Há 20 anos, a Lei 10.639 tornou oficial o ensino obrigatório de história e cultura afro-brasileira e africana. Baseado nisso, o projeto África é Nós realiza, desde 2022, intercâmbio cultural entre África e Brasil em escolas públicas do Distrito Federal, com foco no combate ao racismo por meio da moda.
O camaronês René Martin, produtor executivo da iniciativa, considera que, muitas vezes, a temática é abordada de forma superficial nas escolas, apesar das duas décadas da lei. "O projeto vem resolver esse problema, em grande parte, tendo como protagonistas africanos e afro-brasileiros que estão envolvidos em todas as partes dessa ação, mostrando que o nosso povo é capaz de oferecer resultados de qualidade", garante. Ele acredita que dar voz aos africanos e aos afro-brasileiros combate diretamente o racismo. "As oficinas trazem uma parte da cultura afro que foi apagada. Esses saberes ancestrais precisam ser resgatados", afirma. "Hoje, entendemos que, usados da maneira correta, esses conhecimentos também podem se transformar em um fonte de renda para esses jovens", completa.
A estudante Hesther Cristina, 17, reforça que o África é Nós dá visibilidade à população negra. "Durante muito tempo, a comunidade negra foi esquecida. A partir do projeto, tivemos a oportunidade de conhecer culturas e linguagens novas", comemora. A moradora de Santa Maria avalia que iniciativas como essa deveriam ser difundidas em mais unidades de ensino. "Não tinha esse tipo de projeto na minha outra escola. Aqui, a biblioteca é viva e conseguimos ver que a percepção das pessoas mudou. Ajuda muito na interação entre os professores e os alunos", destaca.
Ministrando as aulas de história da moda e estética africana para os estudantes do Centro Educacional 310 (CED 310) de Santa Maria, Lucie Atumesa Nsimba, 42, fala da importância de levar o assunto para os jovens desmistificarem alguns estereótipos. "Às vezes, as pessoas pensam que moda africana e só para negros ou africanos, mas ela é igual a moda do mundo inteiro", explica. A estilista, natural da República Democrática do Congo, revela que, em sua chegada no Brasil, teve dificuldades de "mudar a cabeça" de suas clientes, "Aqui, as pessoas reclamaram que a roupa era muita colorida. Na África, usamos assim. Os tecidos de lá chamam de beleza da mulher, pois têm flores e tons fortes, que exalam alegria", detalha. Lucie relata que se adaptou ao jeito brasileiro, uniu os dois estilos e, agora, sua clientela está acostumada com esses padrões.
Raízes
Gabriel Ferreira, 18, diz que o projeto trouxe mais liberdade para os jovens se expressarem. "O Brasil é um país muito miscigenado e a ancestralidade afro está em todos os brasileiros", observa. O morador de Santa Maria teve seu primeiro contato com a moda afro em uma oficina de turbante. Para ele, foi uma experiência única. "Tem muita gente que tem vergonha da pele, do cabelo e as oficinas elevam a nossa auto estima", atesta o estudante.
As jovens Thaysla Rodrigues Lopes e Gabriele Rodrigues, ambas de 16 anos, avaliam que a oficina foi um momento de muito aprendizado. "É importante porque ensina mais pra gente da nossa cultura, e dá visibilidade para as pessoas que não conhecem aprender mais sobre ela", afirma Gabriele. "Tem muita gente que não se identificava, e que acha estranho usar peças africanas e ter esse contato a partir das oficinas foi muito importante. Eu nunca pensei em gostar disso de usar turbante por exemplo, mas a partir do projeto, achei incrível", completa Thaysla.
Representatividade
A professora Margareth Brito Alves, 46, acredita que este tipo de ação fortalece o estudante negro. "Nós temos muitas dificuldades para realizar esses projetos, porque trazer tecidos, maquiagem, penteado, desfile, por exemplo, como eles fazem, tudo isso é muito caro, difícil de implementar dentro da escola. Então quando você traz toda a história e conecta com a atividade prática faz toda diferença", explica.
A educadora realiza um trabalho de valorização afro no CED 310. Ao ientrar em contato com René Martin para levar a proposta ao centro educacional, a sintonia foi instantânea. "O projeto é realizado na biblioteca — um espaço de poder, pois representa o conhecimento, e conhecimento é poder. Temos também exposições de fotografias e fizemos um sarau com mulheres falando da importância da força da revolução dos cachos. Então, o África É Nós veio no terreno já cultivado, para complementar esse plantio que tem sido construído no decorrer do tempo", frisa.
O projeto está na sua segunda edição no CED 310 e, este ano, também foi realizado no Centro de Ensino Médio Integrado (CEMI), no Gama. Os estudantes tiveram oficinas de penteado afro, turbante, técnicas de passarela, desfile moda afro, história da moda e da estética africana.