Eu, Estudante

REPERCUSSÃO

Segundo dia de provas do Enem recebe críticas por falhas na organização

Estudantes, entidades representativas do setor da educação e especialistas consideram que a prova teve problemas de logística e escancarou desigualdades para o acesso à educação superior

Após o fim do segundo dia de aplicação de provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), especialistas, entidades estudantis e estudantes avaliaram negativamente a logística do exame certame. Entre os problemas há relatos de erros na organização, casos de descumprimento dos protocolos de biossegurança, além do o registro recorde de abstenção.

No domingo (24/1), o número de estudantes que se inscreveram mas não compareceram aos locais de prova chegou a 3.052.633 — 55,3% do total de candidatos do país. Só no Distrito Federal, houve 60.763 participantes ausentes, o que corresponde a 53,7% dos 113.177 inscritos no DF.

Diretora do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getúlio Vargas (FGV-Ceipe), Claudia Costin considera um erro o Enem não ter sido adiado. Ela acrescenta que o oposto ocorreu em países como a Inglaterra, que adiaram os exames de fim de curso. "Houve um erro de decisão", avalia.

A especialista ressalta que os problemas relacionados à logística decorreram dessa escolha, uma vez que a organização das salas havia sido projetada contando com as possibilidades de faltas. No entanto, como a quantidade de abstenções não foi uniforme em todo o país, estudantes encontraram alguns locais de prova mais lotados do que outros. 

Lucio Bernardo Jr. / Câmara dos Deputados - A especialista Claudia Costin considera que o Enem deveria ter sido adiado

 


Um terceiro ponto levantado pela especialista envolve a desigualdade de oportunidades. "Com certeza, os jovens que não tinham acesso à conectividade ou acesso limitado (à internet) saíram muito prejudicados. Se imaginarmos que ficamos quase um ano letivo inteiro longe das escolas — com alguns em casas com livros e conectividade enquanto outros estão em casas sem livros e sem acesso à internet —, podemos perceber a profunda desigualdade que existe nesse ensino remoto", observa Claudia Costin.

A diretora do FGV-Ceipe ressalta que, mesmo com cotas para ingresso no ensino superior, existem até desigualdades entre instituições públicas tradicionais e, por exemplo, institutos federais ou escolas militares, que fazem seleção de estudantes. "Quem vem de uma escola pública típica e em área de vulnerabilidade dificilmente vai conseguir acesso a ensino superior", completa Claudia.

"Fracasso como política pública"

Coordenadora do comitê distrital da Campanha Nacional pelo Direito à Educação (CNDE), Catarina de Almeida Santos considera que o Enem foi um "fracasso como política pública". Ela ressalta que os mais prejudicados pela abstenção foram estudantes de escola pública, pobres, de periferia e negros. "Para quem queria o processo de elitização e exclusão da maioria dos estudantes que concorrem, ele (o Enem) foi um sucesso", critica.

Arquivo pessoal - A professora da UnB Catarina de Almeida Santos ressaltou que a prova foi marcada por desigualdades

 

"Além de um fracasso, foi uma irresponsabilidade do governo brasileiro desenvolver o Enem (neste momento), não só pelo processo de exclusão dos estudantes que ficaram sem fazer (a prova), mas, também, pelo fato de colocar em risco a saúde e a vida dessas pessoas", afirma Catarina, que é professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB).

A especialista criticou a avaliação positiva feita pelo ministro da Educação, Milton Ribeiro, em relação ao exame. Para Catarina, a declaração se tratou de um ato de negacionismo. "Eu não posso dizer que uma abstenção é uma minoria barulhenta. A maioria dos estudantes não foi fazer o Enem", destaca.

Risco de contaminação

Myllena Alves dos Reis, 21 anos, é estudante de ciências sociais na UnB e faria a prova desta edição como forma de testar os próprios conhecimentos. No entanto, preferiu se somar ao grupo de inscritos que não compareceram, pois tinha medo de se expor ou de contaminar outros participantes.

Arquivo pessoal - Myllena Alves dos Rei desistiu da prova por medo de contaminar estudantes


"Escolhi não ir depois de pensar muito, porque, como trabalho todos os dias e uso transporte público, pensei que poderia colocar a vida de outras pessoas em risco. (No caso, a de) estudantes que, durante todo o ano, esforçaram-se para aprender e tentar uma vaga no ensino superior", destaca Myllena.

Em Maceió, Leticia Farias Costa Vieira, 17, presenciou aglomeração no local de provas. Na sala onde fez o Enem, a jovem encontrou cerca de 45 pessoas sentadas em cadeiras posicionadas sem respeito ao devido distanciamento social. Também houve registro de aglomeração na entrada: "Uma cena terrível", descreve.

Leticia acredita que o nervosismo pela cena possa impactar no desempenho dos participantes. O uso de máscaras foi o único protocolo praticado, segundo ela. "(O descumprimento das normas é) símbolo da desorganização de nosso país, uma falta de respeito com o estudante e com as pessoas da casa dele, devido ao alto risco de contaminação", critica a candidata.

Desafios do ensino remoto

Embora tenha observado o respeito aos protocolos onde fez as provas, a estudante Ana Cecília Oliveira, 17, permaneceu alerta durante a realização do exame. Na sala em que ela estava, na Escola Classe 104 de São Sebastião, apenas cinco estudantes compareceram. A quantidade pequena de pessoas garantiu mais segurança, segundo ela, mas o risco de contágio permaneceu como preocupação.

Arquivo pessoal - Ana Cecília Oliveira acredita que o ensino remoto impactou negativamente sua preparação


Outra dificuldade relatada pela jovem tem relação com o ensino remoto. Ana Cecília conta que teve muita dificuldade em aprender conteúdos e estudar sozinha. "É novo, tudo novo para nós. É difícil, porque nunca passamos por isso antes e tivemos de nos adaptar sozinhos. Indo à escola, absorvíamos o conteúdo com mais facilidade por estar cara a cara com o professor e pela dinâmica de sala", compara.

Mais descumprimentos de protocolos

A presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes), Rozana Barroso, classifica o alto número de abstenções como crítico. A entidade tem recebido relatos sobre falta de salas, de material de higiene, de vistoria nas escolas e de responsabilidade quanto ao distanciamento social. "Esse foi um Enem de exclusão; o de 2019, de gigante confusão na correção. Vamos lutar para que o Enem de 2021 seja um de portas abertas", pontua.

Raíza Rodrigues - CIRCUS da UBES - Rozana Barroso, presidente da Ubes, ressaltou as principais denúncias que a entidade recebeu


O presidente da União Nacional dos Estudantes (UNE), Iago Montalvão, afirma que os relatos dos estudantes se repetiram no segundo dia de provas como aconteceu no primeiro. "(Isso) é um reflexo da realização no pior momento da pandemia. Mais uma vez, mais da metade dos estudantes não compareceu. Houve prejuízo, sim. Um desgaste emocional desnecessário que poderia ser evitado se o MEC (Ministério da Educação) tivesse adiado a prova", reforça Iago.

Karla Boughoff.jpeg - Presidente da União Nacional dos Estudantes, Iago Montalvão considera que os erros se repetiram neste segundo dia de provas


Enem digital

Nos próximos dois domingos — 31 de janeiro e 7 de fevereiro —, haverá aplicação das duas provas do Enem digital. A modalidade é realizada pela primeira vez e tem 96.086 candidatos inscritos em todo o Brasil. No DF, são 3.764 participantes.

O calendário também inclui, em 23 e 24 de fevereiro, a reaplicação das provas para quem não pôde comparecer e para pessoas privadas de liberdade (PPL). Os estudantes que se sentiram prejudicados por alguma falha logística na edição impressa têm até 29 de janeiro para apresentar um pedido de nova prova, por meio da Página do Participante.

 

Saiba Mais

* Estagiário sob supervisão de Jéssica Eufrásio