ENEM 2022

Para fazer filho de trabalhador virar doutor

Projetos populares como Rede Emancipa e Mais 123 são ferramentas fundamentais para ajudar estudantes da rede pública e de baixa renda a ingressarem em universidades federais

Ester Cauany* Diogo Albuquerque*
postado em 25/10/2022 06:00 / atualizado em 25/10/2022 06:00
Estudantes participam de aulão preparatório para o PAS, na CEM 404, em Santa Maria. -  (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)
Estudantes participam de aulão preparatório para o PAS, na CEM 404, em Santa Maria. - (crédito: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Vontade de ocupar uma sala de aula na Universidade de Brasília (UnB) existe, e muita. Para os alunos da rede pública de ensino do Distrito Federal, nem sempre é possível investir em cursinhos preparatórios particulares para o Enem, ou vestibular. Por isso, eles buscam outras alternativas para auxiliar nos estudos, como projetos populares.

O Centro de Ensino Médio 404 de Santa Maria é um dos exemplos. Estudantes daquela unidade mostram que, para realizar sonhos, é preciso muita coragem e esforço. Contando com professores dedicados à transformação na vida dos alunos, a escola é referência em ingresso na UnB, acumulando mais de 300 aprovações desde 2012.

Ana Sofia Fernandes, 17 anos, quer estudar ciências ambientais na Universidade de Brasília (UnB). Ela conta que estuda pelos conteúdos oferecidos nas aulas e sana dúvidas diretamente com os professores. "Em casa funciona melhor pra fazer exercícios", diz. Ana tem uma conexão diferente com a universidade. "A minha mãe estudou lá e, quando se formou, estava grávida de mim. Já nasci para estar lá também", afirma.

A estudante, que fez o Enem como treineira durante os dois anos do ensino médio, indica aos colegas que também façam o exame. "Se você está no 1° ano, já deve fazer a prova. Não pelos conteúdos, mas para se acostumar com a ideia de que é necessário fazer gestão de tempo", observa.

Gilberto Vanderlei Pereira, 18, almeja uma vaga entre os calouros do curso de farmácia e tem priorizado revisar matérias que são comuns no Programa de Avaliação Seriada da UnB (PAS) e também no Enem. Dessa forma, segundo ele, é possível otimizar tempo para realizar outras atividades, como a rotina de simulados aos sábados e redação aos domingos. "A minha estratégia é revisar os conteúdos que tenho mais dificuldade e que podem cair como questões mais fáceis", salienta.

Rafaela Ferreira,17, se encantou pela biologia na mostra de cursos da Semana Universitária da UnB e, desde então, se esforça para garantir uma vaga no curso. A rotina de estudos dela é baseada em aproveitar o material da escola e também sanar todas as dúvidas em relação aos conteúdos. "Tenho muita dificuldade em exatas e estou revisando todas as matérias que mais caem", conta.

Pedro Henrique Souza, 17, sonha em estudar letras e, chegando em casa, ao fim de todo dia, pesquisa por propostas de intervenção para garantir uma nota alta na redação do Enem. "Estou confiante. A escola que a gente estuda é uma referência. Muita gente que sai daqui vai direto pra uma federal e eu penso: se isso acontece com muitos, eu posso ser o próximo", sonha.

O CEM 404 comprova que, com dedicação, compromisso e criatividade, se faz uma educação de qualidade, garantindo a transformação de vidas. A escola também é uma das poucas que, mesmo em uma região periférica, tem índices baixos de evasão escolar, fator atribuído a qualidade nas políticas de ensino.

A instituição oferece aos alunos conteúdos do Enem e outros vestibulares de forma estratégica, como o sistema de avaliação Prova Multi, no qual as provas bimestrais são programadas e corrigidas da mesma forma que os vestibulares. "Fazer a prova é como fazer um simulado. Com essa prática, podemos testar estratégias", diz Pedro Henrique.

Mais 123 no PAS

Os quatro alunos do CEM 404 participam das aulas do projeto Mais 123 no PAS, que nasceu de uma iniciativa de professores e ex-alunos que estudam na UnB. O projeto foi criado para atuar nas escolas de ensino médio da cidade, "unindo forças para fazer filho de trabalhador virar doutor", como diz o slogan.

"Na minha família era muito distante a ideia de fazer faculdade, mas em 2017 a minha irmã, que estudou aqui, foi aprovada. Isso ficou na minha cabeça e trouxe esse sonho para próximo de uma realidade", conta Rafaela Ferreira, que também estuda pelo Mais 123 no PAS.

Os encontros do projeto ocorrem no último sábado do mês em um esquema rotativo pelas escolas de ensino médio da cidade. Os alunos ficam por dentro dos conteúdos mais cobrados no PAS e no Enem pelas aulas e também por acesso, na internet, a listas de exercício e correção. Além disso, oferece suporte para fazer a inscrição para as provas, isenção de taxa ou envio de documentos.

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"O nosso trabalho é balancear a desigualdade. Sabemos das dificuldades para acessar o ensino superior e que a rotina é pesada para o estudante que precisa estudar e trabalhar ao mesmo tempo", explica o coordenador do Mais 123 no PAS, Daniel Souza.

No ano passado, o Mais 123 no PAS ajudou na aprovação de cerca de 35 alunos só para a UnB, fora os que estão com bolsas em alguma faculdade privada e os que ingressaram pelo Enem em outras universidades do país.

Rede Emancipa

Criada em 2007, a Rede Emancipa é mais um movimento social de educação popular que luta pela democratização do acesso à universidade e por uma educação de qualidade, crítica e gratuita. O cursinho popular está presente em todo o Brasil e, em 2016, uma unidade foi aberta no Distrito Federal. Sem fins lucrativos, o Emancipa se sustenta por meio de dinheiro arrecado em doações. As aulas são abertas ao público, jovens e adultos, e organizadas de forma voluntária, todos os sábados, em Ceilândia, Paranoá e Santa Maria.

Coordenadora distrital e nacional do Emancipa DF, Raquel Vieira participou como aluna do projeto ainda em sua fase piloto, em 2016. Com o engajamento, ela se tornou, em 2017, coordenadora. Para Raquel, o papel principal da educação popular é resgatar sonhos. "A educação não é apenas o conteúdo para fazer a prova, é muito além disso. Educação é a nossa vivência, é história, é trabalho com a comunidade e para cidadania. Devolvemos alunos críticos, que saem pensando em como se organizar politicamente e com senso de coletividade", defende.

Ainda segundo ela, o principal desafio, hoje, é lidar com o pós-pandemia. "O ensino remoto não foi suficiente, principalmente com os desmontes que o governo promove. Então, nosso desafio, hoje, é retomar essa semente do estudar e mobilizar os estudantes a participar e acreditar que a universidade é deles", afirma. Para o futuro, a coordenadora planeja organizar um sarau cultural, expandir o Emancipa e arregimentar mais voluntários.

Formada em psicologia, Yasmin Moreira da Silva, 24, atua no Emancipa desde o início de 2021, nos círculos de atendimento psicológico coletivo. A psicóloga enxergou no projeto a possibilidade de fazer o que gosta, a psicologia social. “Para mim, essa área vai muito além de uma clínica, é algo que vem do coletivo”, diz. Ela afirma que os círculos ajudam os alunos a perceberem como eles conseguem se ajudar e que não estão sozinhos. “Por meio dos nossos atendimentos, eles passam a se sentir inseridos e compreendem que a aprovação na universidade não é algo individual”, conclui.

  • Círculo de debate de estudantes do cursinho popular Arquivo pessoal
  • Anne Werlang destaca a diversidade e a objetividade dos conteúdos Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Luiz Henrique: "Cursinho é feito de alunos para os alunos" Arquivo pessoal
  • Isabella criou um grupo de estudos para contar e dividir experiências Arquivo pessoal
  • Círculo de debate de estudantes do cursinho popular Arquivo pessoal

Para a professora de português Anne Katharine Nascimento Werlang, o diferencial do Emancipa é a maneira como o cursinho mescla a diversidade da forma de ensinar com a objetividade do conteúdo. "Tentamos fazer com que seja um momento mais leve, menos metódico", afirma. Atuando desde 2019 no cursinho popular, que conheceu em uma manifestação, ela ressalta que o objetivo do Emancipa é manter vivo o sonho dos alunos e fazer com que eles acreditem neles mesmos, criar um sentimento de coletividade e reforçar o conteúdo que muitas vezes é defasado nas escolas públicas. "Temos uma boa taxa de aprovação e o legal é que eles voltam para colaborar e somar no cursinho", completa.

Graduanda de licenciatura em matemática na Universidade de Brasília (UnB), Isabella Venâncio Pinheiro de Sousa, 19, diz que, por meio do Emancipa, criou um grupo de apoio com estudantes com quem pôde contar e dividir experiências em um momento de muita pressão. "Isso foi muito importante para a minha aprovação", conta. A estudante é, hoje, professora voluntária do cursinho e destaca que o sentimento de estar ao lado de professores que deram aula a ela é indescritível. "Essa experiência me ajuda até mesmo a desenvolver a minha didática em sala de aula", acrescenta.

Para ela, o Emancipa é essencial para os alunos da rede pública, considerando o cenário caótico da educação brasileira, a falta de investimento, os diversos cortes e boicotes e o alto nível de desigualdade. "Tudo isso faz com que um cursinho popular seja importante, para que os estudantes tenham acesso à educação e entendam o seu local social", complementa. A estudante reforça que o cursinho tem conseguido cumprir o papel de colocar os alunos na universidade, mas que, com a volta das aulas presenciais, houve uma certa dificuldade de alcançar todos os estudantes.

Estudante de licenciatura em história da UnB, Luiz Henrique Alves Spindola Martins, 19, conta que o cursinho popular o ajudava não só em questão de conteúdo como também em sua formação como ser humano. “O Emancipa me fez perceber que o vestibular não é tudo, me fez humanizar o processo. Por meio de uma educação freiriana, o foco é colocar o estudante como o centro, retirar a hierarquização do ensino e promover um companheirismo e parceria entre aluno e professor. Mesmo tendo profissionais, o cursinho é feito de alunos para os alunos”, explica. Hoje, Luiz também atua como professor voluntário e diz que o sentimento é de gratidão.

A estudante do 3º ano Vitória Oliveira dos Santos, 17, também está se preparando para o Enem 2022. Ela pretende cursar arquivologia na UnB e diz que o Emancipa é uma alternativa para os alunos que não possuem condições de pagar cursinho. "Lá são abordados diversos assuntos que servem como repertório e questões preparatórias que caem no exame, além de ser um ambiente de inclusão, no qual me sinto bem acolhida", comemora.

Aulões

Para a reta final do Enem, o Emancipa irá promover aulões preparatórios abertos a comunidade em parceria com o Jovem de Expressão. De quarta a sexta-feira (9, 10 e 11 de novembro), as aulas serão à noite. No sábado (12/11), o aulão terá início às 10h no Centro de Ensino Médio 03 de Ceilândia Sul. O mesmo cronograma se repete na semana seguinte, antes do segundo dia de provas do Enem. É importante que os interessados se inscrevem por formulário e acompanhem as redes sociais do Emancipa.

Tome nota

Rede Emancipa — @emancipadf

Projeto Mais 123 no PAS — @projeto.mais1

*Estagiários sob a supervisão de Jáder Rezende

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