O Brasil enfrenta um expressivo declínio na busca por cursos de licenciatura, refletindo uma crise na formação de novos educadores e a ameaça de um verdadeiro apagão nos próximos anos. Entre 2010 e 2021, as matrículas em cursos de formação de professores caíram cerca de 26%, segundo o Censo da Educação Superior, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Estima-se, portanto, que o número de professores diminuirá 20,7% até 2040, chegando a um deficit de 235 mil considerando oferta e demanda. Um dos principais fatores para essa queda é a desvalorização da carreira docente, que compromete a atração de novos educadores e levanta preocupações sobre o futuro da educação no país.
Em meio à essa realidade, no Jardim Ingá, Entorno do DF, o exemplo de uma ex-diarista surge para reafirmar o valor dos educadores brasileiros e trazer inspiração para a categoria. A trajetória de Geilsa dos Santos Brito, 43 anos, mostra que o amor pela profissão transpõe quaisquer barreiras, como dupla jornada e gravidez inesperada, fazendo valer os percalços para alcançar o grande sonho: tornar-se educadora. Neste Dia dos Professores e diante dos desafios, a importância de sua lição de vida é redobrada, trazendo um sopro de resiliência para milhares de profissionais que seguem acreditando que um mundo melhor se constrói por meio do ensino.
Vocação
Natural de Salvador (BA), filha de pai pedreiro e mãe empregada doméstica, a relação de Geilsa com a profissão de diarista, que mais tarde também seria a sua, nasceu por influência da mãe, aos 12 anos. “Minha mãe levava a gente desde pequeno pra ajudar quando era dia de festa na casa dos patrões. Quando não era eu, era minha irmã, e a gente sempre estava ali ajudando. Então, na verdade, o trabalho doméstico eu acabei aprendendo com ela”, conta.
Com uma “infância maravilhosa dentro das condições de vida”, a ex-diarista teve uma formação inteira em escolas públicas, e foi na adolescência, aos 16 anos, que descobriu sua verdadeira vocação. Ela lembra que, certa vez, ajudou a sua vizinha, que dava aula de reforço no antigo colégio Santa Bárbara, a fazer os cadernos dos alunos e acabou se apaixonando. “Eu comecei ajudando minha vizinha fazendo os cadernos das crianças. Ela achava que minha letra era muito bonita. E quando ela dava aula para as crianças na época, eu gostava muito. Trabalhei com ela por 3 anos quando eu ainda era menor [de idade].”
No entanto, com o fechamento do colégio, Geilsa teve de adiar os planos e procurar outra forma de ganhar a vida. Foi assim que, aos 18 anos, iniciou, de fato, a sua carreira como diarista em Salvador e, aos 25 anos, veio para o Distrito Federal em busca de novas oportunidades.
Sonho adiado
Na capital federal, residiu em Vicente Pires, Guará e, por último, Samambaia, onde está até hoje. Ela continuou seus trabalhos de limpeza, desta vez no antigo Shopping Venâncio 3000, permanecenedo por quase 10 anos. Promovida a fiscal de piso, viu a possibilidade de alavancar a vida profissional e iniciou a faculdade de recursos humanos, mas teve de abandonar o curso quando soube de uma gravidez de risco.
“Como o salário me deu um pouco de condição de pensar em fazer uma faculdade, eu comecei a fazer a faculdade de RH quando eu trabalhava no shopping. E aí, descobri que estava gestante de gêmeos, gravidez de risco. Então, tive de sair da faculdade. Tranquei o curso e falei: 'não, lá na frente, um dia, eu volto'. Quando meus filhos já estavam com 8 anos, eu voltei a estudar”, explica.
Resiliência
Em 2019, Geilsa começou a faculdade de pedagogia e, apesar da rotina exaustiva, durante toda a sua formação, nunca parou de trabalhar e de se dedicar à família. “Como meus filhos ainda estavam em fase de crescimento e eu não tenho uma rede de apoio, porque minha família é toda de Salvador, quem cuidava deles era uma vizinha apelidada de ‘vovó’. E foi graças a ela que eu pude fazer a faculdade à noite”, lembra.
Ela começou a preparação para concurso público assim que se formou em pedagogia, em 2021. Tendo que conciliar os estudos com o trabalho de doméstica, Geilsa detalha: “Eu tentei o concurso de professor temporário no DF. Aí fiquei estudando, fazendo a faculdade e me preparando para o temporário até sair o efetivo. Aí eu terminei a faculdade e continuei estudando para o concurso, mas não fiquei numa boa classificação”, lamenta.
No DF, ela fez duas provas para professor temporário; na Cidade Ocidental, fez uma para professor efetivo e outra para temporário, além de uma prova para professor efetivo no Novo Gama. Mas foi na sexta tentativa, após três anos estudando sem parar, que a conquista finalmente veio, coroando tamanho esforço e dedicação. Em 8 de abril deste ano, Geilsa dos Santos Brito foi empossada no cargo de professora efetiva do recém-inaugurado CMEI Professora Valéria Dias, no Jardim Ingá: "Era o desejo do meu coração!", celebra.
Papel da família
A família de Geilsa teve papel fundamental durante a sua caminhada. Ela encontrou nos filhos, hoje com 12 anos, a motivação necessária para não desistir. “Meus filhos me ajudavam muito, porque eu chegava muito cansada do serviço. E eu, na frente do computador, falava para eles: ajuda a mamãe, porque mamãe está estudando para a gente ter uma vida melhor. Eu sempre levava para esse lado: 'Só dá para a gente ter uma vida melhor se a mamãe estudar e passar no concurso, aí a mamãe vai poder ajudar melhor em casa", recorda, emocionada. Com a conquista, "eles ficaram super felizes e diziam para todo mundo que a mãe deles é professora e que passou em um concurso de Luziânia”, diz a educadora.
Além dos filhos, seus pais e seu esposo também tiveram grande importância na sua aprovação. Segundo Geilsa, um dos seus objetivos era dar orgulho à mãe, empregada doméstica há 30 anos. E a participação do esposo também foi primordial: “Meu esposo me levou para todas as provas, porque eu não dirijo. E às vezes eu dormia de 3h30 às 4h30 para estar de pé às 6h, e era ele que segurava as pontas com as crianças e nos afazeres de casa”, conta, agradecida.
Nova vida
O Correio visitou o CMEI Professora Valéria Dias numa ocasião especial: o dia do cabelo maluco (confira a galeria abaixo). Os alunos, de 3 a 4 anos de idade, todos com penteados inusitados, posaram ao lado de Geilsa para a foto e, num ato de amor, a recém-nomeada acolhe cada um dos pequenos com carinho e um sorriso no rosto. “Na educação infantil, tem muito a questão do cuidado, e ela ama o que faz. A gente vê que ela é muito dedicada, atenciosa. Na turma dela, ela tem um aluno autista também, o Denis, de 3 anos. Então, ela cuida dele como se fosse filho dela, ele e os outros meninos. Ela é muito carinhosa com isso”, explica Keilla de Araújo Bouças, gestora do colégio.
Ao conduzir as aulas, Geilsa trabalha de forma lúdica, utilizando uma metodologia pedagógica que inclui brincadeiras e jogos. “A melhor maneira da gente trabalhar com criança, seja na idade que for, é trazê-los para nós. Devemos ser verdadeiros e transparentes, porque a criança, apesar de toda inocência, sente quando você é verdadeiro, então eu tento passar o meu melhor”, afirma.
Para ela, a relação professor-aluno não é verticalizada, mas dinâmica, na qual ocorre um intercâmbio de conhecimentos. “O professor tem um papel essencial, que eu defendo até o fim dos meus dias. O professor é o mediador, não detém o conhecimento, muito pelo contrário: ele ajuda o aluno a conhecer, ele auxilia. E a gente também aprende com a criança. A gente não só ensina, compartilha e interage, a gente aprende também. É uma profissão maravilhosa, é a profissão dos meus sonhos, espero continuar fazendo esse papel, que é desempenhar o meu melhor", compartilha.
Planos
Desde que se tornou servidora pública, sua rotina mudou completamente. O trajeto de Samambaia até o Jardim Ingá é longo, mas ela não se deixa desanimar. Às terças, quartas e quintas, Geilsa precisa estar na escola às 8h30 da manhã e, geralmente, chega de carona com uma colega, saindo de casa por volta de 7h20. Mas, se dependesse do transporte público, a história seria outra. “Se for para vir de ônibus, a gente tem que sair de casa, pelo menos, 4h40 para estar aqui num horário tranquilo”, pontua. Apesar dos desafios, Geilsa se sente vitoriosa por ter conquistado o que tanto almejava: “Claro, toda profissão tem seu valor. Mas quando você fala de sonho, vale a pena a gente insistir, né?".
Agora, a vontade de Geilsa é só uma: continuar aprendendo. Seu desejo é se especializar cada vez mais e fazer uma pós-graduação no futuro. A sua máxima, “sonho em todo tempo é sonho”, motiva não só ela, mas todos que não desanimam diante dos obstáculos. “Não existe idade. Quando eu comecei a faculdade, eu tinha 39 anos. O sonho não envelhece. Nós temos que querer sempre o melhor, e, para conquistar o melhor, é através do estudo e do trabalho. Não tem mágica. Quem não é herdeiro, tem que estudar, e quem é herdeiro, tem de estudar para administrar o que tem”, brinca, fazendo um convite especial a todos que precisam dar passos rumo a um sonho.
*Estagiário sob supervisão de Marina Rodrigues
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