CONSELHO TUTELAR

Registros de denúncias em conselhos tutelares cresceram 70% em um ano

Violência física e abuso sexual lideram o ranking de barbaridades cometidas contra crianças e adolescentes. Na maioria dos casos, a própria mãe é a responsável pelas agressões

Katherine Assis*
postado em 01/01/2023 21:31 / atualizado em 01/01/2023 21:31
 (crédito: Douglas Cabral)
(crédito: Douglas Cabral)

O registro de denúncias de abusos contra crianças e adolescentes nos conselhos tutelares de Brasília registrou aumento de 70% em apenas um ano, de acordo com levantamento da Secretaria de Justiça do DF (Sejus). Agressão física e abuso sexual lideram a lista de ocorrências. A falta de unidades de atendimento e de conselheiros atuando em regiões carentes e  distantes sobrecarrega, a cada ano, o atendimento no Plano Piloto.  

Para a especialista em prevenção de violência às crianças e adolescentes, Maria de Lourdes Magalhães, a ampliação do acesso à informação e os investimentos realizados nos conselhos do Distrito Federal nos últimos governos incentivaram as denúncias.

“Nos últimos anos, os conselhos tutelares têm sido melhor instrumentalizados para a realização de notificações e registros de agressão", afirma ela, observando que o incremento de registro de denúncias pode não significar apenas um aumento da violação dos direitos das crianças, mas um indicativo de um avanço na administração das instituições, com dados mais solidificados.

O acesso à informação e uma sociedade mais engajada também pode ser, segundo ela, um dos motivos do aumento das denúncias. “Hoje temos uma sociedade mais empoderada e com maior conhecimento, o que é primordial em seu engajamento na pauta das violências. Antigamente, por exemplo, as pessoas denunciavam menos os castigos corporais por pensarem que os pais tinham direito total sobre os corpos das crianças", avalia a especialista.

Violações e denúncias

A violência física foi a maior causa de violações de direitos registrada pelos conselhos tutelares do DF em 2022, totalizando 955 registros entre 1º de janeiro e 13 de dezembro. Na sequência, vieram os casos de negligência contra crianças e adolescentes, com 716 registros no mesmo período.

As regiões com maior número de denúncias foram Ceilândia (377), Samambaia (242) e Planaltina (201). No total, foram registradas 2511 ocorrências. De acordo com a Sejus DF, em cada uma delas pode haver mais de um caso de violação de direito, ou seja, uma denúncia pode conter negligência e maus tratos ao mesmo tempo.

O abuso sexual ocupa o quinto lugar dos casos mais registrados, com 8,02% das violações. De acordo com dados coletados, há, ainda, um vínculo estreito de parentesco com as vítimas. Na maioria dos casos, a própria mãe foi apontada como violadora de direitos (291 casos registrados), seguido por pai e mãe, (138) e apenas pelo pai (71). Agressões por parte de madrastas e padastros ocupam o 9º e o 6º lugar na lista, respectivamente, com 18 casos registrados.

O conselheiro Manoel Pereira Neto, atuante em Ceilândia no quarto mandato, diz que na região os casos mais atendidos são abuso sexual, abandono de incapaz e agressão física. Segundo ele, os casos que mais chamaram a atenção envolviam duas adolescentes. Uma delas era abusada sexualmente pelo padrasto, com conivência de sua genitora, e a outra, com transtorno mental, se automutilava, dizia ouvir vozes que a mandam cortar o rosto e outras barbaridades, sem que tivesse recebido qualquer auxílio dos parentes.

Novos Conselhos

Em 2023 o Conselho Tutelar do DF ganhará dois novos colegiados, totalizando 44 unidades. A Câmara Legislativa  do DF aprovou, em 7 de dezembro deste ano, a criação das novas regiões administrativas: Água Quente, no Recanto das Emas, e Arapoanga, que será desmembrada de Planaltina. A Lei 5.294/2014, que regulamenta a atividade do Conselho Tutelar no DF, dispõe em seu artigo 6º que devem ser criados novos conselhos tutelares em caso de criação de novas regiões administrativas.

A Sejus informou que está em busca de imóveis com localização estratégica para abrigar os novos conselhos. Eles serão alugados até a construção e entrega das sedes definitivas. “A pasta já conta com equipamentos tecnológicos, computadores e veículos para serem utilizados pelos novos conselhos tutelares, mas ainda não há prazo formalizado para as respectivas inaugurações”, informou a Sejus, por meio de nota.

O novo presidente da Associação dos Conselheiros Tutelares do DF (ACT/DF), Gustavo Camargos, acredita que a implementação dos dois novos conselhos culminará em um melhor atendimento a população. "As regiões do Recanto das Emas e de Planaltina sofrem com excesso de demanda", diz, adiantando que pretende em seu mandato coordenar a implementação de novos conselhos tutelares nas regiões do Paranoá/Itapoã e em outras localidades que atendam as demandas de Samambaia, São Sebastião, Brazlândia, Taguatinga e Riacho Fundo. Ele afirma que os avanços dos conselhos tutelares são uma constante e que a ordem é incrementar ainda mais essa ação, que faz parte da pauta da associação.

Dificuldades

Camargos terá quatro anos para colocar em prática o plano físico e também o operacional. O grande gargalo, aponta, é a sobrecarga de demandas em colegiados já existentes, que acarreta sobrecarga ainda maior no Plano Piloto. "A abertura de pelo menos seis novos colegiados melhoraria muito o atendimento e  da população, principalmente do entorno, onde imperam as dificuldades”, diz.

Camargos atua em Planaltina desde 2016. Desde então, afirma, os atendimentos na região cobrem boa parte da área de atuação no DF. "Somente para Planaltina são encaminhadas demandas de 67 escolas públicas que lidam com evasão escolar, faltas injustificadas, e outros problemas que necessitam de encaminhamento e sobrecarregam o órgão público, diz. "Assim como outras regiões, é um lugar muito distante do plano piloto. Se alguém precisar de atendimento para uma criança junto ao Centro de Orientação Médico Psicopedagógica, por exemplo, terá que se deslocar 50 quilômetros até o centro de Brasília”, afirma.

 

Conselheiro tutelar Gustavo Camargos
Conselheiro tutelar Gustavo Camargos (foto: Arquivo pessoal)

A conselheira tutelar Zeila Assis, que atua desde 2013 na região administrativa do Cruzeiro, conta que uma das maiores dificuldades enfrentadas pela unidade é a demora nas respostas aos encaminhamentos, o que impede uma resolução mais rápida dos casos. Outro desafio, segundo ela, é a falta de interação com a rede com as quais eles atuam e da comunidade sobre o entendimento das atribuições do conselho tutelar. “Muitas vezes as escolas, por exemplo, encaminham casos que deveriam ser resolvidos por uma equipe de pedagogos da própria escola”, exemplifica.

O conselheiro Manoel Pereira Neto, atuante em Ceilândia, também reforça a dificuldade dos conselheiros em relação às redes. “ A nossa rotina é bem complicada, pois dependemos dos outros órgãos e de toda rede para que trabalham direta ou indiretamente com proteção à criança e ao adolescente, como a promotoria da Vara da Infância e da Juventude, delegacias, escolas e a própria comunidade, que nos leva denúncias ou demanda de cada dia como. Não obstante, é preciso ampliar o número de vagas em creche, escolas, assim como ampliar a oferta de estágio”, pontua.

Mãe de uma menina de 6 anos, a dona de casa Tayna Santos, moradora do Cruzeiro Velho, conta que demorou quatro meses para conseguir matricular a filha na creche. “Essa demora me prejudicou muito, porque, para trabalhar, tinha que deixar minha filha na creche e, para isso, teria que comprovar uma renda, mas não seria possível eu trabalhar enquanto não tivesse com quem deixar a menina.”

Prevenção dos Abusos

Conselheira tutelar mais votada no Cruzeiro e em seu primeiro mandato, Viviane Dourado revela que um dos motivos que a levou a se interessar em fazer parte da ACT foi a possibilidade propor ações educativas. “É importante a informação, a prevenção e a profilaxia, por meio do diálogo. A verdade sempre nos motiva a buscar resultados positivos”, afirma.

 

Conselheiras Viviane Dourado e Zeila Assis no conselho do Cruzeiro
Conselheiras Viviane Dourado e Zeila Assis no conselho do Cruzeiro (foto: Arquivo pessoal)

O Conselho Tutelar

Com atuação ativa no contexto social do DF e também do país, o Conselho Tutelar é um órgão público autônomo e tem por objetivo garantir o cumprimento do Estatuto da Criança e Adolescente (ECA). O órgão é administrativamente vinculado ao poder executivo municipal, apesar de não ser subordinado a ele. No caso do Distrito Federal, esse vínculo se dá com a Secretaria de Justiça e Cidadania (Sejus-DF).

No DF existem 42 conselhos tutelares. Cada um deles possui 5 conselheiros concursados e escolhidos por eleições diretas, que ocorrem de quatro em quatro anos, e uma equipe administrativa para auxiliá-los nos atendimentos e trâmites com a Justiça.

A Sejus-DF é responsável pela estruturação dos conselhos. Para atender às necessidades do órgão, foi criado o Núcleo de Apoio Técnico e Administrativo (NAAd); a Coordenação de Apoio aos Conselhos Tutelares (COORACT), que é responsável pelo acompanhamento das demandas de todos de todos os conselhos, sejam elas administrativas, de logística ou gestão; e a Coordenação do Sistema de Denúncias de Violação do Direito da Criança e do Adolescente (CISDECA), responsável pelo registro das denúncias.

O ECA é o principal instrumento normativo que especifica a lei de proteção a crianças e adolescentes — Lei n° 8.069, sancionada em 1990, para concretizar o artigo 227 da Constituição Federal. Tendo como base as exigências legais, o Conselho aplica medidas de proteção e aciona os poderes necessários e também as famílias e a sociedade, para que essas medidas sejam devidamente executadas.

Algumas das atribuições do Conselho Tutelar, de acordo com o artigo 101 do estatuto, são: orientação, apoio e acompanhamento temporários às crianças e adolescentes; garantia da matrícula e frequência obrigatórias em estabelecimento oficial de ensino fundamental; requisição de tratamento médico, psicológico ou psiquiátrico, em regime hospitalar ou ambulatorial para os menores; advertir os responsáveis em casos de negligência.

Participação da Comunidade

De acordo com a Sejus-DF, a participação da comunidade na escolha dos conselheiros tutelares é muito importante para o incremento de políticas públicas voltadas ao cuidado da infância e da juventude. A Sejus-DF alerta para a importância no processo de escolha dos conselheiros tutelares. O cidadão deve ficar atento aos candidatos capacitados e comprometidos com a proteção integral dos direitos das crianças e dos adolescentes, atuando sempre de acordo com as legislações vigentes.

Associação dos Conselheiros Tutelares do DF (ACT/DF)

Camargos reforça o papel da associação dos conselheiros na luta pelo direito das crianças. A associação representa os conselheiros, ex-conselheiros e suplentes do DF junto ao poder público e tem, ainda, o papel de fazer indicações para cargos que afetam diretamente a atuação do Conselho. Ela possui 3 cadeiras junto ao Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares (FCNCT) e, sendo o DF o centro do poder público, faz articulações para ajudar associações de outros estados e, consequentemente, crianças de todo o Brasil.

Para denunciar violações aos direitos das crianças e adolescentes no DF, disque 100 ou 125.

*Estagiária sob a supervisão de Jáder Rezende

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