Para pensar o futuro da educação é preciso refletir sobre a realidade escolar na atualidade. Para os especialistas, não há futuro igualitário sem debater as mazelas que afligem escolas do Sul ao Norte do país. Uma delas é a evasão escolar, um fantasma que assombra desde pais e responsáveis, que veem seus filhos se desinteressar pelo ambiente escolar, até diretores pedagógicos, que tentam entender formas de combater esse problema.
Todos os anos, as escolas brasileiras são deixadas por cerca de 500 mil jovens acima de 16 anos. Um levantamento do Ipec, feito a pedido do Unicef, mostrou que 11% dos brasileiros de 11 a 19 anos estavam fora da escola em 2022.
A evasão faz com que apenas 60,3% dos alunos terminem o ciclo escolar até os 24 anos — dados da Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan SESI), em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Essa distorção idade-série é um dos pontos de repulsa para os alunos: atrasados por falta de aprendizado ou por terem abandonado a escola, eles representavam, em 2021, mais de 5,2 milhões de alunos em todo o Brasil.
Para a gerente de Desenvolvimento e Soluções do Itaú Social, Sônia Dias, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP), combater esse abandono alarmante — que atinge principalmente alunos em vulnerabildiade social ou negros — demanda a criação de estratégias para deixar a escola atrativa e a assiduidade possível para todos. Confira os principais trechos da entrevista a seguir.
Mais de meio milhão de alunos abandonam o ensino médio no Brasil a cada ano. Quais são as principais causas disso?
Meio milhão de estudantes que abandonam o ensino médio é um dado muito triste, resultado de um acúmulo de desigualdades e de condições que levam a essa realidade. Muitas vezes, a evasão é resultado de um percurso escolar que é irregular e de diferentes dificuldades — seja de aprendizagem, seja no acompanhamento. Dificuldades familiares e necessidade de largar o estudo para o trabalho. Outro problema é a distância entre o currículo da escola e a realidade do estudante.
Quais são os alunos mais atingidos?
A evasão atinge, com certeza, muito mais os estudantes das camadas mais vulneráveis, ou seja, com condições socioeconômicas mais baixas. São estudantes que estão em condições de vulnerabilidade, quando pensamos em moradia e também saúde, como, por exemplo, as crianças com algum tipo de deficiência, que precisam e têm direito a um atendimento especial e não têm acesso a ele. Os estudantes negros, indígenas e quilombolas são os mais atingidos, porque a evasão escolar espelha a nossa desigualdade, a desigualdade da sociedade em si.
O que pode ser feito para evitar a evasão escolar? Que tipo de políticas públicas são necessárias?
Como a evasão escolar tem múltiplos fatores — socioeconômicos e culturais — e a educação, em si, tem a necessidade de se configurar numa perspectiva de mobilidade social, não há uma única ação que possa fazer com que o problema seja sanado. Então, há uma complexidade de políticas. Primeiro, são necessárias políticas que melhorem ou diminuam as desigualdades, no sentido de ofertar uma escola de qualidade independente da localidade, seja ela urbana, rural, no centro da cidade ou na periferia. O esforço para que todas as escolas de uma rede tenham a mesma qualidade, com professores que tenham uma boa formação e um currículo atrativo e mais significativo para os estudantes. Também é preciso políticas para que haja apoio, eventualmente, até recursos financeiros para que essas crianças e adolescentes continuem a participar da escola, se mantenham nela. Por exemplo: nós temos muitos casos de jovens estudantes nos anos finais, principalmente no ensino médio, que deixam de frequentar a escola porque ela só oferece a série no período noturno. Essa realidade de evasão afeta principalmente meninas, que muitas vezes moram em lugares em que não se sentem seguras para sair à noite e, por isso, acabam desistindo da escola. Então, assim como as causas, também são múltiplas as demandas para o enfrentamento da evasão.
Outro problema visto no cenário educacional brasileiro é a distorção idade-série, que atingiu, em 2021, mais de 5,2 milhões de alunos em todo o país. Qual é a principal consequência disso e como as escolas podem atuar para sanar esse problema?
A distorção idade-série, que se configura quando a criança, o estudante, tem um atraso no seu desempenho que está acima de dois anos daquela série em que ele se encontra, atinge de forma muito desigual os municípios mais pobres, e dentro dos municípios, as escolas que ficam em regiões mais periféricas. Então se repete o processo de desigualdade em relação à distorção idade-série. E é uma questão muito triste, porque o impacto é enorme. Quando a gente vê estudantes que estão, por exemplo, no 9º ano ou, menos, no 6º ano, com uma idade que já era esperado que eles estivessem concluindo o fundamental 2, esses estudantes são fortes candidatos a evadirem, a saírem do sistema escolar. Porque eles deixam de estar na mesma idade, na mesma fase de desenvolvimento. Muitas vezes, não se sentem pertencentes àquele grupo. E a gente sabe também o quanto o fator convivência é importante, e ainda há o estigma do porquê o menino não está conseguindo acompanhar. Então, a situação da distorção escolar precisa ser considerada pelo sistema como uma situação de fracasso escolar, que é como uma grande estudiosa da USP [Universidade de São Paulo], a professora Maria Helena de Souza Patto, chamava a questão do fracasso escolar. É quando o sistema escolar não consegue dar uma educação de qualidade e promover que seus estudantes aprendam, se desenvolvam e avancem. É preciso que a escola se reorganize, que tenha estratégias que possam de alguma forma compensar essas lacunas de aprendizado que o estudante vem acumulando ao longo da sua trajetória escolar, que acaba apresentando naquela série em que ele está, de forma que ele possa fazer uma aceleração nessa aprendizagem.
Qual o impacto da pandemia nesse cenário?
Durante a pandemia, o Brasil foi o país que mais ficou — dois anos — com a maior parte das escolas fechadas. Especialmente as escolas públicas. As escolas de elite, em sua maioria, tiveram condições de se reorganizar com mais rapidez. E os estudantes também tinham melhores condições de acompanhar as aulas pela posse de equipamentos, como notebook. Mas no sistema público não aconteceu a mesma coisa. Então a gente precisa enfrentar essa lacuna de dois anos que os alunos da rede pública tiveram. E é urgente que a gente ofereça soluções para que os alunos possam avançar na sua vida e não sejam prejudicados. A gente tem estudos que mostram o quanto o atraso na vida escolar, muitas vezes levando a um abandono, faz com que esses estudantes não concluam seus estudos e, portanto, não consigam participar de uma forma mais capacitada da vida profissional do seu país. Então quando a gente fala de lacuna de profissionais qualificados, isso tem tudo a ver com um sistema de educação que não está conseguindo formar de maneira adequada os seus jovens.
A tecnologia é uma realidade nas escolas brasileiras?
É importante dizer que o uso da tecnologia já está aí há bastante tempo. No sistema público, esse uso foi acelerado por conta da pandemia. Mas o uso da tecnologia é de novo uma outra forma de manifestação das desigualdades. A gente fez pesquisas durante a pandemia com as famílias, com as redes públicas, que mostram que boa parte das crianças da escola pública, entre 40% e 50% delas, tinham acesso às atividades escolares pelo celular. Fica difícil para o estudante fazer um exercício de matemática, de lógica. Pode ser que seja mais fácil em disciplinas de literatura, mas é muito prejudicado o acesso apenas pelo celular. E, muitas vezes, um celular que é compartilhado pela família. Então é importante que não só se desenvolva, a gente tem a inteligência artificial que já está aí. Mas de que forma a gente faz com que a tecnologia seja usada e permita o acesso a todas as camadas da população? Se não, corremos o risco de fazer coisas para uma elite apenas. É importante dizer: não é neutro o uso da tecnologia. Ele precisa ser um uso democrático, que considere os problemas de conexão, que as escolas tenham equipamento, que os professores tenham acesso a bons equipamentos, tenham formação e consigam fazer um uso contextualizado da tecnologia, trazendo o que ela tem de melhor, que é apoiar o desenvolvimento dos estudantes, a aprendizagem deles, e essa inserção na sociedade que é cada vez mais tecnológica.
Como o ritmo acelerado, impulsionado pelas redes sociais, tem transformado a realidade escolar? Quais são os desafios nesse cenário?
O impacto das redes sociais está em todo o lugar. A escola não é uma bolha. Agora, é importante o quanto os professores usam as redes sociais de forma a promover a aprendizagem. Não dá para só proibir, essa não é a postura. Porque os estudantes, todos nós, estamos vivenciando um mundo que é atravessado pelas redes sociais, pelas interações de mídia, pelos likes. Agora, como a gente pode usar as redes sociais? Em ações mais colaborativas, em projetos que promovam uma troca de saberes entre escolas, entre salas de aula. Fazendo uma rede social que contribua para uma aprendizagem, que seja reflexiva, ajudando os estudantes a fazer uma leitura crítica do que eles leem na rede. Isso inclusive pode ser considerado um gênero textual. As postagens do que era chamado Twitter — agora é X — são um gênero textual. Como a gente lida com elas? Porque esse é o mundo em que os nossos estudantes estão. Como a gente entra nesse mundo com eles e transforma esses momentos em reflexão, crítica e aprendizagem?