Cada vez mais "a cara do governo", de acordo com relato de servidores, o presidente da República Jair Bolsonaro pediu a substituição de Golpe de 1964 por revolução na maior avaliação educacional do país. O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) de 2021, marcado para ocorrer em 21 e 28 de novembro, vem protagonizando polêmicas há algumas semanas com acusações de censura, interferências e assédio moral. Às vésperas do exame, 37 funcionários pediram exoneração de suas funções no Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pela aplicação do Enem.
Servidores relataram que as provas do exame foram elaboradas sem a atuação das Equipes de Incidentes e Resposta (ETIR), a pedido de ocupantes de cargos de chefia, ligados ao presidente do instituto, Danilo Dupas.
Pelas redes sociais, a União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes) alega que Bolsonaro deturpa a história do Brasil quando pede a troca de expressões: “A ditadura é algo drástico na nossa história e precisa ser lembrada para que nunca mais aconteça. Interferir no Enem é censura”, afirmam. Especialistas comentam a respeito.
Temos raiva e ódio da ditadura militar
A presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Bruna Brelaz, é taxativa ao dizer que em tempos de ataque à democracia e a constituição, no que tange ao debate do Enem, isso não seria diferente. “Bolsonaro tenta colocar o seu viés antidemocrático em uma prova onde, numa república como o Brasil, a constituição prevalece, o debate democrático prevalece”, afirma.
Por meio da presidente, a UNE repudia de forma muito veemente essa exigência, essa tentativa do presidente de censurar o Enem e de colocar questões antidemocráticas dentro da prova. “Nós temos raiva e ódio da ditadura militar e é por isso que nas nossas escolas e nas nossas universidades é muito importante dizer que foi golpe, que a ditadura militar foi um dos períodos mais sombrios que o Brasil viveu”, finaliza Bruna.
Apagamento e deturpação da história nacional
Segundo a advogada e doutoranda em direito e desenvolvimento pela Fundação Getúlio Vargas (FGV), Priscila Coelho, o pedido feito por Bolsonaro de substituição da palavra “Golpe” por “Revolução” nas questões do Enem não é nada trivial. Além disso, acompanha uma política negacionista que vem sendo por ele promovida, a qual insiste no apagamento e deturpação da história nacional.
Priscila reitera que, ao denominar de “Revolução” a destituição de um presidente democraticamente eleito e a perseguição sistemática de inúmeros(as) brasileiros(as) que se opuseram ao regime ditatorial, o presidente não apenas minimiza a dor de inúmeras pessoas que sofreram com as ações violadoras que caracterizaram o período. Também parece celebrar a angústia, a censura, e a morte presentes em um contexto permeado por ilegalidades motivadas pela preservação do poder e interesses de uma elite econômica.
“A solicitação de substituições desta natureza, acompanhadas de afirmações como a de que ‘deseja que o Exame comece a ter a cara do governo’, evidenciam um completo descompasso entre a performance de Bolsonaro como presidente, e os direitos e garantias constitucionalmente assegurados em um Estado Democrático de Direito”, explica a advogada. Para ela, a distorção da memória pode também ser uma engenhosa técnica utilizada por aqueles que buscam repeti-la em seu favor.
O que aconteceu naquela época foi uma ditadura cruel
O deputado federal pelo estado do Paraná, Zeca Dirceu (PT) declara que o atual governo é a prova de que a falta de investimentos na educação, só levará o país para a ignorância similar à do denominado presidente.
O parlamentar reforça que o fato de Bolsonaro querer trocar o termo Golpe de 64 por revolução no Enem é absurdo e mentiroso. “Em 1964 não tivemos uma revolução, o que aconteceu naquela época foi uma ditadura cruel, onde muitas pessoas foram assassinadas pelo autoritarismo e pelo ódio”, reitera.
Zeca Dirceu, que é integrante das comissões da educação no Congresso Nacional, adianta que o pedido de substituição dos termos já foi denunciado e, agora, o Tribunal de Contas da União (TCU) abrirá investigação para apurar as absurdas irregularidades e interferências do “(des)governo” do presidenta no Exame Nacional do Ensino Médio.
Passado mal resolvido
O professor de história na Escola Emílio Cavalcanti de Albuquerque da rede estadual de Pernambuco, Thiago Albuquerque, conta que o atual governo é feito com discursos antidemocráticos, com exaltação de tortura e que isso não é novidade. Segundo ele, é importante observar como a sociedade, de forma ampla, recebe essa mudança.
Thiago acredita que para a maioria das pessoas, não há um entendimento claro sobre o que é golpe ou revolução. É como se a discussão não transcendesse setores da sociedade que já são sensíveis a essas pautas. “Revolução e golpe, são termos que eu procuro sempre destrinchar nas minhas aulas porque a maioria não entende o que é nenhum dos dois”, explica.
Para o professor, é extremamente preocupante que o governo, apoiado pelo Ministério da Educação, esteja aplicando uma linha ideológica e deturpando o exame. O Enem sempre foi feito pelo Inep de forma extremamente técnica, e essa linha técnica está sendo jogada no lixo”. O que fortalece esse tipo de atitude por parte do presidente é o problema muito mal resolvido do Brasil com a ditadura militar, que leva exatamente a esses discursos e disputas narrativas.
“Faltou ao Brasil resolver esse problema como os países vizinhos, sobretudo a Argentina, que criminalizou o regime militar ocorrido naquele país, no Brasil essa coisa ficou muito solta”, conta o historiador. De acordo com Thiago, essa tentativa de interferência de Bolsonaro, com policiais federais invadindo o Inep, censurando questões tem muito a ver com esse passado mal resolvido do Brasil na questão da ditadura militar.
Abalos democráticos não devem ser celebrados
O professor do curso de direito do Centro Universitário de Brasília (Ceub), Tédney Silva vê a interferência do Governo Federal no exame do Enem como mais uma prova do desrespeito à educação e à memória nacional, particularmente quanto ao revisionismo histórico da ditadura civil e militar de 1964. “Nossos abalos democráticos não devem ser celebrados, mas repugnados pelas nossas instituições contemporâneas, salvo se estas desejam associar-se ao mesmo movimento golpista de então”, menciona.
Para o professor de direito, sob o argumento de tentar evitar a ideologização da educação, a atual gestão governamental busca impor a ideia de que a ruptura democrática no Brasil foi necessária. Esse tipo de postura é incompatível com os regimes pretensamente democráticos e nossas instituições contemporâneas, salvo se estas desejarem ser associadas ao mesmo movimento golpista de então.
“Tratar a educação e a liberdade da ciência como inimigas sociais é inclinar-se ao autoritarismo, dado o fato de que aquelas buscam promover o pensamento crítico e livre, não o seu aprisionamento” finaliza, Tédney.
Tentativa de apagar a história terrível do golpe de 1964
A presidente do Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino Superior (Andes-SN), Rivânia Moura, é mais uma tentativa do governo de apagar a história terrível do golpe de 1964 e da ditadura militar empresarial que se instaurou no Brasil a partir daquele momento. "Tratar como revolução é um absurdo, pois nega todo o movimento articulado dos militares com frações da burguesia, inclusive internacional, para barrar um possível avanço das forças progressistas no país", afirma taxativa.
No entendimento de Rivânia, Bolsonaro quer empurrar um revisionismo da história do país principalmente para anular o significado da ditadura militar e isso se alia à atitude negacionista característica do atual governo. Representando o sindicato, ela considera um absurdo e repudia veementemente a intenção de trocas de termos pelo presidente. É mais uma demonstração de que a crise criada no Inep, que levou ao pedido de exoneração dos cargos de diversos funcionários, está vinculada ao controle que o governo e seus apoiadores tentam implementar em todos os espaços.
*Sob a supervisão de Ana Luisa Araujo