os custos da graduação, ela participaria de um programa de bolsas de liderança na faculdade. Sem a presença da aluna no câmpus, o processo ficou inviabilizado. “Nós somos latinos em um país onde, historicamente, a presidência não nos quer. Mesmo nos esforçando para passar, mantendo média do ensino médio acima de 8, criando programas, fazendo voluntariado, provas de admissão, sendo top 1, 5 ou 10 em sala de aula, não somos reconhecidos”, lamenta.
“Qualquer instabilidade, arrumam motivo para afastar algo que é nosso por direito”, critica sobre a decisão dos Estados Unidos de barrar qualquer brasileiro. “O governo do Brasil deve apoiar a gente, somos estudantes e cidadãos. Não importa se estudamos nos Estados Unidos, somos também os futuros médicos, advogados, enfermeiros, professores, artistas e outros incríveis profissionais do Brasil”, destaca Isabelly.
Bolsas de estudo ameaçadas
A situação é ainda mais desesperadora para aqueles estudantes que usufruem de bolsas de estudos, como é o caso de André Guedes, 20 anos, estudante de relações internacionais na University of Wisconsin. O jovem tem direito a bolsa acadêmica e esportiva, por participar do time de tênis da instituição.
As aulas de André voltam em duas semanas, porém, ele precisa se apresentar à faculdade já no início da próxima semana. “A faculdade disse que posso, sim, pegar aula a distância, porém, perderei metade de minha bolsa acadêmica, minha bolsa esportiva e meu trabalho também”, relata.
No fim de março, ele recebeu um informativo da instituição dizendo que as aulas seriam ministradas on-line, por isso, a família achou melhor que ele retornasse para o Brasil. “Desde então, não consigo voltar para os EUA. Tinha planos para ir em junho, mas, até agora, não temos uma previsão de quando vamos poder voltar.”
André conta que, desde junho, tenta contato com a Embaixada Americana em Brasília, e a Embaixada Brasileira em Washington. “Infelizmente, não obtive nenhuma resposta ou notícias de quando nós estudantes brasileiros poderemos ir para nossas respectivas faculdades. É um fator bem desesperador, pois não temos nada em mão e nossas aulas já estão para começar.”
O que diz o governo
Procurado pela reportagem, o Ministério das Relações Exteriores declarou que “acompanha atentamente a situação e está em permanente contato com as autoridades norte-americanas, em busca de soluções para esses e outros casos decorrentes de restrições migratórias e sanitárias impostas durante a pandemia de covid-19”.
Já a Embaixada brasileira em Washington pontuou que as restrições de ingresso nos EUA foram estabelecidas pelo governo americano. Tratando-se, portanto, de uma decisão de soberania nacional. Confira a nota na íntegra:
“A Embaixada do Brasil em Washington, desde o início da pandemia da covid-19, tem prestado apoio e informações a estudantes brasileiros situados em território brasileiro que buscam retornar para os Estados Unidos, a fim de dar continuidade a seus respectivos cursos acadêmicos e esportivos.
É essencial esclarecer que durante a pandemia os estudantes estrangeiros nos EUA, inclusive os de nacionalidade brasileira, teriam sido incentivados pelas suas respectivas instituições de ensino americanas a espontaneamente regressar a seus países de origem.
O governo americano, no entanto, estabeleceu, por meio da Proclamação Presidencial, de 24 de maio de 2020, restrições de ingresso em território americano de pessoas procedentes do Brasil, que tenham estado em território brasileiro durante 14 dias anteriores à entrada nos EUA, tendo em conta a evolução da pandemia no Brasil. Essas medidas afetaram também os estudantes brasileiros que haviam retornado ao Brasil.
Frise-se que essas restrições de ingresso nos EUA de pessoas procedentes do Brasil foram estabelecidas pelo governo americano. Trata-se de decisão soberana de natureza imigratória das autoridades dos EUA.
A Embaixada do Brasil em Washington, no entanto, tem feito gestões junto ao governo dos EUA, em especial o Departamento de Estado, desde a publicação da Proclamação Presidencial, de 24/5/2020, com o propósito de buscar alternativas para o retorno aos EUA dos estudantes brasileiros.
As autoridades americanas têm respondido às gestões da Embaixada que as restrições de ingresso nos EUA são temporárias e decorrem da necessidade de garantir a segurança nacional americana; que o serviço de emissão de vistos nas Repartições Consulares americanas no Brasil, inclusive para estudantes, está temporariamente suspenso; que as informações sobre a futura retomada de emissão de vistos americanos, inclusive para estudantes, estarão disponíveis para consulta pública no site br.usembassy.gov/visas; e que o Departamento de Estado, a pedido da Embaixada brasileira em Washington, está verificando, de todo modo, alternativas para facilitar o retorno dos estudantes brasileiros aos EUA.
Todas essas informações têm sido transmitidas pela Embaixada brasileira em Washington aos estudantes brasileiros.
A Embaixada do Brasil em Washington continuará a trabalhar com as autoridades americanas com vistas à retomada pelos estudantes brasileiros de seus cursos nos EUA, tão logo a evolução dos indicadores em relação à covid-19 o permita.”
Contraponto
Já habituado às respostas da Embaixada Brasileira, o estudante Daniel Setton declara: “Os Estados Unidos está aí para defender os interesses deles, quem nos defende é o nosso governo. Se nós, que somos cidadãos brasileiros, não somos apoiados pelo governo brasileiro, imagine pelo governo americano”.
Ele cobra um trabalho mais ativo do governo brasileiro e do Itamaraty para não deixar tantos alunos como ele próprio prejudicados. “Os estudantes europeus foram isentos, e essa isenção não caiu do céu, foi negociada diplomaticamente. Não adianta falar sobre soberania nacional na decisão, isso nós sabemos. Porém, existe uma coisa chamada diplomacia, e isso implicitamente, sugere negociação”, aponta.
*Estagiária sob supervisão da subeditora Ana Paula Lisboa